domingo, 26 de junho de 2011

Um folheto de cordel e a possível origem do personagem João Grilo

Folheto editado pela Tupynanquim
com capa de Klévisson Viana

Théo Brandão, folclorista alagoano de nomeada, no estudo Seis contos populares do Brasil, dedicou várias páginas a um conto de comprovada universalidade. Não só o conto, mas o seu protagonista também aparece em vários lugares. A história do adivinhão que se vale mais da sorte do que da astúcia vem da mesma seara onde Câmara Cascudo recolheu Adivinha, adivinhão, arrolado entre os Contos tradicionais do Brasil.  O motivo central chegou-nos de Portugal, embora seja corrente na tradição oral de vários países, como Itália, França, Noruega e até mesmo a distante Mongólia. Encontramos, ainda, O velho e o tesouro do rei, dos Contos populares do Brasil, de Silvio Romero, e O Dr. Grillo, dos Contos da Carochinha, do pioneiro Figueiredo Pimentel. As ocorrências são muitas, incluindo até uma variante alagoana, Estória de João Grilo, recolhida e divulgada por Théo Brandão, em 1954, reproduzida depois no estudo já citado.

O adivinhão que recebe do rei a incumbência de encontrar um ladrão misterioso é personagem de um folheto de autoria de Pedro Monteiro: João Grilo, um presepeiro no palácio.  É o mesmo amarelinho de incontáveis histórias de cordel, a começar pelo clássico Proezas de João Grilo, de João Ferreira de Lima, publicado originalmente como Palhaçadas de João Grilo, em 1932. E que, em 1956, entrará, com pompa e circunstância, para a história do teatro brasileiro como o protagonista da peça Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna.

Personagem encontradiço nos contos populares portugueses, nas coleções de Consiglieri Pedroso (História de João Grilo) e Teófilo Braga (João Ratão ou Grilo), a menção mais antiga que conheço está na introdução do Pentamerone(1634-36), de Giambattista Basile. Este autor nos fala, de passagem, de certo Maestro Grillo, protagonista de uma obra cômica, Opera nuova piacevole da ridere de um villano lauratore nomato Grillo, quale volse douentar medico, in rima istoriata (Veneza, 1519). Grillo, fingindo-se de médico, faz com que uma princesa sisuda ria pela primeira vez. Angelo de Gubernatis, na Mitologia zoológica, segundo Teófilo Braga, afirma: “Na Itália,  quando se propõe um enigma para ser adivinhado, ajunta-se ordinariamente como conclusão as palavras – Indovinala, grillo!  (adivinha, grilo)”.[1] Orientalista, Gubernatis, fazendo coro aos estudiosos de seu tempo, associa a expressão ao idiota fingido que acaba por revelar-se esperto, interpretando-o como o sol que, mesmo envolvido na nuvem, ou durante a noite, a tudo vê. Um evidente exagero. Mas a expressão popular vem ao encontro do João Grilo adivinhão que figura, além do folheto de Pedro Monteiro, na última parte das Proezas de João Grilo.
Xilogravura de Erivaldo para a Antologia do Cordel Brasileiro (Global Editora)


Então, reproduzo, abaixo, um trecho do folheto de Pedro Monteiro que, pelas  evidências apresentadas, tem tudo para se tornar um cordel atemporal. Trata da saída de João Grilo do sertão e de sua chegada à corte, onde, por obra do destino, torna-se adivinho:

Largando-se mundo afora,
Com seu pobre matulão,
Pensando vencer na vida
Inventou a arrumação,
De oferecer serviços
Dizendo-se adivinhão.

Depois de andar mil léguas,
Um palácio ele avistou,
Pediu para pernoitar,
O rei de pronto aceitou.
Foi então que o João Grilo
Ligeiro se apresentou.

Como um bom astucioso
Passou-lhe logo a conversa!
O rei ficou inseguro
Não vendo ali controversa;
Mesmo se achando cercado
De muita gente perversa.

Prontamente acreditando
Ser ele um adivinhão,
Disse-lhe: — Meu bom rapaz,
Vens em boa ocasião;
Vejo que este palácio
Está cheio de ladrão.

Tenho notado o sumiço
De joia e de muito ouro,
Diamantes dos mais raros
Avaliado um tesouro,
Eles não têm dado tréguas
Nem pros tapetes de couro!

E ordenou a João Grilo:
— Você não entre em dilema,
Descobrirá os larápios,
Desvendará seu esquema.
Se não descobrir, verá
O tamanho do problema!

Porque se não o fizer,
Não sairá daqui vivo...
E trate de adivinhar
Se não, terei um motivo
Pra querer sua cabeça,
Ou tomá-lo por cativo.

O autor não se esquece de  citar uma das fontes a que recorreu: o grande etnógrafo Câmara Cascudo:

Mestre Câmara Cascudo
 Fez a catalogação
 Desta pérola recolhida
 Na fonte da tradição,
 Fincada lá nos guardados
 Da nossa imaginação



[1] BRAGA, Teófilo. Contos tradicionais do povo português, v. 1, p. 271.