segunda-feira, 2 de maio de 2016

Cordéis atemporais: História do Cachorro dos Mortos

Capa de O cachorro dos mortos, Tipografia São Francisco,
erradamente atribuída a João Martins de Athayde.


Escrito por Leandro Gomes de Barros, provavelmente em 1906, O cachorro dos mortos é considerado por muitos cordelistas, a exemplo de Klévisson Viana, Arievaldo Viana e Marciano Medeiros, o mais importante cordel dramático de todos os tempos. Poeta de muitos recursos, que trabalhava com igual maestria narrativas de aventura (História de Juvenal e o dragão), histórias de espertalhões (A vida de Cancão de Fogo e o seu testamentoO cavalo que defecava dinheiro) e romances trágicos (Os sofrimentos de AlziraA força do amor), Leandro alcançaria a imortalidade se de sua pena houvesse saído apenas a história do cachorro Calar. Com o protagonista da história aprendemos que a expressão fidelidade canina nada tem de desonrosa, pelo contrário. Muito antes de Graciliano Ramos escrever Vidas secas, romance em que a personagem mais humana é a cachorrinha Baleia, Leandro confere ao velho cachorro Calar, testemunha solitária de um crime bárbaro, características quase sobrenaturais. De certa forma, ele é o elo evocado por sua dona Angelita, vítima da tocaia armada pelo feroz Valdivino, para que seja feita a improvável justiça:

Olhou pra uma gameleira
Que tinha junto à estrada,
Dizendo: — E tu gameleira,
Viste a cena passada?
És uma das testemunhas
Quando a hora for chegada.

(...)

E essa flor que por ela
Há festa aqui todo ano
Há de tirar a justiça
De uma suspeita ou engano,
Dirá ao juiz: Venha ver
Quem matou a Floriano!

O tema que inspirou Leandro é o da natureza denunciante, definida por Luís da Câmara Cascudo, que enxergou, com os motivos que o compõem, um ciclo na contística popular: “O ato criminoso é revelado pela denúncia de ramos, pedras, ossos, flores, frutas, aves, animais”.[1] No livro Contos e fábulas do Brasil, de minha autoria, discorri sobre o tema:

“Os Irmãos Grimm forneceram aos estudiosos o conto-tipo mais completo com o tema natureza denunciante: A luz do sol o revelará (Die klare Sonne bringt's an den Tag). Resumidamente, narra como um alfaiate faminto ameaça de morte um judeu para roubá-lo, embora este o tenha alertado que só levava oito centavos. Antes de morrer, o judeu invoca a única testemunha possível: a luz do sol. Tempos depois, já com família constituída, o assassino vê a luz do sol formar vários círculos no pires de café que tinha às mãos. Inadvertidamente, relembra o episódio e, instado pela mulher, acaba confessando. A proverbial e fictícia indiscrição feminina, na figura da comadre confidente, levará ao tribunal e depois à execução o assassino. (...) Uma história do sexto século antes de Cristo, conservada pela memória popular com o auxilio dos poetas, é o antecedente ilustre deste tema. 

O poeta Íbicus, natural de Régio, Magna Grécia, arrastado até uma ilha deserta por salteadores que desejavam roubá-lo, é inapelavelmente morto. Antes de expirar, suplica a uns grous que voavam sobre a ilha que servissem de testemunhas de seu martírio.  Anos mais tarde, os assassinos do bardo, num anfiteatro de Corinto, ao verem os mesmos pássaros sobrevoando o local, dizem em tom de chiste: ‘Lá vão as testemunhas e vingadoras de Íbicus’. Os circunstantes ouvem a pilhéria e ligam-na ao desaparecimento do poeta. Denunciados, os assassinos são presos, julgados e executados.[2] Câmara Cascudo apresenta, com enredo semelhante, As testemunhas de Valdivino. Testemunhas estas já abrasileiradas na forma de garças.”[3]


O mais curioso é que, no conto registrado por Câmara Cascudo, acima citado, Valdivino é o nome da vítima. No romance de Leandro, é o algoz. No conto O testemunho das gotas de chuva, por mim recolhido, há um assassinato sem testemunhas aparente, a não ser os pingos de chuva, aos quais a vítima se dirige, e que, tempos depois, terminam por denunciar o criminoso. Acredito que a ideia fulcral de O cachorro dos mortos esteja na cena em que Angelita, à beira da morte, apela para uma justiça imanente pela punição de Valdivino. O motivo pode ter servido de moldura para uma lenda, talvez inspirada em uma festa religiosa, como a descrita na história, ambientada na Bahia, no início do século XIX.



[1]  In: Contos tradicionais do Brasil. São Paulo: Global Editora, 1999, p. 22.
[2] Veja-se Cascudo, Luís da Câmara. Os grous de Íbicus voam em português. In Superstição no Brasil, p. 189.
[3] Contos e fábulas do Brasil. São Paulo: Nova Alexandria, 2011.Alexa, 2011.

O Imortal Mestre Azulão

Assis Angelo, Azulão, Bule-Bule, Klévisson Viana, Marco Haurélio
e João Firmino Cabral (Fortaleza, 2008)

Em que pese a correria dos últimos dias, seria injusto comigo mesmo e com a história do cordel se não prestasse uma homenagem a João José da Silva, o imortal Mestre Azulão, que nos deixou no último 12 de abril, aos 84 anos. Cordelista, repentista, compositor, autor de páginas imortais da poesia popular, Azulão deixa um legado de centenas, talvez milhares de cordéis, incluindo uma vasta produção de romances.

Para este pequeno gigante que tive a honra de conhecer em 2006 e reencontrei em muitas outras oportunidades, escrevi estes versos, seguindo a picada aberta por outros poetas, como Klévisson Viana, Victor Alvin, Arievaldo Viana,  Dalinha Catunda e Rouxinol do Rinaré:

Quando José João dos Santos
Veio habitar este plano,
O seu nome foi gravado
Por mãos do divino arcano
Para plantar a semente
Da poesia na gente,
Servindo ao Pai Soberano.

Foram marcas registradas
Os óculos e o chapéu.
Partiu, porém nos deixou
Sua obra como troféu
Que a nossa lira abrilhanta:
Mestre Azulão hoje canta
Nos campos vastos do céu.

 
Homenagem da Tupynanquim Editora.