quinta-feira, 21 de junho de 2012

O outro lado da História

Em dez pés de martelo alagoano

Zumbi. Óleo de Antônio Parreiras























Inda guardo no arquivo da memória
O engodo dos livros escolares 
Que do herói imbatível de Palmares 
Defraudou a grandeza meritória, 
Vou mostrar o outro lado da história 
Com o brado de um povo soberano, 
Que jamais se curvou a tal engano, 
Semeado na classe dominante. 
O meu verso é navalha bem cortante 
Nos dez pés de martelo alagoano. 
 

Me recordo do príncipe altaneiro 
Dando o grito da tal independência, 
Que depois virou uma indecência, 
Alugando o Brasil ao estrangeiro. 
No meu livro, vi D. Pedro primeiro 
Retratado num gesto sobre-humano, 
Pra depois converter-se num tirano, 
Assassino cruel, escravocrata 
Defensor do castigo e da chibata 
Nos dez pés de martelo alagoano. 
 

No meu livro escolar não encontrei 
Nada acerca de Antônio Conselheiro,            
Que bradou contra o jugo traiçoeiro, 
Embutido na vil letra da Lei – 
Esperando o retorno do seu rei 
Pra pôr fim ao sofrimento humano, 
Bastião, o guerreiro lusitano, 
Da estirpe de Aquiles e Roldão, 
Transformai este mar em um sertão 
Nos dez pés de martelo alagoano. 
 

Enfrentando o raio e a procela, 
Desbravando o mar desconhecido, 
Transportando um povo embrutecido, 
Vai surgindo bonita caravela, 
Com a morte sinistra, dentro dela, 
Atracou neste solo Americano, 
Invadido por um tropel insano, 
Que irão se chamar descobridores, 
Urubus imitando beija-flores 
Nos dez pés de martelo alagoano. 
 

No meu livro, eu vi em outra parte 
Os valentes e fortes bandeirantes, 
Corajosos e bravos viajantes, 
Descendentes do deus romano Marte - 
Mas agora eu digo com minha arte: 
A mentira causou enorme dano; 
Foram eles um grupo desumano; 
De ladrões, covardes, homicidas. 
Eu os chamo “bandidos, genocidas” 
Nos dez pés de martelo alagoano. 
 

Admiro Castro Alves, o poeta 
Que lutou contra a vil escravidão, 
Tiradentes, emblema da nação, 
Que morreu sem trair a sua meta, 
Conselheiro, pra nós, é um profeta 
Expressando seu verbo soberano, 
Chico Mendes, o grande ser humano, 
Defensor da floresta e da vida. 
Peço a Deus que a todos dê guarida 
Nos dez pés de martelo alagoano.
(Musicado pelo poeta e intérprete João Gomes de Sá)
Nota: Gênero tradicional da cantoria de viola, aproveitado excepcionalmente pela literatura de cordel, o martelo alagoano tem esquema de rima A B B A A C C D D C. Na música popular, foi reaproveitado pelo cantor e compositor pernambucano Alceu valença. A faixa "Martelo alagoano", que faz parte do antológico álbum Cavalo de pau, traz estrofes como a abaixo reproduzida, que homenageia os grandes nomes da cantoria de viola do Nordeste:

Da cidade de Campina e do Monteiro
De Passira Panelas e Ingazeira
São José do Egito Capoeira
é viola é ganzá e é pandeiro
Salve Dimas e Pinto do Monteiro
Lourival trocadilho sobre-humano
Vitorino o teu verso tem bom plano
Oliveira Castanha e Beija-Flor
e Mocinha de Passira é um condor
nos dez pés de martelo alagoano.

domingo, 17 de junho de 2012

Meus folhetos de cordel


Recebo muitos e-mails solicitando títulos de minha autoria para compra. Os livros são encontráveis nas principais livrarias. Mas os folhetos e livretos de cordel, à venda em bancas de jornal ou de folhetos tradicionais, não são encontrados com a mesma facilidade. Um site, pelo menos, tem quase todos os meus títulos tradicionais à venda. É o Magazine Gibi, coordenado por Wanderson Nicoló. Nele, o leitor encontrará uma ampla gama de folhetos e livros, de autores clássicos e contemporâneos. Vale uma visita.



sábado, 16 de junho de 2012

O Sr. Brasil e um causo de Lampião



A convite da Editora Nova Alexandria, estou a preparar o novo livro de causos do Sr. Brasil, Rolando Boldrin, Histórias de Contar o Brasil, que será lançado na Bienal do Livro de São Paulo. Nesta sexta, 15, fui conversar com o autor do livro, que foi presenteado pela diretora da Nova Alexandria, Rosa Zuccherato, com todos os exemplares da coleção Clássicos em Cordel, além do compêndio Contos e Fábulas do Brasil.

Depois de contar muitas histórias, com mesma espontaneidade com que comanda o programa Sr. Brasil, há cinco anos no ar pela TV Cultura, perguntei a Boldrin se ele conhecia algum “causo de Lampião”. Resposta afirmativa, eu apresentei-lhe este contado por um amigo paraibano, Leudo, que vive em Serra do Ramalho, na Bahia:

Lampião e seus cabras, depois de um dos muitos enfrentamentos com as volantes que seguiam em seu encalço, foram parar num descampado, onde só havia uma casa. A dona, uma viúva, logo reconheceu o Capitão e convidou-o a entrar. Depois de servido o café, apresentou-lhe o filho, já rapazote, cujo sonho era entrar para o bando.

— E o que ele sabe fazer, dona?

— Mostra pro capitão, filho.

O moleque foi até o terreiro, deu três saltos mortais e, antes de cair, acertou, com sua garrucha, um passarinho que voava a uma razoável distância.

Aproximou-se todo pancoso de Lampião, que não teve duvidas: sacou a pistola e — pou! — acabou com a curta carreira de cangaceiro do rapaz.

A mãe, desesperada, perguntou:

— Capitão, por que o senhor fez isso? O meu filho era seu admirador.

Lembrando das habilidades do rapaz, Lampião emendou:

— Dona, seu filho é, ou melhor, era bom mesmo! E eu lá sou besta de criar cobra pra me morder?!


quinta-feira, 14 de junho de 2012

SOCORRO LIRA GANHA PRÊMIO NACIONAL

Por Assis Ângelo via blog.



Atenção, espalhem a boa nova e digam aos quatro ventos que a Paraíba tem motivo mais do que suficiente para fazer festa desde ontem à noite, quando uma de suas filhas mais talentosas e queridas, Socorro Lira, ganhou reconhecimento nacional ao ser agraciada com o disputado prêmio de Melhor Cantora, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. 


O prêmio, entregue sob uma chuva de aplausos e vivas, deveu-se à excelência de qualidade de um seus discos, o CD Lua Bonita, que gravado de forma independente entre 2008 e 2010 e lançado oficialmente em 2011, em homenagem ao esquecido compositor e intérprete - seu conterrâneo - Zé do Norte, de batismo Alfredo Ricardo do Nascimento, que desapareceu pobre e adoentado no começo do ano de 1992.


É dele, Zé, a música que dá título ao disco de Socorro e a adaptação da toada-baião Mulhé Rendeira, gravada inúmeras vezes no Brasil e no Exterior desde o seu lançamento na trilha sonora do filme O Cangaceiro, de Lima Barreto. 


Mulhé Rendeira foi gravada pela primeira pelo cantor Homero Marques, com acompanhamento do conjunto musical paulistano Demônios da Garoa, em 1953.


A premiação como Melhor Cantora é um reconhecimento tardio, mas bem-vindo, do corpo de jurados da 23ª Edição do Prêmio de Música Brasileira ao enorme talento de Socorro Lira.


Concorreram ao Prêmio artistas escolhidos numa lista de mais de 800 nomes. 


Saiba mais sobre o CD Lua Bonita e sobre a própria Socorro Lira clicando:http://www.socorrolira.com.br/projetos_interna.php?id=1


E veja ela interpretando uma de suas composições no programa Sr. Brasil. Clique: 


segunda-feira, 11 de junho de 2012

O mais completo cordel sobre o Rei do Baião


Vida e Obra de Gonzagão - O mais completo Cordel


Muitos livros já foram escritos sobre Luiz Gonzaga. Na literatura de cordel, então, é impossível precisar a quantidade de folhetos que enfocam o Rei do Baião. É a personalidade musical mais biografada, ao lado de Roberto Carlos e Raul Seixas. Nem todos os folhetos, verdade seja dita, são laudatórios, mas a grande maioria rende tributo ao grande artista pernambucano, glória da cultura brasileira. A diferença deste Vida e obra de Gonzagão, assinado por Cacá Lopes, é o cuidado na pesquisa, que rendeu 380 estrofes. Desde o nascimento na fazenda Caiçara, município de Exu, no sertão pernambucano, até a morte no Recife, passando pelas homenagens póstumas, a impressionante trajetória do Rei do Baião ganha seu mais completo registro em cordel.

Para entendermos melhor a presença de Luiz Gonzaga na poesia popular brasileira, apresentarei uma pequena antologia, com estrofes pinçadas de cordéis e poemas.

Começarei por esta estrofe em martelo agalopado, de autoria de Oliveira Francisco de Melo, o Oliveira de Panelas, extraída da apresentação  do Dicionário Gonzagueano, de A a Z , de Assis Ângelo. Estão reunidos numa única estrofe o local e a data de nascimento, a trajetória musical e a partida, a dois de agosto de 1989, do Rei do Baião. Que biógrafo, por mais abalizado, manteria tal poder de síntese? Vejamos: 

Na fazenda Caiçara ele nasceu
Dia 13, dezembro o ano doze
Superar seu reinado ninguém ouse
Pois aos gênios o mundo se rendeu
Dezenove, oito nove, faleceu
Dia dois de agosto, triste dia!
A sanfona calou a melodia
O Baião não tem mais substituto
O Nordeste gemeu e botou luto
Pela falta de sua companhia.

Agora, do cordelista cearense Klévisson Viana, um dos timoneiros da nova geração de vates populares, é um trecho do folheto Lua do Sertão, a História de um Rei, em que narra encontro de Gonzaga com Humberto Teixeira, seu mais importante parceiro musical:

Pois foi Deus quem colocou
Humberto no seu destino:
Criaram muitos sucessos
Cada qual mais genuíno
Inclusive a Asa Branca
Que no Nordeste é um hino.

Em 2007, organizei um cordel, lançado pela editora Luzeiro, em comemoração aos 60 anos da toada Asa Branca. O folheto foi lançado na Praça da Sé, em evento coordenado por Assis Ângelo.  Criei  um mote — Foi voando nas asas da Asa Branca / Que Gonzaga escreveu a sua história,  glosado por poetas da estirpe de Mestre Azulão, Rouxinol do Rinaré, Arievaldo Viana, Oliveira de Panelas, João Paraibano, Valdir Teles, Moreira de Acopiara e Klévisson Viana. 

Como exemplo, estas duas estrofes em martelo:

Dos acordes de um grande brasileiro,
Um intérprete da alma de seu povo,
Sai um canto que sempre será novo,
Amoroso, sincero, alvissareiro.
Entre os hinos do seu cancioneiro,
O que fala duma ave migratória
Conferiu a Luiz eterna glória
Para além desta vida que se estanca.
Foi voando nas asas da Asa Branca
Que Gonzaga escreveu a sua história.

Eu também levo o fardo do migrante
Carregando amor com melancolia,
Que abastecem a minha poesia,
Semeada em terra tão distante.
E se a vida me fez um retirante,
Não me rendo à tão cruel escória,
Antes canto a verve meritória
Que ao gênio, lhe serve de alavanca.
Foi voando nas asas da Asa Branca
Que Gonzaga escreveu a sua história.

A responsabilidade de Cacá Lopes, portanto, é enorme. E ele não se fez de rogado. Muitas são as estrofes dignas de nota, mas esta, que trata do batismo do pequeno Luiz, chama a atenção por uma palavra, comprobatória do envolvimento do autor com o tema.

Os padrinhos do menino
Também são da região,
O Sr. João Moreira
E Dona Neném, que não
Mediram esforços, Luiz
Deixava de ser pagão.

Pagão é o menino não batizado, segundo a doutrina católica. Outro costume, herdado de Portugal, o de batizar a pessoa com o nome do santo festejado no dia do nascimento, não foi esquecido por Cacá Lopes:

O nome Luiz Gonzaga
Do Nascimento foi dado,
Na igreja de Exu
O bebê foi batizado
Dia 5 de janeiro
Gonzaga foi consagrado.

O Nascimento, sugestão do padre José Fernandes, deve-se ao fato de o menino ter nascido em dezembro, mês do Natal.  O  Luiz é uma homenagem à Santa Luzia, festejada a 13 de dezembro, data em que Gonzaga veio ao mundo.

Mais adiante, Cacá traz um a informação que, sem ser novidade,  soa original:

Seu ídolo da época era
Virgulino, o Lampião.
Sonhava entrar no bando
E desbravar o sertão,
Quem sabe tocar sanfona
E o grupo bailar no chão.

Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, sabemos, foi  uma das inspirações para a composição do “personagem” Luiz Gonzaga: chapéu de cangaceiro, cartucheiras e alpercatas de rabicho. Lampião é o personagem histórico de maior presença no cordel. 

 E, tentando ser original, finalizarei esta tentativa de Prefácio em versos, já que, da mesma forma que Cacá Lopes, fiz do cordel profissão de fé:

Eu saúdo o poeta Cacá Lopes,
Cantador das belezas do sertão,
Que falou de Luiz, Rei do Baião,
Decantado  em sextilhas e galopes,
Pois galgou na canção todos os topes
E deixou um exemplo salutar.
Eu também aqui quero celebrar
Esse gênio que foi Luiz Gonzaga,
Bem feliz, porque vejo a sua saga
Recriada na lira popular.

Nota: prefácio do livro Vida e obra de Gonzagão (Ensinamento Editora).

Pedidos: poeta@cacalopes.com.br



sexta-feira, 8 de junho de 2012

PROGRAMAÇÃO DE SÃO JOÃO – A Decepção de Gonzagão

Por: Luiz Wilson

Se Gonzaga partiu triste
Mais triste seria a volta
Precisaria de escolta
Por reagir ao que existe.
Gonzaga, quando partiste
Eu me lembro bem direito
Ainda havia respeito
No "Norte", com teu forró
Sendo hoje Michel Teló
Que agrada o "nosso prefeito"!

De um jeito que não tem jeito
Quem faz cultura é otário
Fala-se em seu centenário
Pelo tom interesseiro.
Excluiram o forrozeiro
Das viradas culturais 
E os apelos imorais
Prostituiram a canção
Seu forró e seu baião
Quase não existem mais.

As FUNDAÇÕES CULTURAIS
Que promovem o SÃO JOÃO
Até parecem LEILÃO
Só contratam quem der mais
Só modismo satisfaz
E o Sucesso fabricado
Está mais que comprovado
Que aqui não vale talento
E quem têm conhecimento
Tá mais que ultrapassado.

O NORDESTE que é celeiro
De poetas Cantadores
Desvaloriza os valores
Dos talentos do terreiro
Prefeitos gastam o dinheiro
Sem quaisquer planejamentos
E com falhos orçamentos
Pagam fortuna em cachês
Pr'os artistas de TVs
Deixando o povo em tormentos.

Eu não critico os ARTISTAS
Pois todos merecem espaço
Mas confesso me embaraço...
Parecem bailes de pistas
Os que integram as listas
Da nossa programação
Das Festas de São João
das cidades do Nordeste
Tenho que ser inconteste
Pra mim é decepção.

VOCÊ que é Nordestino
Divulgador do SERTÃO
Da obra de GONZAGÃO
E do estilo genuíno
Que, rumou novo destino
Mas não saiu do Sertão
Deve ter indignação
Como eu, mas você erra
Se não cobra de sua terra
Em nome de GONZAGÃO.

Eu não vivo no SERTÃO
Mas critico o que é falho
"Cada macaco em seu Galho"
Assim manda a tradição
"CULTURA SEM CRIAÇÃO"
Isto é um desrespeito
Vem aí o Novo Pleito
É preciso refletir
E evitar insistir
No ERRO, SENHOR PREFEITO!

   OBS. Quando refiro-me aos prefeitos, excluo aqueles de algumas cidades que alteraram suas programações em benefício da comunidade e dos artistas locais,
 os quais parabenizo!


Luiz Wilson, pernambucano de Sertânia, é cantor, compositor, cordelista, radialista e fã do Rei do Baião.

domingo, 3 de junho de 2012

A maior mentira de Chicó

Ilustração de Luciano Tasso para a obra Meus romances de cordel. 

Protagonista do Auto da Compadecida, a imortal criação de Ariano Suassuna, Chicó é bem mais que um mentiroso, um contador de lorotas, um hábil criador de patranhas. É um personagem arquetípico e, sem exagero, podemos rastrear vestígios seus no guerreiro Ulisses, outro grande mentiroso, no marinheiro Simbad, no Barão de Munchausen e em personagens da fábula e também da vida cotidiana, que enfeitam a existência com uma realidade alternativa às vezes engraçada, outras tantas encantada. O herói burlesco deriva do herói mítico.

No cinema, o personagem foi vivido pelos atores Antônio Fagundes, Dedé Santana e Selton Mello. Este último dividiu a cena com Matheus Nachtergaele, que interpretou João Grilo, na mais bem elaborada versão do clássico de Suassuna, dirigida por Guel Arraes em 2000.

Selton Melo: atuação impagável.

Em 2005, levei o personagem ao cordel, no folheto Os apuros de Chicó e a astúcia de João Grilo. Em 2008, a obra, consideravelmente ampliada, rebatizada como Presepadas de Chicó e astúcias deJoão Grilo foi relançada pela editora Luzeiro. A grande novidade foi a ampliação da presença de Chicó, que conta uma mentira do tamanho do Padre-nosso, como a sabedoria popular classifica as grandes patranhas. No trecho abaixo reproduzido, costurei situações de contos catalogados em vários países, alinhavados de forma a parecer uma coisa só.

Chicó contava vantagem,
Mas o povo não ligava,
Toda noite para ouvi-lo
A multidão se ajuntava,
Porém não tinha sequer
Um que nele acreditava.

João Grilo dizia sempre:
— Chicó, tenha mais cuidado,
Pois a sua língua grande
Pode deixá-lo enrascado
Se um dia se deparar
Com algum cabra malvado.

Chicó dizia: — Qual nada!
Nunca me meto em engano:
Já irriguei o deserto
Com as águas do oceano,
Mandei fazer uma ponte
Ligando Marte a Urano!

Já matei onça de tapa
E leão com pontapés,
Já tirei água de pedra,
Como um dia fez Moisés,
Em casa tenho uma árvore
Que produz contos de réis!

João Grilo disse: Chicó,
Nem mesmo lá em Pequim
Um pé-de-pau dá dinheiro
Ou a água do mar tem fim.
Chicó respondeu: - Não sei;
Eu só sei que foi assim...

Porém, meu amigo João,
Agora vou lhe contar
Uma história verdadeira,
Dessas de se admirar,
Que mesmo o cabra incrédulo
É forçado a acreditar:

No sertão do Ceará
Vi três matutos correndo
Atrás de uma tartaruga –
Parece que inda estou vendo –
Mas vou descrever os três
Pra você ficar sabendo.

Cada um deles levava
Consigo uma carrapeta.
Mas o primeiro era mudo
O segundo era perneta;
Já o terceiro era cego,
O quarto surdo e maneta.

E foi o cego quem viu
A tartaruga matreira.
O mudo falou pra ele:
— Acabou-se a brincadeira!
Depois gritou o perneta,
Que se danou na carreira.

Mas quem pegou a bichinha
Foi o sujeito cotó,
Vendeu-a para um mendigo,
Ficou mais rico que Jó.
É a mais pura verdade,
Quem lhe garante é Chicó.

Mas isso, João, não é nada,
Já fiz coisa mais incrível
Que, se lhe contar, você
Pensará ser impossível.
Pra você pode até ser,
Mas não pra alguém do meu nível.

Eu tenho um grande criame
De abelhas no meu quintal.
Tentei contar as colmeias –
Confesso que passei mal –
Pois nem em quinhentos anos
Descobriria o total.

Porém contei as abelhas,
Que passavam de um trilhão!
Vendo que faltava uma,
Quase perdi a razão
Mas para minha alegria,
Vi o seu rastro... no chão.

Entrei mata adentro e vi
Minha abelhinha caída,
Com duas raposas velhas
Numa batalha renhida.
Saquei de grande peixeira,
Pra defender minha vida.

Rumei a peixeira nelas,
Que saíram em disparada;
A peixeira se perdeu
Dentro da mata fechada.
Então, matutei um jeito
De sair desta embrulhada.

Logo peguei o meu binga,
Fogo na mata botei,
E desta forma, as raposas
Pra bem longe afugentei.
Quando o fogo se apagou,
Minha peixeira encontrei.

Porém sobrou só o cabo,
O ferro foi derretido.
Corri até o ferreiro,
Contei o acontecido:
E pedi que refizesse
O ferro, que foi perdido.

Mas ele se confundiu
Por ter cabeça de vento
E me fez um anzol reto
Pra eu pescar ao relento.
Joguei o danado n’água,
Puxei e veio... um jumento!

Veio com bruaca e tudo,
Então nele me montei.
Os quartos da abelhinha
Fujona, avante encontrei.
Quando espremi, dez mil litros
De mel bem puro tirei!

Porém não tinha os barris.
E estando no mato só,
Resolvi armazenar
Todo o mel no fiofó
Do meu jeguinho, contudo,
Confesso: fiquei com dó.

Passado algum tempo houve
No sertão grande secura;
Nas costas do meu jumento
Cresceu grande matadura,
De tanto carregar peso
Em sua jornada dura.

O jumento carregava
Bastante mercadoria
E, para minha surpresa,
Presenciei, certo dia,
Germinando em suas costas
Feijão, milho e melancia.       

Então, peguei o machado
E dei um golpe no centro
Da melancia, porém
O machado caiu dentro.
Olhei o buraco e disse:
— É aqui mesmo que eu entro!

Lá dentro da melancia
Avistei em disparada
Um vaqueiro procurando
A sua enorme boiada.
Pedi seu adjutório:
Ele me deu uma escada.

Para subir os degraus
Foi terrível o escarcéu,
Pois saí da melancia
E fui bater lá no céu.
Lá Maria Madalena
Me ocultou em seu véu.

Acabei voltando à Terra
Cavalgando num corisco,
Que caiu em Xique-xique,
Nas bandas do São Francisco,
Mas aprendi a lição –
Hoje sou um cabra arisco.

Pedro Monteiro, caboclo arguto do Piauí, costurou também algumas situações inusitadas em seu folheto de estreia: Chicó, o menino das cem mentiras (Luzeiro). Na mesma linha, ainda encontramos, publicado pela editora Luzeiro, o candidato a clássico O contador de mentira, escrito pelo paulistano Hélio Cavenaghi (1924-1984).

Folheto da Luzeiro com capa de Arievaldo Viana.

O folheto Presepadas de Chicó... depois foi incluído na antologia Meus romances de cordel, publicada pela Global Editora.


Performance de Marlene Borges no evento Bodega do Brasil.

Nordeste - terra de bravos


O velho cordel Nordeste - terra de bravos, escrito em 1993 e arrolado na antologia de poemas Até onde nós iremos?, foi publicado pela editora  Luzeiro em 2006. Pois bem, neste momento, o folheto está no topo da lista dos mais vendidos do site Magazine Gibi, coordenado por Wanderson Nicoló, entre os livretos de 16 páginas. Na lista geral, ocupa o quarto lugar. 

O segundo da lista é Os apuros de Chicó e a astúcia de João Grilo,  embrião do Presepadas de Chicó e astúcias de João Grilo. No caso do primeiro, o texto é de um autor em formação (o que continuarei sendo até o dia em que fechar os olhos). 

Eis o início do folheto Nordeste - terra de bravos com a métrica mais ajustada:


Nesse  poema eu abordo
Nossa região Nordeste,
Onde a seca se abateu,
Onde predomina a peste,
Onde clamam todo o dia
Por uma ajuda celeste.

Onde o Sol lança na terra
Os seus reflexos de ouro,
Onde as grandes tradições
São magnífico tesouro,
E a poesia do povo
É um dom imorredouro.

Onde o povo ainda crê
Nos poderes do Destino,
E os caminhos são traçados
Pelas mãos do Rei Divino,
Onde em tempos mais difíceis
Reinava Antônio Silvino.

Onde com fé e esperança,
Sempre uma multidão,
Em Juazeiro do Norte,
Em busca de redenção,
Venera a figura imensa
Do padre Cícero Romão.

Onde em Bom Jesus da Lapa,
Guiados por uma luz,
A cada ano, os romeiros,
Carregando imensa cruz,
Buscando dias melhores,
Rezam para o Bom Jesus.

Nordeste dos peregrinos
Do sertão do Canindé,
Dos que superam distâncias
Com o combustível da fé,
Rogando a intercessão
Da Virgem de Nazaré.

Onde as vozes mais ilustres
Cantam a degradação,
Para nós são como lustres
Iluminando a amplidão:
A poética de Cabral,
O canto de Gonzagão.

Onde os filhos de Zumbi
Semearam consciência,
E ainda seguem lutando
Em prol da independência,
Contrapondo à tirania
A heroica resistência.

Nordeste — terra de bravos —
Que presenciou um dia
Leandro Gomes de Barros
Semeando poesia,
Cego Aderaldo empunhando
O cetro da cantoria.

Onde os engenhos morreram
Sufocados pela usina,
Onde os vaqueiros valentes,
Sem temer a dura sina,
São guiados pela luz
Do raio da silibrina.

Nordeste, que viu nascer
Inácio da Catingueira,
Gulino do Sabugi
E Romano do Teixeira,
Nordeste do Cariri,
Da gente forte e altaneira.

Terra que assistiu ao voo
Do Pavão Misterioso,
Ao canto da Asa Branca,
À saga do Boi Barroso,
À marcha de Carlos Prestes
Do esquadrão revoltoso.

Nordeste dos coronéis
Cretinos, vis, ordinários,
Dos políticos corruptos,
Patifes e salafrários,
Vereadores pelegos,
Que se vendem por salários.

Onde beleza e injustiça
Convivem no mesmo chão,
Onde um dia foi temido
O rifle de Lampião,
Que foi, depois de Silvino,
Governandor do sertão.

Onde ainda existem marcas
Da vingança de Corisco,
Onde os ribeirinhos temem
O Compadre d’Água arisco,
Que chora ao ver degradado
Nosso rio São Francisco.

Onde a família Batista
Na poesia é imortal,
Eternizando a disputa
De Pinto com Lourival.
Onde, nas encruzilhadas,
Duelam o bem e o mal.

Gigantesca região
De lendas e contos mil,
Terra de vultos ilustres
Na História do Brasil,
Perseguida pela fome
E pela miséria vil.

Lugar onde “o sertanejo
É, antes de tudo, um forte”,
Já disse Euclides da Cunha,
Elogiando o porte
De um povo que só se curva
À face horrível da morte.

No Nordeste, as terras férteis
São motivo de disputa,
O latifúndio domina
Como força absoluta;
Não há a reforma agrária,
Gerando desigual luta.

Nas regiões produtivas,
Como no sul da Bahia,
É o labor da gente humilde
Usado com tirania —
Trabalham como escravos
Por uma ínfima quantia.

Contudo, há outras áreas
Com o chão estorricado,
Onde o povo pobre carpe
O seu fadário pesado —
Sem abandonar a fé,
Mas por ela abandonado.

Porque aqueles que moram
No desprezado sertão
Esperam que a chuva venha
Pra cultivar o seu chão —
E só na última instância
Abandonam seu torrão.

A terra vermelha em brasa
É uma mórbida paisagem,
E caveiras de animais
São o símbolo da coragem
Dos que sonham com um futuro
Com mais bonita paisagem.

(...)