terça-feira, 22 de junho de 2010

Meu encontro com o Cordel

Eu sempre costumo dizer que sou um privilegiado, por ter nascido em plena Idade Média. Antes que alguém ligue pra o sanatório, explico: vim ao mundo num lugarejo chamado Ponta da Serra, no pé da Serra Geral, a uns sete quilômetros de Igaporã, sertão carrascoso da Bahia. Lá, presenciei reisados, queimas de Judas e os cantadores das estradas, sem viola e sem pompa. Estava com tanta pressa, que nem esperei a chegada da parteira.

Raridades do acervo da família: folhetos de Rodolfo Coelho Cavalcante, 
Minelvino Francisco Silva e Laurindo Gomes Maciel e uma versão manuscrita de
 Zezinho e Mariquinha do início do século passado
Ao lado da casa de meu pai ficava a da minha avó, Luzia Josefina de Farias, uma das pessoas mais inteligentes que conheci, espécie de porta-voz de civilizações há muito defuntas Ela cantava os velhos romances ibéricos e narrava histórias de Trancoso, que eu, passados tantos anos, aos poucos, vou adaptando para o cordel. Um exemplo é A História de Belisfronte, o Filho do Pescador, publicada pela Luzeiro, que integra, também, o livro Contos folclóricos brasileiros (Paulus, 2010).

Capa estilo Luzeiro, com página final com acróstico, do romance O Soldado
Traidor
, que escrevi aos sete anos de idade.



Lembro-me ainda de ouvi-la declamando a História da princesa Rosa, de Silvino Pirauá de Lima, que sabia de cor. Aprendi a ler com seis anos; então, nas noites iluminadas por candeeiros movidos a querosene, eu buscava nas gavetas de Dona Luzia as histórias de cordel que tanto me auxiliaram na decifração do código escrito. Além de alguns folhetos publicados em tipografias baianas, de autoria de Minelvino Francisco Silva e Rodolfo Coelho Cavalcante, chamavam minha atenção os de formato maior, coloridos, como João Soldado e Dimas e Madalena. Foi este o meu primeiro contato com a editora Luzeiro, responsável pela tal inovação, que, só muito mais tarde, descobri que havia sido execrada pelos puristas, justamente por fazer sucesso junto às classes ditas marginalizadas das quais os sacerdotes da razão se julgam representantes.

Juvenal e o dragão, de Leandro Gomes de Barros, era a história mais atraente, pelo menos àquela época. Achava soberbo também O verdadeiro romance do herói João de Calais, de Severino Borges Silva. O assassino da honra ou a louca do jardim, de Caetano Cosme Silva, era outro romance lido e relido por mim e pela família. Minha avó deixou este mundo em 1982, quando eu tinha sete anos, e já morava em Igaporã, ou na “rua”, como costumávamos chamar a cidade. Há um ano estudava e já havia escrito alguns romances de cordel, obviamente impublicáveis.

Manuscrito original do romance O herói da Montanha Negra (1987). 
Aos 13 anos pensei ter atingido a maturidade literária. Data desta época, 1987, o cordel O herói da Montanha Negra, o qual, ousadamente, enviei para a Luzeiro, dois anos depois, já trabalhando no Banco do Brasil, onde exercia a função de menor-aprendiz. Duas semanas depois, a editora devolveu os originais, sob a alegação de que havia muitos títulos a serem lançados, já negociados com os autores. Na verdade, a minha história primava pela ousadia, fusão de linguagem de HQ sword and sorcery com mitologia grega de filme em stop-motion – e pelas situações incomuns, nunca vistas numa história de encantamento.

Uma amostra:

Leia esta história, leitor,
Até o último momento. 
Veja os fatos mitológicos  
Num mundo de encantamento,  
Onde a Magia é descrita
Muito além do pensamento. 


Onde guerreiros valentes,  
Destros e admiráveis  
Mostram valor enfrentando 
Criaturas miseráveis,  
Partindo em busca do amor
E façanhas memoráveis. 


Onde os gestos mais nobres 
Se confundem com a loucura, 
Em uma época imprecisa  
Passou-se esta aventura 
Que valoriza a coragem  
E enobrece a bravura.

Em 1993, instado por um padre de uma congregação gaúcha, a FAP (Fraternidade Apostólica da Palavra), escrevi um anticordel, Até Onde Nós Iremos?, que continha o poema Nordeste, terra de bravos. Nesta época meus pais já haviam se fixado em Serra do Ramalho, também na Bahia, onde vivem até hoje.

Em 1997, morando em São Paulo, entrei em contato com o poeta popular Costa Senna, que havia escrito alguns cordéis sobre Raul Seixas. Com Senna escrevi Um Tributo a Jesus, lançado de forma independente, em 1999. Este cordel foi reeditado no formato livro, num texto lamentavelmente estropiado, pela Editora Olho D’água, de São Paulo, em 2002. No mesmo ano eu lancei o estudo crítico Raul Seixas: Dez Mil Anos à Frente, escrito quatro anos antes, que trazia como apêndice quatro cordéis enfocando a obra do cantor e compositor baiano.

Por esta época, já readaptado à velha Bahia, estava cursando em Caetité, terra natal de Anísio Teixeira, o terceiro semestre de Letras Vernáculas. Antes de terminar o curso, retornando a São Paulo, resolvi peregrinar pelos sebos desta cidade em busca de livros que abordassem tanto a literatura de cordel quanto o conto popular. Acabei me esbarrando com a Editora Luzeiro, já dirigida por Gregório Nicoló. Conversa vai, conversa vem, ele acabou me convidando para trabalhar na revisão e seleção dos textos de cordel editados pela casa. Não deixa de ser curiosa minha trajetória no cordel, pois, durante um período relativamente longo, eu me dediquei a outros estudos – que incluíam de filosofia a astronomia, passando pelo cinema –, sem muita perspectiva de sucesso como poeta de bancada.

Hoje, com vários títulos lançados pela Luzeiro, alguns pela Tupynanquim de Fortaleza, e milhares de exemplares vendidos, além dos livros infantis e juvenis em cordel, ainda não me entreguei ao cansaço. Atualmente, na coordenação da coleção Clássicos em Cordel, da editora Nova Alexandria, acredito que parte de minha missão está concretizada.

Errando muito, mas teimosamente insistindo, vou lançando minha semente nas sendas em que transito. Acreditando na cultura popular como sinônimo de resistência e no cordel como manifesto dessa cultura que não entrega os pontos, porquanto filha da terra e dos valores a ela inerentes, vou espargindo sonhos, pois estes, ao contrário das pessoas, não envelhecem.

Ponta da Serra. Ao fundo, a casa onde nasci, e mais ao fundo, a mítica Serra Geral