quinta-feira, 24 de julho de 2014

O imortal Ariano

A biografia de Ariano Suassuna está suficientemente espalhada por vários sítios (se eu escrevesse site, ele ficaria bravo) da Internet. Sua obra está ao alcance de todos, em lojas físicas e virtuais. Portanto, eu queria falar, nesse espaço, só um pouquinho, do seu legado. Ariano é daqueles autores que não nascem dos convescotes. Ele é forjado e se forja da matéria viva. Apesar de retrabalhar os arquétipos, seu trabalho talvez diga mais da realidade que a produção pretensamente realista que vemos por aí. Tipos como o preguiçoso, o valentão, o mentiroso, o espertalhão, o padre desonesto, o coronel caricato são — ou eram — encontrados  sem muita dificuldade no sertão de carne, pedra e osso.

Os brincantes Chicó e João Grilo, de sua criação mais famosa, o Auto da Compadecida, poderiam saltar do palco para o Bumba meu Boi ou para os maracatus, que ninguém estranharia. Sua obra dialoga com Plauto, Gil Vicente, Calderón de La Barca, Cervantes, e mostra quão frágeis são as fronteiras estabelecidas da cultura.

O paraibano Ariano não se amofinou com a tragédia que marcou definitivamente sua vida — o assassinato do pai, João Suassuna no espocar da Revolução de 30. Antes, aproveitou seu exílio no sertão para juntar os muitos retalhos da sabença caatingueira, ampliando depois com a contribuição de todas as sabenças, e, deles, fez a colcha com que nos envolveu.

Os poetas do povo, seus amigos desde sempre, sentiram a sua partida. Klévisson Viana, cearense de Quixeramobim, autor de O pecador arrependido aos pés da Compadecida, assim se manifestou:

Ariano Suassuna
Viverá eternamente.
Seu corpo físico perece,
Mas sua obra contundente
Servirá sempre de norte
Para orientar a gente.

Pedro Monteiro, piauiense, que vive em São Paulo, autor de João Grilo um presepeiro no palácio e de Chicó, o menino das cem mentiras, dedicou ao mestre essa setilha:

A cultura popular
Tem hoje grande lacuna,
A morte sempre inclemente
É uma perversa gatuna,
Fila cristãos e ateus,
Desta vez levou pra Deus
Ariano Suassuna.

Paulo de Tarso, cearense de Tauá, cravou estes versos:

A cultura brasileira
Muito entristecida está.
Faleceu nosso Ariano,
melhor que ele não há.
Por aqui os sentimentos 
Do poeta de Tauá.

O titular deste blogue, Marco Haurélio, dedicou-lhe esta trova:

Ariano não morreu,
Anote no seu caderno.
Jamais morre quem nasceu
Com o dom de ser eterno.

De Calderón de La Barca (1600-1681), poeta e dramaturgo espanhol de grande importância, pincei esta décima que da peça A vida é sonho, que Ariano, sempre que podia, declamava, estabelecendo a ponte da tradição “culta” ibérica com a poesia “popular” do Nordeste:

Eu sonho que estou aqui
de correntes carregado
e sonhei que noutro estado
mais lisonjeiro me vi.
Que é a vida? Um frenesi.
Que é a vida? Uma ilusão,
uma sombra, uma ficção;
o maior bem é tristonho,
porque toda a vida é sonho
e os sonhos, sonhos são.

(Tradução: Renata Pallotini)

E, para encerrar, mais uma trova deste que vos escreve:

Senhora Compadecida,
De incomensurável brilho,
Findo o sonho que é a vida,
Recebei o vosso filho.

Assim seja.

Publicado também na coluna Cordel na Rede, no Blog da Nova Alexandria.

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