Com Assis Ângelo, Bule-Bule, Mestre Azulão, Klévisson Viana e o já saudoso João Firmino Cabral em Fortaleza, (2008). |
O
meu contato com a obra de João Firmino Cabral deu-se muito cedo. Li Amor e martírio de uma escrava (Luzeiro)
no mesmo período em que li Juvenal e o
dragão, A louca do jardim, Os quatro sábios do reino e outros
clássicos da literatura de cordel. Depois veio A coragem de um vaqueiro em defesa do amor, um dos mais engraçados
(e exagerados) folhetos de valentia já escritos. Tudo isso em minha meninice,
na Ponta da Serra, meu berço na Bahia. Então, posso afirmar que sua obra
exerceu sobre este poeta benéfica influência. João Firmino nasceu em Itabaiana,
Sergipe, a 1º de janeiro de 1940. O pai, Pedro Firmino, era embolador, e a mãe,
Cecília da Conceição, agricultora. Uma viagem de trem a Aracaju mudaria, para
sempre, a sua vida. Nesta ocasião, entraria em contato com o já consagrado
poeta Manoel D’Almeida Filho, que viria a ser seu tutor, na vida e na arte. O
encontro foi narrado assim por Arievaldo Viana, que, em 2008, fez uma longa
entrevista com João Firmino:
“Corria o ano de 1954... Aos 14 anos, o garoto João Firmino Cabral saiu de sua pequena Itabaiana e foi para Aracaju, onde encontrou-se com o poeta Manoel D'Almeida Filho, que, na companhia de dois outros folheteiros, cantava e vendia seus romances na feira próxima ao mercado. Munido de um alto-falante e um microfone, Manoel D'Almeida encantava a todos com sua pose de galã e a sua voz cadenciada e vibrante. O menino, que já era fascinado pela poesia popular, ficou embevecido. Esqueceu de fazer as compras que a mãe havia lhe ordenado e passou o dia inteiro na companhia dos poetas. Quando se deu conta, já eram quatro e meia da tarde e o último (e único) trem para Itabaiana já havia partido.
João Firmino começou a chorar desoladamente e foi socorrido por Manoel D'Almeida, que lhe ofereceu dormida e um prato de sopa para o jantar. O menino falou de seu grande amor pela Literatura de Cordel e disse que gostaria de se tornar um revendedor de folhetos. Manoel D'Almeida, vendo o interesse do garoto, confiou-lhe uma maleta com trezentos folhetos (trinta títulos diferentes) e Firmino seguiu para a feira de Itabaiana. Nascia ali um grande folheteiro que viria a se tornar, dois anos depois, um dos maiores poetas populares dessa geração.”
Escreveu seu primeiro cordel aos 17 anos, uma Profecia do Padre Cícero, no qual ainda não mostra a sua faceta
mais conhecida: a do narrador de histórias dramáticas, com enredos muito bem
urdidos. Com Manoel D’Almeida Filho aperfeiçoou-se como poeta e folheteiro. Da
experiência com o “professor”, algumas histórias ficaram gravadas na memória
privilegiada de João Firmino, como a que segue:
Na década de 1950, Almeida
havia composto um grande romance dramático, A sorte do amor, até hoje reeditado
pela Editora Luzeiro. A história mostra a disputa de dois honestos roceiros,
José Miguel e Manoel João, pela mão de uma linda camponesa, Rosa Maria. Os dois
tentam resolver a disputa em um duelo, mas acabam escapando da morte, ambos
muito feridos. Um sorteio, proposto pela moça, deverá solucionar o caso. No dia
do casamento com o “sorteado”, um incêndio na roça deste antecipa a tragédia.
Manoel D’Almeida lia para uma plateia atenta e curiosa este romance. Ao chegar
ao clímax da história, no entanto, seus olhos estavam embotados de lágrimas.
Diga-se o mesmo da assistência. O grande poeta, inconformado, foi depois se
queixar para João Firmino: “Eu não podia ter chorado. Fui eu que criei Manoel
João, José Miguel, Rosa Maria... Eles só existem no meu texto. Por que não me
controlei?”
Em 2005, fui trabalhar na editora Luzeiro, a convite de Gregório
Nicoló. A missão era renovar com qualidade o catálogo e garimpar, entre as
raridades da Prelúdio, títulos para reedição. Assim que cheguei, liguei para
João Firmino me apresentando. A sua primeira reação, creio, foi de
desconfiança. Afinal, quem cuidava do editorial da casa paulistana era Manoel
D’Almeida, morto em 1995. Nas conversas, mostrando meu interesse em revitalizar
a Luzeiro e o meu envolvimento afetivo com a literatura de cordel, além de
sempre consultá-lo acerca dos títulos clássicos a serem reeditados, consegui
não só convencê-lo de que buscava contribuir para a arte da qual ele era um
grande expoente, renovando o catálogo, sem perder de vista os títulos tornados
clássicos pela predileção popular. João Firmino tornou-se para mim um professor
e um grande amigo. Aos poucos, à medida que títulos como Os três conselhos sagrados e O
herói da Montanha Negra, escritos por mim, foram lançados, recebia dele
calorosos e encorajadores elogios.
Dele colhi, como disse, preciosas informações. Quando a Luzeiro
publicou, pela primeira vez, a História
de Roberto do Diabo, pairava sobre esse texto clássico a dúvida sobre a autoria.
Recorri a João Firmino, e ele cravou: “É de Leandro Gomes de Barros”. E
justificou: “Quando criança, ouvia todos os poetas e folheteiros se referirem a
este romance como de Leandro Gomes de Barros”, mesmo que as edições mais
recentes trouxessem na capa a autoria atribuída a João Martins de Athayde. Essa
assertiva de João Firmino foi ratificada pelo veterano poeta, editor e vendedor
de folhetos paraibano João Vicente da Silva. A edição saiu com a autoria
atribuída a Leandro e uma nota explicativa, dando créditos aos responsáveis
pela valiosa informação. Noutra ocasião, instado sobre quem era o verdadeiro
autor da História da Princesa da Pedra
Fina (não confundir com O Reino da
Pedra Fina, de Leandro Gomes de Barros), João Firmino não teve dúvidas:
“Este é um dos primeiros folhetos de Silvino Pirauá de Lima, Pelo menos é o que
diziam os cantadores de folhetos da minha infância”.
Encontrei João Firmino uma única vez: durante a Bienal do Livro do
Estado do Ceará, e com ele dividi uma das Mesas do Congresso de Cordelistas,
realizado durante o evento que teve como curador o poeta Klévisson Viana.
Sempre que possível, eu ligava para ele. Ouvia suas reclamações a respeito de
novos títulos que, segundo ele, nada acrescentavam ao cordel. E ouvia seus
elogios a poetas que, ainda segundo ele, assegurariam a continuidade à tradição. Toda
vez que conversávamos, ele pedia para retransmitir um abraço ao poeta Cícero
Pedro de Assis, a quem considerava um irmão. O fato é que, mesmo com os
problemas de saúde, João Firmino jamais deixou de trabalhar e sua produção, nos
últimos anos, quase toda publicada na Editora Tupynanquim, é muito
significativa. A Luzeiro, a casa que lhe abriu as portas, publicou, ano
passado, seu romance A revolta de um
escravo, que foi motivo de muita alegria para o velho poeta.
O fato é que a vida é transitória, mas muitos passam por ela e
não vivem, como dizia Francisco Otaviano. João Firmino Cabral não apenas passou pela vida. Viveu-a. E viveu da
forma que imaginou, escrevendo histórias que divertiram e emocionaram milhares
de pessoas. Até a sua partida, no primeiro dia do mês de fevereiro de 2013.
João Firmino agora é saudade. João Firmino agora é história.
Aqui apareço ao lado de João Firmino, em companhia do poeta Arievaldo Viana e do editor Gustavo Luz. |
Partiu um mestre dos versos,
ResponderExcluirJoão Firmino Cabral.
Foi versejar para Deus,
Na Corte Celestial.
Na Terra, entre os cordelistas,
Já se tornou imortal.
Rouxinol do Rinaré