quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

A Flor do Maracujá



Pelas rosas, pelos lírios,
Pelas abelhas, sinhá,
Pelas notas mais chorosas
Do canto do sabiá,
Pelo cálice de angústias
Da flor do maracujá!

Pelo jasmim, pelo goivo,
Pelo agreste manacá,
Pelas gotas de sereno
Nas folhas do gravatá,
Pela coroa de espinhos
Da flor do maracujá!

Pelas tranças de mãe-d’água
Que junto da fonte está,
Pelos colibris que brincam
Nas alvas plumas do ubá,
Pelos cravos desenhados
Na flor do maracujá!

Pelas azuis borboletas
Que descem do Panamá,
Pelos tesouros ocultos
Nas minas do Sincorá,
Pelas chagas roxeadas
Da flor do maracujá!

Pelo mar, pelo deserto,
Pelas montanhas, sinhá!
Pelas florestas imensas,
Que falam de Jeová!
Pela lança ensanguentada
Da flor do maracujá!

Por tudo o que o céu revela,
Por tudo o que a terra dá
Eu te juro que minh’alma
De tua alma escrava está!…
Guarda contigo este emblema
Da flor do maracujá!

Não se enojem teus ouvidos
De tantas rimas em – á –
Mas ouve meus juramentos,
Meus cantos, ouve, sinhá!
Te peço pelos mistérios
Da flor do maracujá!

O singelo poema acima reproduzido foi escrito pelo poeta fluminense Luís Nicolau Fagundes Varela (1841 –1871), uma das grandes figuras do nosso romantismo literário. Quem o ler, não deixará de notar muitas similaridades com os escritos dos chamados poetas “populares”. O uso do mote no sexto verso talvez seja a característica mais ressaltada para os que, como eu, conseguem fazer esta associação.

O romantismo, aqui e alhures, bebeu nas fontes populares (assim designadas pelo fato de o nome dos autores de muitas canções, poemas e histórias ter-se perdido em algum lugar do passado). Baladas como a Lenore (Leonor, na tradução exemplar de Alexandre Herculano) foram arrancadas dos jograis e levadas aos salões nobres da Alemanha por Gottfried August Bürger (1704-1794, contemporâneo de Goethe. O próprio autor de Fausto incluiu no seu poema filosófico a Canção do Rei de Tule, curvando-se à tradição, fonte inesgotável na qual os gênios de todas as épocas saciam a sua sede.

Bem, tudo isso para dizer que A Flor do Maracujá, poema de Fagundes Varela, apesar de impregnado do “espírito popular, é uma composição autoral, baseada numa antiga lenda que remete ao Drama da Paixão. Quando Jesus era pregado à cruz, seu sangue espirrou e coloriu a flor branca que crescia na encosta do monte Gólgota. Essa flor é o maracujá, que tem a cor roxeada das chagas de Nosso Senhor.

No blog Nos Passos de Jesus encontrei a mesma explicação etiológica de minha infância sertaneja:

“Missionários espanhóis do século XVI viram a flor do maracujá e ficaram em êxtase. Acharam que sua estrutura representava a Paixão de Cristo. As pétalas e sépalas representavam os apóstolos, as anteras simbolizavam as chagas de Cristo, os três estigmas faziam referência aos três pregos na cruz, e os filamentos a coroa de espinhos... As flores seriam manchadas de roxo em virtude do sangue de Cristo.”

No poema de Fagundes Varela, as referências aparecem sempre nos quintos versos:
“Pelo cálice de angústias”, “Pela coroa de espinhos”, “Pelos cravos desenhados”, “Pelas chagas roxeadas”, “Pela lança ensangüentada”.

E são em número de cinco, porque cinco são os Mistérios Dolorosos da tradição católica.

O mesmo tema recebeu um tratamento, digamos, pitoresco do poeta maranhense Catulo da Paixão Cearense (1863-1946):

A FLOR DO MARACUJÁ

Encontrando-me com um sertanejo
Perto de um pé de maracujá
Eu lhe perguntei:
Diga-me, caro sertanejo,
Por que razão nasce roxa
A flor do maracujá?

Ah, pois então eu lhi conto
A estória que ouvi contá
A razão pro que nasci roxa
A flor do maracujá

Maracujá já foi branco
Eu posso inté lhe ajurá
Mais branco qui caridadi
Mais brando do que o luá

Quando a flor brotava nele
Lá pros cunfim do sertão
Maracujá parecia
Um ninho de argodão

Mais um dia, há muito tempo
Num meis que inté num mi alembro
Si foi maio, si foi junho
Si foi janero ou dezembro

Nosso sinhô Jesus Cristo
Foi condenado a morrer
Numa cruis crucificado
Longe daqui como o quê

Pregaro cristo a martelo
E ao vê tamanha crueza
A natureza inteirinha
Pois-se a chorá di tristeza

Chorava us campu
As foia, as ribera
Sabiá também chorava
Nos gaio a laranjera

E havia junto da cruis
Um pé de maracujá
Carregadinho de flor
Aos pé de nosso sinhô

I o sangue de Jesus Cristo
Sangui pisado de dô
Nus pé du maracujá
Tingia todas as flor

Eis aqui seu moço
A estoria que eu vi contá
A razão proque nasce roxa
A flor do maracujá.

A lenda também frequenta as páginas do poema épico Caramuru, de Santa Rita Durão (1722—1784):

"Nem tu me esquecerás, flor admirada
Em quem não sei se a graça, se a natura
Fez da Paixão do Redentor Sagrada
Uma formosa e natural pintura
Pende com pomos mil sobre a latada
Áureos na cor, redondos na figura
O âmago fresco, doce rubicundo
Que o sangue indica que salvaria o mundo .

Com densa cópia se derrama,
Que muito a vulgar hera é parecida,
Entre sachando pela verde rama
Mil quadros da Paixão do Autor da vida;
Milagre natural que a mente chama
Com impulsos da graça, que a convida,
A pintar sobre a flor aos nossos olhos
A cruz de Cristo, as chagas e os abrolhos.

É na forma redonda, qual diadema,
De pontas, com espinhos, rodeada,
A coluna no meio, e um claro emblema
Das chagas santas e da cruz sagrada;
Vêm-se os três cravos e na parte extrema
Com arte a cruel lança figurada;
A cor é branca, mas de um roxo exangue
Salpicada, recorda o pio sangue.

Prodígio raro, estranha maravilha,
Com que tanto mistério se retrata!
Onde em meio das trevas a fé brilha
Que tanto desconhece a gente ingrata!
Assim, do lado seu nascendo filha
A humana espécie, Deus piedoso trata,
E faz que, quando a graça em si despreza,
Lhe pregue com esta flor a natureza".