Ninguém nasce no sertão à toa. Não é
lição, nem frase de efeito. É constatação. Hoje, quando revisito a casa onde
nasci, na Ponta da Serra, no semiárido baiano, onde caatinga e cerrado se
abraçam, sou invadido por uma sensação estranha de vazio e de plenitude. A casa
amarela, construída por meu bisavô, major Ramiro José de Farias, na década de
1920, é a única ainda de pé no que antes fora um casario. Um belo casario. Meu
pai, Valdi, vendeu a propriedade em 1986, quando nos mudamos para Serra do
Ramalho, muitas léguas além, nas barranceiras do rio São Francisco. Ficaram
para trás, além da casinha de adobe, a igreja, também erguida por meu bisavô, e
o umbuzeiro do quintal, que foi meu gabinete de leitura quando, enfim, comecei a
decifrar, muito por conta própria, mas, principalmente, pelas leituras dos
cordéis, o mundo da escrita. Ficou para trás a casa de meus avós paternos,
Luzia e Joaquim, ela minha grande professora, contadora de histórias
extraordinárias, Sherazade das noites sem fim do sertão de minha infância.
Hoje, entre os escombros da casa, pastam as reses do atual proprietário.
E por que a sensação de vazio e de
plenitude da qual falei há pouco? Talvez pela impossibilidade de recompor,
mesmo na memória, tantas sensações, cheiros, sabores, vozes, cantos, choros,
rezas, risos, vida jorrando de lábios e olhos. Ofício de Nossa Senhora da
Conceição, padroeira da comunidade, rezado nas sentinelas e no dia da Santa, 8
de dezembro. A voz de Tio Dão, João Farias, se sobressaindo às demais, nas
rezas ao pé do cruzeiro. Os ramos de Tio Maçu espantando a doença, o mau
olhado, afugentando a peste. Madrinha Nenzinha, na moldura da janela de sua
casinhola, à espera de alguém que lhe pedisse rapadura. Cachorro latindo,
adivinhando assombração. Mas a lembrança que vincou mais forte é, sem dúvida, a
de meu pai retornando todo o sábado, da feira de Bom Jesus da Lapa, aonde ia
vender tijolos (doces feitos em tachos) e requeijão. A cada retorno ele trazia,
sem falta, dois folhetos de cordel, que eram lidos no dia seguinte, com a
presença de toda a família. A sua coleção, herdada de minha avó, já passava de
uma centena. Os novos “moradores” disputavam com os mais velhos a minha
predileção.
Não era incomum, ainda, ele cantar
para eu dormir. Cantiga de adormecer menino pode ser assustadora, engraçada ou
melancólica. Minha mãe, Maria, repetia, sempre, “o sapo cururu/ na beira do
rio,/ quando o sapo canta/ é porque tem frio”. E ele respondia com um acalanto
triste e bonito ao mesmo tempo. Aprendera-o com sua mãe. Falava de um
passarinho que, por perder o amor, sucumbe à tristeza. A quadrinha final, com
melodia dolente, era esta:
Passarinho, se eu pudesse
não te enterrava no chão:
mandava abrir sua cova
dentro do meu coração.
Hoje, quando retorno à Bahia, ainda
peço para os meus pais fazerem uma roda de versos. E eles o fazem, abrindo as
janelas das relembranças. O passado é um terço cujas contas são as memórias. De
tempos idos. Sementes de primaveras que ainda florirão.
Marco Haurélio
Crônica publicada na revista Páginas
Abertas, da Paulus Editora.
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