quinta-feira, 28 de abril de 2016

Cordéis atemporais: História de Roberto do Diabo

Edição UNIFOR. Capa: Abraão Batista.
Acervo: Fonds Raymond Cantel.


Roberto do Diabo é personagem de lenda de grande repercussão que migrou das vozes anônimas divulgadoras de tradições antigas para as páginas da literatura popular de mais de uma nação. A tradução portuguesa de Jerônimo Moreira de Carvalho, no século XVIII, funde tradições diversas e dispersas sobre a figura lendária do facínora que comete todos os excessos até um encontro libertador com um anjo de Deus. Graças a uma frase sacrílega de uma mãe desesperada por não dar ao duque Alberto da Normandia um herdeiro, Roberto nasce por influência do mal. Aos sete anos, mata com uma punhalada o seu mestre. Desdobra-se em crueldades até tentar o parricídio, razão por que é banido do ducado. Com a cabeça posta a prêmio, passa a agir com mais brutalidade, matando, desonrando, pilhando, num frenesi maléfico que parece não ter limites. Quando resolve procurar Inda, sua mãe, descobre a verdade sobre sua origem, motivadora de uma natureza bestial.

Busca, a partir daí, a purificação, rompendo com seus comparsas, os quais, na impossibilidade de conduzi-los à luz, são mortos por ele. A tentativa de redenção envolve uma viagem a Roma, onde confessa-se diante do Sumo Pontífice. Este pede para que procure um santo homem, um eremita, que, por intermédio de um anjo, mostra-lhe o caminho da purificação: deverá fingir-se de louco e comer apenas o sobejo dos cães. Em Roma, onde cumpre penitência, coberto de andrajos, é observado sem saber pela filha do imperador local, que o ama em segredo. Quando a cidade é invadida pelos sarracenos, Roberto, cumprindo ordem divina, torna-se o Cavaleiro Branco, encontrando, por milagre, o cavalo e as armas com os quais vai à batalha. De Roberto nascerá Ricarte da Normandia, um dos Doze Pares de França, a eminência parda do exército de Carlos Magno.

Assim diz a lenda. Mas não é o que diz a História.

As fontes remotas para esta história que atravessou o Atlântico são, segundo Câmara Cascudo, três: as Chroniques de Normandie, que citam o ano de 751 e informam sobre o conde da Neustria, Aubert, pai de Roberto. Não há, neste documento, referência ao pedido sacrílego da mãe, Inde (ou Inda). A segunda é um poema anônimo de autor normando, escrita no século XIII, mesma época de um lay bretão, levado à Inglaterra pelos seguidores de Guilherme, o Conquistador, invasor normando fundador uma nova dinastia. A terceira, de traço marcadamente cristão, é o Miracle de Nostre Dame de Robert Le Diable, onde abundam os episódios piedosos.

O enredo irresistível alimentou a literatura de cordel portuguesa, dando origem a uma versão em quadras em redondilha maior. No Brasil, há a versão que lemos, atribuída, por alguns, a João Martins de Athayde. Os poetas e folheteiros João Vicente da Silva, paraibano, e João Firmino Cabral, sergipano, no entanto, afirmam que a obra é de autoria de Leandro Gomes de Barros. Esta também era a opinião da saudosa pesquisadora do cordel, Francisca Neuma Fechine Borges, que, a serviço da Fundação Casa de Rui Barbosa, na década de 1970, realizou um cotejo da História de Roberto do Diabo com outros títulos de Leandro, especialmente com a História de João da Cruz, reunindo argumentos robustos para sua afirmação.

Roberto, bandido cruel, inimigo das virtudes, pode ser isentado de seus futuros crimes, vítima que foi da fatalidade. São comuns nos contos populares as concepções bestiais, príncipes com forma animal, como indício de punição à imprudência materna. Também são encontráveis histórias em que o herói age disfarçado até o momento em que um falso herói tenta usurpar-lhe a glória. Não será este o modelo dos modernos super-heróis ocultos sob capas, máscaras e metamorfoses?

E, entre os romances trágicos do Nordeste, a História do Valente Vilela, cujo enredo descreve um cangaceiro de índole perversa que, de súbito, se arrepende, tornando-se um eremita, não é uma versão simplificada do bandoleiro que busca a expiação por meio da mortificação do corpo? Não é este o motivo principal do Augusto Matraga de Guimarães Rosa, escritor que sabia buscar no patrimônio cultural comum a muitos povos as referências para sua obra inigualada? 

 Trecho inicial do romance:

Na província da Normandia,
na remota antiguidade,
viveu o duque Alberto,
cheio de fraternidade.
Era ele o soberano
de toda aquela cidade.

Ele era um moço solteiro,
não pensava em casamento,
não era por egoísmo,
nem por ser rico avarento:
era porque no futuro
nunca pensou um momento.

Disse um vassalo ao duque:
— Sei que é bom ser solteiro.
o homem que não se casa
vai caminhar sem roteiro.
veja bem que seu ducado
mais tarde precisa herdeiro.

O duque, ouvindo estas frases,
mudou logo o pensamento.
ficou crendo no vassalo
naquele mesmo momento
e disse que nas mãos dele
estava o seu casamento.

Seguiu então o vassalo
foi dar parte na cidade
aquelas pessoas doutas
de alta capacidade
que o duque prometia
fazer a sua vontade.

Ficaram todos contentes
foram então consultar
qual era a moça capaz
daquele duque casar
depois da consulta feita
poderam então acertar.

A duqueza de Borgonha
foi essa a moça escolhida.
eles seguiram com medo
desta jornada perdida,
mas ela mandou o sim
da proposta referida.

E, poucos dias depois,
tiveram então de casar.
foi uma festa tão grande
que não se pode contar.
eu não conto neste livro
pra ele não aumentar.

Depois dos jovens casados,
ficou tudo satisfeito
porque mais tarde teriam
quem punisse o seu direito.
O ducado tinha herdeiro
e o povo tinha conceito.




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