quinta-feira, 19 de julho de 2018

O Lobisomem, um Mito Universal

Ataque de um lobisomem em xilogravura de Lucas Cranach o Velho, 1512.

Uma historieta, contada à luz da fogueira ou da lamparina, nos serões noturnos do Brasil interior por quase cinco séculos, fala sobre dois companheiros que viajam à luz da lua, quando um deles cria um pretexto para se ausentar; logo em seguida, o que ficara na estrada é atacada por um animal enorme, da parecência de cachorro, embora mais feroz e ameaçador. O sujeito, apesar do medo e do desespero, consegue ferir o atacante, decepando-lhe uma das orelhas. Espera em vão pelo amigo até decidir continuar a viagem. Dias depois, vai à casa de um parente do desaparecido e descobre que ele está muito mal de saúde. Vai até o quarto onde o outro convalesce e constata que lhe falta uma orelha.
O lobisomem, assombração conhecida em todo o Brasil, não faltando, inclusive, testemunhas oculares, gente que se viu cara a fuça com o bicho, corre o mundo com versões e variantes que encheriam muitas páginas. Gustavo Barroso, no livro O sertão e o mundo, reproduz uma versão cearense da história acima, e, citando Léon Wieger, autor de Folk-lore chinoise (Folclore chinês), resume a lenda de Kiang-Tcheu, velho camponês que, depois de curar-se de uma moléstia, desaparece sem deixar vestígios. Um lenhador que adentra a floresta é acossado por um enorme lobo, mas escapa subindo a uma árvore, mesmo tendo sua calça abocanhada pelo animal, ao qual fere com sua machadinha. No outro dia, seguindo o rastro de sangue vai ter à casa do camponês e o encontra ferido na cabeça com pedaços de suas calças entre os dentes.
Mestre Câmara Cascudo consigna a universalidade do mito. Sua presença maléfica se encontra nas páginas de Plínio, o Velho, Heródoto, Petrônio, Ovídio e Petrônio. Este último, no capítulo LXII do Satyricon, nos conta a história de Niceros que, em companhia de um soldado, deambulava à noite sob a lua da lua cheia. Quando passavam por um cemitério, o soldado livra-se das roupas, urinando sobre elas, enquanto conjura os astros, transformando-se em lobo e fugindo em seguida através da mata. Niceros chega à casa de Melissa de Tarento, que lhe conta uma história estranha e aterrorizante: um lobo atacara seu rebanho e fugira, depois de ser ferido no pescoço por um escravo. No outro dia, Niceros encontra o companheiro de jornada ferido na nuca. Era, com efeito, um licantropo.
Amparada no medo ancestral dos predadores, dos quais o lobo, animal totêmico, parece ser exemplo notório, a origem da crença em lobisomens é motivo de muita controvérsia. Licaon, rei da Arcádia, foi transformado em lobo por Zeus, por haver infringido as regras da hospitalidade. A Arcádia era a terra dos pastores e do poeta Evandro, que, segundo a tradição, levou a festa das Lupercais para Roma. Havia, por outro lado, um culto ao Zeus-Licaeus, identificado ao Baal fenício, igualmente um deus da tempestade. Licaon deve ter sido um herói civilizador que reelaborações posteriores do mito transformaram num rei impenitente. Na Roma do tempo de Augusto, cujo herói epônimo fora amamentado por uma loba, Virgílio releu a lenda sob o viés da metamorfose punitiva.

A besta de Gevaudan, que entre 1764 e 1767, assombrou a França sob Luís XV, matando em torno de cem pessoas, seria um loup-garou.
Há mais de uma explicação para a metamorfose lupina, mas as suspeitas recaem, quase sempre, sobre os sujeitos amarelos e pálidos, que, nas noites de quinta para sexta-feira, procuram um local onde os animais costumam espojar-se e, depois de despirem-se, viram as roupas ao avesso e vestem-nas, começando a rolar sobre o bosteiro. Depois, transformados, vão correr fado, visitando sete cemitérios e sete vilas, devorando rebanhos, pequenas criações e até crianças. Os “escolhidos” são os filhos de compadre com comadre, sobrinho com afilhada, o sétimo filho “homem”, o filho nascido depois de sete filhas etc.
Câmara Cascudo descreve, com sua peculiar prosa poética, a sina do lobisomem sertanejo:
“Até o terceiro cantar do galo, o lobisomem galopa e rincha, berra e foge, espalhando terror. Ataca os caminhantes solitários para sugar-lhes o sangue. Vendo duas pessoas, esconde-se. Picando-o à faca, “quebram” o fado por aquela noite. É vulnerável a tiro. Some-se ouvindo o canto do galo. O galo, em todas as histórias e lendas sertanejas, é o libertador do medo, o vencedor das trevas, augúrio do Sol, arauto do dia longínquo. Não há fantasma ou alma penada que resista a seu canto sonoro.”
No livro Contos e lendas da Terra do Sol, escrito em parceria com Wilson Marques, coligimos uma lenda sobrenatural com o temível lobisomem. Na literatura de cordel, por incrível que pareça, não há muitos títulos enfocando o tema. De cabeça, me vêm quatro histórias: O lubzhomem do mar, de Luís da Costa Pinheiro, que Câmara Cascudo incluiu em Geografia dos mitos brasileiros; O lobisomem encantado, de Manoel d’Almeida Filho, da coleção Luzeiro, e O lobisomem da Avenida São João, de Costa Senna, um resumo do romance em prosa do mesmo autor, e A Malassombrada peleja de Pedro Tatu com o Lobisomem, de Klévisson Viana. Por outro lado, temos um autor do gênero, Victor Alvim, que assumiu, sem medo nem culpa, a acunha Lobisomem. O lobisomem, como totem ou tabu, vive na boca do povo e na verve de nossos aedos.

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