quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Coletânea de contos populares será lançada na Casa Tombada




Vozes da tradição (editora IMEPH), livro que tem por base uma recolha no interior da Bahia e em Araxá (MG), será lançado sexta, dia 20 de setembro, a partir das 20:30h, na Casa Tombada, em Perdizes. Além de um bate-papo com os autores, Marco Haurélio e Lucélia Borges, haverá, ainda, uma roda de histórias. 

Para conhecer melhor o livro, o ideal é ler a breve apresentação, escrita por Marco Haurélio, reproduzida abaixo:

Quando os irmãos Jakob e Wilhelm Grimm registraram, em 1812, a literatura oral de seu país, a Alemanha, não faziam ideia do sucesso de sua iniciativa, em especial no tangente aos contos populares, a parte mais significativa de sua recolha. O fato é que, com o êxito alcançado pelos Contos da criança e do lar, outros pesquisadores europeus, impregnados do mesmo espírito romântico que moveu os alemães, foram a campo em busca de lendas, baladas, romances e das velhas histórias narradas ao pé do fogo, sementes espargidas e cultivadas no fértil solo da imaginação humana. Quando o termo folclore foi consignado em 1848, pelo inglês William John Thoms, sob o pseudônimo de Ambrose Merton, em artigo publicado na revista The Atheneum, o conto tradicional, irmão da lenda e filho do mito, já havia alcançado, em vários países, a merecida atenção de escritores e estudiosos.

Antes, a novelística popular mereceu registros em recriações literárias, algumas em versos, como Os contos de Canterbury (1387), de Geoffrey Chaucer, e os lais de Maria de França, ainda no século XII. Em prosa, destacam-se as jornadas do Decameron (1348-53), de Giovanni Boccaccio, o livro do Conde Lucanor (1335), de D. Juan Manuel, Os contos e histórias de proveito e exemplo (1575), de Gonçalo Fernandes Trancoso, além do impressionante Pentamerone (1634-36), de Giambattista Basile, obra-prima do barroco italiano. Inspirado neste último, sem a mesma espontaneidade, Contos do tempo passado ou Contos da Mamãe Gansa (1697), de Charles Perrault, coletânea moralista celebrizada pelo tempo e contemplada com muitas reedições, levou à corte francesa as histórias da gente humilde, devidamente polidas e adaptadas ao gosto do (nobre) freguês.

Isso sem falar no conjunto de histórias prevalentemente maravilhosas provenientes do mundo árabe, o monumental livro das Mil e uma noites, traduzido e apresentado ao Ocidente pelo orientalista francês Antoine Galland, cujo primeiro volume foi publicado em 1704.

Coube a Adolfo Coelho a empresa de ser o desbravador desta seara em Portugal, com Contos populares portugueses, publicado em 1879. Foi seguido por Consiglieri Pedroso, autor de Portuguese folktales (1882), em edição inglesa, e por Teófilo Braga, com Contos tradicionais do povo português (1883). Igualmente relevante, a antologia de Contos tradicionais do Algarve, de Ataíde Oliveira, reuniu 400 contos do sul de Portugal, ampliando a área geográfica e as possibilidades de comparação e confronto.

No Brasil, a iniciativa pioneira coube a Silvio Romero, autor de Contos populares do Brasil (1885), publicado originalmente em Portugal, com organização e notas de Teófilo Braga. Antes, o estudo do geólogo canadense Charles Frederik Hartt, Os mitos amazônicos da tartaruga (1875), com o Jabuti, grande trickster dos contos indígenas, e a coletânea O selvagem (1876), do General Couto de Magalhães, apresentaram contos de origem indígena ou tradicionalizados entre os povos nativos da Amazônia. A coletânea de Sílvio Romero, no entanto, teve o mérito de ser abrangente, enfocando, além dos supostos contos indígenas, contos de origem africana e europeia. Há que se levar em conta o esforço do coletor, que se dispensou de um trabalho comparativo, privilegiando critérios antropológicos e raciais, em voga na época. E, por isso mesmo, incorreu em equívocos, como o de arrolar entre os contos africanos Doutor Botelho, história na qual um macaco aparece como auxiliar do herói de origem humilde, que, graças aos seus préstimos, acaba casando com uma princesa. Apenas esta breve descrição nos mostra ser esta, em linhas gerais, a hoje conhecidíssima história do Gato de botas, divulgada por Charles Perrault, na versão literária do século XVIII. A coletânea se reveste de grande importância, também, por abrir uma picada, inspirando, em diferentes épocas, outros pesquisadores das tradições populares.

Imprescindíveis são as obras de Lindolfo Gomes (Contos populares brasileiros, 1915), João da Silva Campos (Contos e fábulas populares da Bahia, 1928), Aluísio de Almeida (142 histórias brasileiras, 1951) e Luís da Câmara Cascudo (Contos tradicionais do Brasil, 1946). Mais recentemente, sobressaíram-se Ruth Guimarães, Waldemar Iglésias Fernandez, Oswaldo Elias Xidieh, Doralice Alcoforado, Bráulio do Nascimento, Altimar Pimentel e Edil Costa.

Ainda assim, são, lamentavelmente, raras as coletâneas de contos tradicionais brasileiros provenientes da fonte da memória. Raras diante das possibilidades oferecidas por um país de dimensões continentais, diverso na cultura e nas variantes linguísticas, nascidas das profundas desigualdades, reveladoras de nossas mazelas, mas também da resistência de povos de diferentes matrizes e matizes. O trabalho que empreendi, com a companheira Lucélia, supre em parte esta lacuna, preservando, sempre que possível, as marcas da oralidade, o estilo e a verve dos contadores, embora seja impossível reproduzir o gestual, as pantomimas e o momento em que os contos foram registrados.

Um exemplo: a excelente contadora Enedina Rodrigues de Sousa forneceu-nos as histórias de que se tornou guardiã numa noite de muito frio, fato raro na região onde mora, no quintal de sua casa, povoado de Palma, município de Serra do Ramalho, Bahia. O São Francisco, o rio de sua aldeia, era o cenário de fundo. Entre uma história e outra, ela cantou chulas e relembrou as debulhas de feijão do seu tempo de menina, ocasião em que as histórias eram contadas em jornadas que vincaram sua memória afetiva.

Apesar das dificuldades demandadas por uma iniciativa como esta, a recolha de contos de “primeiro grau” será sempre bem-vinda, especialmente por mostrar que, em pleno século XXI, as árvores do Jardim da Tradição ainda dão saborosos frutos. Este trabalho, como outros de minha lavra (Contos folclóricos Brasileiros e Contos e fábulas do Brasil), encontra-se classificado de acordo com o Catálogo Internacional do Conto Popular, o Sistema ATU. As principais referências vêm do monumental Catálogo dos contos tradicionais portugueses (com as versões análogas dos países lusófonos), de Isabel David Cardigos e Paulo Jorge Correia, com o qual, orgulhosamente, colaborei. O professor Paulo é responsável, ainda, pela classificação de boa parte dos contos deste volume.
Na presente coletânea, todos os informantes e os locais da recolha são identificados. A maior parte dos contos pertence ao gênero maravilhoso, menos encontradiço hoje, devido a uma estrutura mais complexa, resultante de sua assombrosa ancianidade. É o caso de Guimar e Guimarim, que pertence ao ciclo de histórias que têm origem no mito de Jasão e Medeia, no qual o herói, numa terra estrangeira, conta com o auxílio da filha do rei para realizar tarefas impossíveis.

Se a literatura dos antigos salvou do esquecimento os deuses e heróis, os contos de tradição oral, por outro lado, preservam episódios e estruturas arcaicas, informações sobre ritos e mitos, nos conectando a um tempo que, talvez, somente nos sonhos e nos domínios do inconsciente ousássemos perscrutar.