Cidade Invisível, série brasileira de suspense com
pitadas de horror, dirigida por Carlos Saldanha, mal estreou na plataforma de streaming
Netflix e tornou-se um sucesso de público em muitos países. Na linha dos velhos
contos de detetive do sobrenatural, narra a história de um membro da polícia
ambiental, Eric (vivido por Marco Pigossi), que, após um evento traumático em
sua família, tenta desvendar um mistério envolvendo uma vila de pescadores que
sofre o assédio de uma grande construtora, e se depara com personagens da
mitologia brasílica.
A primeira referência que me veio à
mente foi Arquivo X, e essa impressão foi reforçada pelo fato de Eric
contar uma parceira, Carla (Áurea Maranhão), com a diferença de que, na
produção brasileira, eles não formam um par romântico, e há uma desproporção em
termos de presença em cena entre os dois. Uma cena em retrospectiva, aliás, dá
a entender que Carla poderia ter uma participação mais efetiva na história.
Instado a opinar sobre, por conta de
minhas pesquisas em torno das tradições populares, separei este fim de semana
para assistir à série, o que ocorreu num contexto em que a produção passava por
uma reavaliação por, supostamente, conforme se lê em matéria da revista Veja, ter esnobado os elementos indígenas, já que, segundo que, segundo Eduardo F. Filho, que assina a matéria, boa parte do folclore brasileiro
se apoia em tradições ameríndias. Tenho evitado abordar a tradição oral
brasileira a partir de uma visão antropológico-racial, abonada por Silvio
Romero e Nina Rodrigues e abandonada desde o início do século XX, já que, como
comprovou mestres dos estudos etnográficos no Brasil, como Edison Carneiro e
Renato Almeida, questões ligadas às origens são menos importantes que as
transformações pelas quais passam as manifestações tradicionais. O caudal que,
por vezes, de forma redundante, chamamos de folclore, equilibra-se,
paradoxalmente, entre a permanência e a dinâmica. Se é velho na memória do povo
(Cascudo) e segue vivo na contemporaneidade merece ser estudado pela ciência da
psicologia social.
Dito isso, minha impressão sobre a
série foi a melhor possível. O que vi nela não foi um painel sobre o folclore
brasileiro, mas uma trama em que as personagens servem à narrativa, reforçando
o arco do protagonista, que, à maneira dos personagens dos filmes de Hitchcock
(e as comparações acabam aqui) vê-se acossado de todos os lados até o limite do
suportável. Isso vai levá-lo a defrontar não somente um inimigo real (os
interesses especulativos da construtora individualizados na figura de seu
presidente, dr. Afonso (Rubens Caribé), mas também as criaturas fantásticas do
Brasil lendário, agora misturadas ao comum dos mortais, vivendo ou vegetando
nas áreas degradadas do Rio de Janeiro.
E, neste ponto, abro um parêntese para
externar minha impressão sobre as personagens a partir das liberdades naturais
do roteiro.
Cuca, segundo descreve Luís da Câmara Cascudo,
em Geografia dos mitos brasileiros, p. 200, “é um ente velho, muito feio,
desgrenhado, que aparece durante a noite para levar consigo os meninos
inquietos, insones ou faladores”. As canções de ninar, que poderiam ser
chamadas sem erro de canções de assustar, tornaram-na conhecida de norte a sul,
daí a expressão “a cuca vai pegar”, com sentido e contexto ampliados, ter-se
tornado “o bicho vai pegar”. Mas, distante da velha feia e corcunda, imagem
caricatural da Bruxa celebrizada por Goya, ou da cabeça flamejante das tradições
ibéricas, ou, ainda, do dragão que desfila nas procissões religiosas, como
espantalho das crianças e advertência para os adultos, Cuca é interpretada pela
atriz Alessandra Negrini e nos faz lembrar a Lilith hebraica, e há uma razão
para isso.
No imaginário brasileiro, a Bruxa
pode se metamorfosear em borboleta e, dessa forma, visita as parturientes, o
que ocasiona a morte de recém nascidos. Daí o costume de se conservar uma
tesoura aberta sob o colchão, inibindo a inoportuna visita. Lilith, em sua
encarnação de primeira mulher de Adão, jamais conseguiu ser mãe, sofrendo
abortos espontâneos ou, conforme versões mais dark da lenda, gerando demônios.
Recolhi uma lenda em brumado, Bahia, na qual a bruxa era uma mulher bela, a
sétima filha, que visitava a cidade em forma de borboleta. Manuel Ambrósio, Brasil
interior, p. 21, consigna a superstição:
“A muié que pare incarriado seis fia
fema, condo é pra tê as sete, bota logo o nome de Adão, tudo trocado, senão a
menina vem e logo sai bruxa. Assim que chega no sete ano vira aquela
barbuletona, entra p’la fechadura da porta da muié parida e xupa o embigo das
criança que morre c’o mal de sete dia, condo a parteira não é boa mestra e
esquece de botá a tesoura aberta debaixo da cama da parida, onde a criança
nasce”.
Tutu, o bicho papão que assombrou os
sonhos de muitas crianças desde o período colonial, é importação africana, embora
Alfredo do Vale Cabral enxergasse no nome origem indígena: tu-tu seria “bate-bate”
e evocaria as palmadas das amas na bunda dos meninos manhosos. Pertence, na
vigorosa de classificação de Câmara Cascudo, ao “ciclo da angústia infantil”,
do qual fazem parte, entre outros, a já citada Cuca e a Cabra-Cabriola, esta
última personagem de um conto baiano recolhido pelo mestre João da Silva
Campos. Cascudo faz derivar tutu de quitutu, do idioma quimbundo,
significando “papão”, “ogre”, sendo a palavra também sinônimo de “briguento” na
língua original. Por convergência, será chamado, no Brasil, Tutu-zambé,
Tutu-Marambá ou Marabá e, ainda, Tutu-Marambaia, depois confundido com o
Caititu (porco-do-mato), no processo natural de hibridação. Vale Cabral, no
século XIX, registrou:
Não venhas mais cá;
Que o pai do menino
Te manda calar.”
Na série, o Tutu é um leão de chácara
ruivo, barbudo e com cara de poucos amigos, muito bem interpretado pelo ator Jimmy London, em caracterização que se distancia
muito de sua origem bantu.
Outra personagem
fundamental na série é o Curupira, o primeiro a dar as caras, “o deus
que protege as florestas”, como escreveu Couto de Magalhães em 1876. Foi a
primeira entidade a ser registrada em papel por um europeu, no caso, o Padre
José de Anchieta, em 1560, que grafa Coropira, incluindo-o na classe dos
“demônios” que “acometem aos índios muitas vezes no mato, dão-lhes açoites,
machucam-n’os e matam-n’os”. Ainda segundo o padre cronista, a entidade era
apaziguada com penas de aves, abanadores e flechas, a título oblatório. Em Cidade
Invisível, onde vive um deus no exílio, Curupira é interpretado pelo ator baiano, de
ascendência indígena Fábio Lago, nacionalmente conhecido por dar vida a Fabiano na novela global Caras & Bocas (2009).
Do Saci e da Mãe d’Água
falo com especial apreço, haja vista que ambos frequentam as matas e as águas
correntes de minha infância sertaneja. À diferença do Saci retratado na série,
traquino e manhoso, registrei na Bahia, no livro Contos e lendas da Terra do
Sol (Paulus, 2018, parceria com Wilson Marques), uma lenda em que o pequeno duende negro aparece como um papão que carrega, em um redemoinho, os meninos travessos para a
floresta na intenção de devorá-los. Na história que reproduzi, o Saci parece se
apropriar dos atributos de um papão pouco conhecido, o Pilão, e isso se deve à
punição do menino, que é levado sentado num pilão para a mata, escapando por
pouco, ao agarrar-se aos galhos de uma árvore muito alta. O Saci da série (Wesley
Guimarães) está mais próximo do registro de Monteiro Lobato, mas, numa cena em
especial, um flashback que nos transporta ao tempo da escravidão, tentativa de
explicar o porquê de ele ser perneta, há ecos da lenda gaúcha do Negrinho do
Pastoreio. Vivendo na Lapa, bairro boêmio do Rio, usando uma prótese, a
personagem fica perigosamente próxima do estereótipo do malandro carioca.
Na vasta pesquisa que fiz,
especialmente no sertão baiano, jamais ouvi a palavra Iara figurando
sereia na boca do povo. É sempre Mãe d’Água, popularíssima em toda a
área povoada do rio São Francisco, entidade das águas capturada por um
pescador, com quem se casa, à força, cumulando-o de bens e abandonando-o, muitos
anos depois, por ter ele “arrenegado” do povo rio, o seu povo. Vale dizer que toda a
riqueza, incluindo os filhos que o casal tivera, é tragada pelo rio, para onde
a Mãe d’Água (à maneira da Melusina) retorna, reassumindo o seu trono submerso.
Confunde-se com Yemanjá, filha de Olokum e deusa do mar, segundo Pierre Verger,
e com a Calunga bantu, também senhora das águas, citada na cantiga
entoada pela Mãe d’Água, já liberta de seu voto, no registro de João da Silva
Campos. Na mitologia ioruba, Yemanjá abre caminho para o mar quebrando uma
garrafa que se transforma em rio, escapando das garras de Okere, seu marido
possessivo. Estudei o tema da noiva sobrenatural cujo matrimônio está vinculado
a um voto violado pelo marido humano no livro Contos e Fábulas do Brasil. Conscientemente
ou não, na série a Iara (designação que parece vir de uma confusão verbal com Jara, "senhor" em tupi) é vivida por uma atriz negra, Jessica Córes, cantora de profissão, que, assim
como sua ancestral mítica, a sereia retratada por Homero, na Odisseia, atrai,
com sua bela voz os homens para o fundo do mar.
Desenho de um lobisomem para a história "The Werewolf Howls". Revista Weird Tales (Novembro, 1941). |
O grande antagonista,
ainda que não corporificado, é o Corpo-seco. Na série, essa aleivosia aparece amalgamada a uma personagem de uma lenda mineira, o Bicho da Carneira
ou Bicho da Pedra Azul, também chamado Lanudo, que, em sua motivação básica,
tem origem europeia: o ente maldito recusado pela terra, pelo céu e pelo
inferno, como o Jack da Lanterna do folclore irlandês. A lenda, contada no
norte de Minas, envolve uma personagem real, Joaquim Antunes de Oliveira, homem
letrado e de origem judaica que, segundo relatos, por volta de 1890, teria
invadido uma igreja, sendo, por esse ato de impiedade, excomungado pelos padres jesuítas. Vítima de
um mal súbito, que o deixou paralisado, por volta de 1900, o episódio da
excomunhão foi rememorado e a doença, encarada como castigo. Morto e sepultado,
por ocasião de uma mudança do local do cemitério, ao ser exumado, o seu corpo
não revelava marcas de corrupção. O túmulo para onde foi o corpo trasladado,
certa ocasião, amanheceu aberto, e a descoberta de animais domésticos
trucidados alimentaram a lenda do Bicho. Variante da mesma lenda alude ao fato
de Antunes (nome do vilão que se tornará o Corpo-seco na série) ter selado e
montado a própria mãe, sendo, por isso, amaldiçoado. Essa variante aproxima-o do
Romãozinho e do Gritador, filhos amaldiçoados que viram bichos depois de
mortos. Recolhi, em Igaporã, Bahia, uma história ainda inédita em livro com
alguns pontos em comum: o amaldiçoado é um fazendeiro do sul da Bahia, de nome
João, ruim até não poder mais, cuja sepultura é encontrada aberta depois de
muitos estragos nas criações (animais domésticos criados para venda ou
abate). A sepultura é cercada por uma jaula onde foi encontrado preso um
lobisomem que conservava o mesmo rosto do falecido.
À diferença da série, não encontrei, nem nos livros e nem em minhas anotações, Corpo-seco com a função de espírito obsessor. Imagino que os roteiristas, trazendo à luz uma personagem tão problemática, buscavam uma entidade que pudesse sintetizar a ganância predatória, verdadeira maldição no país onde biomas como o cerrado e a Amazônia ardem em chamas.
Por fim, o Boto, entidade cujo deslocamento geográfico causou profunda estranheza, em que pese o seu nome
na série, Manaus, indicar a sua procedência. Em sua função de
sedutor, contraparte masculino da Mãe d’Água, o Boto como amante antropomorfo inexiste
nos relatos dos cronistas coloniais e o primeiro registro se dá apenas em
meados do século XIX, culminando no Uauaiará da hierarquia de deuses estabelecida por Couto de Magalhães, vista hoje com ressalvas. No verbete Boto, do Dicionário
do Folclore Brasileiro (INL, 1962, págs. 131-34), Luís da Câmara Cascudo, amparado em ampla bibliografia, indica fontes clássicas, como
Auro Gélio, apontando para a antiga tradição dos delfins “voluptuosos e enamorados” do Mediterrâneo.
Na série, o Boto em sua forma humana é vivido pelo ator Victor Sparapane, e,
apesar de ter uma participação relativamente pequena, conecta-se à trama
principal (o mistério, do qual pouco falei, evitando spoilers) e a uma
interessante trama paralela, por meio da personagem Fabiana (Tainá Medina), que
espera um filho dele.
Fecho o parêntese e
volto a falar da série.
Há algumas semanas tenho
lido, nas redes sociais, comentários a respeito da série e postagens com links
sobre as criaturas fantásticas, incluindo dicas de livros, como o
já citado, e imprescindível, Geografia dos mitos brasileiros, além de
obras sobre o tema da escritora Januária Cristina Alves, consultora da série,
autora de livros sobre o folclore brasileiro, homenageada pelos roteiristas,
que batizaram com o seu nome a avó do protagonista (Thaia Perez). Os
debates em torno de questões identitárias também são muito bem-vindos, desde
que pautados no respeito à liberdade que é o cerne da criação artística. E é em
torno desses debates, afinal o mundo da arte é essencialmente dialético, que se
alicerçam as histórias contadas, escritas ou filmadas, alimentadas pela
imaginação poderosa de todos os povos desta terra.
Que riqueza de reflexão Marco Haurélio! Só com muita pesquisa e conhecimento de causa do que é popular pra pensar com tanto gosto!
ResponderExcluirMestre Marco Haurélio. Que delícia seu texto. Que viagem à sabedoria dos nossos antepassados que deram carne e sangue aos seres imaginários. É sempre uma alegria ler e ouvir vc através de seus contos e palavras.
ResponderExcluirUma aula. Obrigada pela partilha! Abraços de cá!
ResponderExcluirAqui no Vale do Paraíba o corpo seco é o filho que falta ao respeito e é cruel com os pais. Ruth Guimarães em seu livro recém reeditado "Os filhos do medo", traz um inventário dos demônios brasileiros, também Sônia Gabriel, que fez um excelente estudo sobre a tradição oral valeparaibana em seu "Mistérios do Vale", já na 3 edição. Duas preciosas dicas de livros que irão explicar esses seres tão caros que vivem na "Cidade invisível".
ResponderExcluirAna Lygia, obrigado pelo comentário e pela fonte. Ruth Guimarães é sempre uma referência. Tenho a edição de 1950 de Os Filhos do medo e pretendo adquirir também a atual. Retomarei, em outro momento, cada um dos mitos enfocados aqui e, certamente, quando for falar do Corpo-seco, recorrerei ao trabalho de Dona Ruth.
ResponderExcluirQue texto maravilhoso! Obrigada por suas impressões e aprendizado. Te mandei um e-mail. Abraço!
ResponderExcluirCaro, Marco Haurélio, que primor de texto, rico em abordagens e conhecimentos, não se esquecendo da licença poética de que a arte goza. Seu texto reproduz o que é toda obra artística: um diálogo inesgotável...
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