Vozes da tradição (editora IMEPH), livro que tem por base uma recolha no interior da Bahia e em Araxá (MG), será lançado sexta, dia 20 de setembro, a partir das 20:30h, na Casa Tombada, em Perdizes. Além de um bate-papo com os autores, Marco Haurélio e Lucélia Borges, haverá, ainda, uma roda de histórias.
Para conhecer melhor o livro, o ideal é ler a breve apresentação, escrita por Marco Haurélio, reproduzida abaixo:
Quando os irmãos Jakob e Wilhelm
Grimm registraram, em 1812, a literatura oral de seu país, a Alemanha, não
faziam ideia do sucesso de sua iniciativa, em especial no tangente aos contos
populares, a parte mais significativa de sua recolha. O fato é que, com o êxito
alcançado pelos Contos da criança e do lar, outros pesquisadores
europeus, impregnados do mesmo espírito romântico que moveu os alemães, foram a
campo em busca de lendas, baladas, romances e das velhas histórias narradas ao
pé do fogo, sementes espargidas e cultivadas no fértil solo da imaginação
humana. Quando o termo folclore foi consignado em 1848, pelo inglês
William John Thoms, sob o pseudônimo de Ambrose Merton, em artigo publicado na revista
The Atheneum, o conto tradicional, irmão da lenda e filho do mito, já
havia alcançado, em vários países, a merecida atenção de escritores e
estudiosos.
Antes, a novelística popular
mereceu registros em recriações literárias, algumas em versos, como Os
contos de Canterbury (1387), de Geoffrey Chaucer, e os lais de Maria de
França, ainda no século XII. Em prosa, destacam-se as jornadas do Decameron (1348-53),
de Giovanni Boccaccio, o livro do Conde Lucanor (1335), de D.
Juan Manuel, Os contos e histórias de proveito e exemplo (1575),
de Gonçalo Fernandes Trancoso, além do impressionante Pentamerone (1634-36),
de Giambattista Basile, obra-prima do barroco italiano. Inspirado neste último,
sem a mesma espontaneidade, Contos do tempo passado ou Contos da
Mamãe Gansa (1697), de Charles Perrault, coletânea moralista celebrizada
pelo tempo e contemplada com muitas reedições, levou à corte francesa as histórias
da gente humilde, devidamente polidas e adaptadas ao gosto do (nobre) freguês.
Isso sem falar no conjunto de
histórias prevalentemente maravilhosas provenientes do mundo árabe, o
monumental livro das Mil e uma noites, traduzido e apresentado ao Ocidente
pelo orientalista francês Antoine Galland, cujo primeiro volume foi publicado
em 1704.
Coube a Adolfo Coelho a empresa
de ser o desbravador desta seara em Portugal, com Contos populares
portugueses, publicado em 1879. Foi seguido por Consiglieri Pedroso, autor
de Portuguese folktales (1882), em edição inglesa, e por Teófilo Braga,
com Contos tradicionais do povo português (1883). Igualmente relevante,
a antologia de Contos tradicionais do Algarve, de Ataíde
Oliveira, reuniu 400 contos do sul de Portugal, ampliando a área geográfica e
as possibilidades de comparação e confronto.
No Brasil, a iniciativa pioneira
coube a Silvio Romero, autor de Contos populares do Brasil (1885),
publicado originalmente em Portugal, com organização e notas de Teófilo Braga. Antes,
o estudo do geólogo canadense Charles Frederik Hartt, Os mitos amazônicos da
tartaruga (1875), com o Jabuti, grande trickster dos contos
indígenas, e a coletânea O selvagem (1876), do General Couto de
Magalhães, apresentaram contos de origem indígena ou tradicionalizados entre os
povos nativos da Amazônia. A coletânea de Sílvio Romero, no entanto, teve o mérito
de ser abrangente, enfocando, além dos supostos contos indígenas, contos de
origem africana e europeia. Há que se
levar em conta o esforço do coletor, que se dispensou de um trabalho
comparativo, privilegiando critérios antropológicos e raciais, em voga na
época. E, por isso mesmo, incorreu em equívocos, como o de arrolar entre os
contos africanos Doutor Botelho, história na qual um macaco aparece como
auxiliar do herói de origem humilde, que, graças aos seus préstimos, acaba
casando com uma princesa. Apenas esta breve descrição nos mostra ser esta, em
linhas gerais, a hoje conhecidíssima história do Gato de botas,
divulgada por Charles Perrault, na versão literária do século XVIII. A
coletânea se reveste de grande importância, também, por abrir uma picada, inspirando,
em diferentes épocas, outros pesquisadores das tradições populares.
Imprescindíveis são as obras de
Lindolfo Gomes (Contos populares brasileiros, 1915), João da Silva
Campos (Contos e fábulas populares da Bahia, 1928), Aluísio de Almeida (142
histórias brasileiras, 1951) e Luís da Câmara Cascudo (Contos
tradicionais do Brasil, 1946). Mais recentemente, sobressaíram-se Ruth
Guimarães, Waldemar Iglésias Fernandez, Oswaldo Elias Xidieh, Doralice
Alcoforado, Bráulio do Nascimento, Altimar Pimentel e Edil Costa.
Ainda assim, são,
lamentavelmente, raras as coletâneas de contos tradicionais brasileiros
provenientes da fonte da memória. Raras diante das possibilidades oferecidas
por um país de dimensões continentais, diverso na cultura e nas variantes linguísticas,
nascidas das profundas desigualdades, reveladoras de nossas mazelas, mas também
da resistência de povos de diferentes matrizes e matizes. O trabalho que
empreendi, com a companheira Lucélia, supre em parte esta lacuna, preservando, sempre
que possível, as marcas da oralidade, o estilo e a verve dos contadores, embora
seja impossível reproduzir o gestual, as pantomimas e o momento em que os
contos foram registrados.
Um exemplo: a excelente contadora
Enedina Rodrigues de Sousa forneceu-nos as histórias de que se tornou guardiã numa
noite de muito frio, fato raro na região onde mora, no quintal de sua casa,
povoado de Palma, município de Serra do Ramalho, Bahia. O São Francisco, o rio
de sua aldeia, era o cenário de fundo. Entre uma história e outra, ela cantou
chulas e relembrou as debulhas de feijão do seu tempo de menina, ocasião em que
as histórias eram contadas em jornadas que vincaram sua memória afetiva.
Apesar das dificuldades demandadas
por uma iniciativa como esta, a recolha de contos de “primeiro grau” será sempre
bem-vinda, especialmente por mostrar que, em pleno século XXI, as árvores do
Jardim da Tradição ainda dão saborosos frutos. Este trabalho, como outros de
minha lavra (Contos folclóricos Brasileiros e Contos e fábulas
do Brasil), encontra-se classificado de acordo com o Catálogo
Internacional do Conto Popular, o Sistema ATU. As principais
referências vêm do monumental Catálogo dos contos tradicionais portugueses (com
as versões análogas dos países lusófonos), de Isabel David Cardigos e Paulo
Jorge Correia, com o qual, orgulhosamente, colaborei. O professor Paulo é
responsável, ainda, pela classificação de boa parte dos contos deste volume.
Na presente coletânea, todos os
informantes e os locais da recolha são identificados. A maior parte dos contos
pertence ao gênero maravilhoso, menos encontradiço hoje, devido a uma estrutura
mais complexa, resultante de sua assombrosa ancianidade. É o caso de Guimar
e Guimarim, que pertence ao ciclo de histórias que têm origem no mito de
Jasão e Medeia, no qual o herói, numa terra estrangeira, conta com o auxílio da
filha do rei para realizar tarefas impossíveis.
Se a literatura dos antigos
salvou do esquecimento os deuses e heróis, os contos de tradição oral, por
outro lado, preservam episódios e estruturas arcaicas, informações sobre ritos
e mitos, nos conectando a um tempo que, talvez, somente nos sonhos e nos
domínios do inconsciente ousássemos perscrutar.
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