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segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Contos Folclóricos Brasileiros na revista Crítica & Debates



CONTOS POPULARES DO SERTÃO DA BAHIA

RESENHA

HAURÉLIO, Marco. Contos folclóricos brasileiros. São Paulo: Paulus, 2010. 144 p.

Por Rogério Soares Brito[1]

Em todas as épocas os homens sempre encontraram bons motivos para ouvir ou contar histórias. As tradições populares, através de suas variadas manifestações culturais, encarregaram-se de manter vivas as inúmeras histórias que há tempos persistem no imaginário e são constantemente recontadas na forma de lendas, fábulas, contos, parábolas e histórias fantásticas.

Ecos de tempos passados, muitas histórias encantadoras e maravilhosas, que habitam o imaginário popular, têm sido exaustivamente estudadas por pesquisadores, historiadores, psicanalistas, além de inspirarem os trabalhos de escritores, como os irmãos Grimm, grandes coletores de contos, Charles Perrault, Jean de La Fontaine, Hans Christian Andersen, Monteiro Lobato entre outros. Marca indelével da cultura popular, a literatura oral segue o ritmo da espontaneidade do povo, suas crenças, tradições e festas.

Muitos foram os coletores de contos populares ao longo da história; seus enredos exóticos e personagens misteriosos despertam a curiosidade e a simpatia de um público variado, que não consegue ficar indiferente a essas narrativas. Só para ficar no Brasil, essas narrativas populares foram o foco de interesse de grandes estudiosos da cultura popular, entre eles estão Sílvio Romero, Amadeu Amaral, Aluísio de Almeida, Câmara Cascudo, Henriqueta Lisboa e outros. Porém, esses não são os seus criadores, elas são criações do povo, manifestações genuínas das capacidades criativas de populações historicamente marginalizadas.

Esse trabalho de pesquisa ou de recolhimento das narrativas populares nunca foi pacífico. Alguns estudiosos modificaram um pouco os relatos que coletaram. Outros simplesmente ignoraram os valiosos e exemplares conselhos contidos nas histórias e, por excessivo brio religioso, social ou político, resolveram mutilar os contos, caso do padre francês Antoine Galland. Responsável pela tradução da obra As mil e uma Noites para o Ocidente, ele interferiu diretamente na tradução ao deixar de fora inúmeras narrativas. Acreditava assim preservar as consciências religiosas das imoralidades que se ocultavam em várias histórias contadas pela princesa Cheherazade.

Todavia a literatura oral segue viva e conquistando mais e mais leitores, além de continuar atraindo o interesse de outros pesquisadores, caso do poeta, editor e folclorista Marco Haurélio, nome de prestígio no campo de estudo da cultura popular brasileira. Marco Haurélio tem atuado na linha de frente das ações de valorização e preservação da herança cultural do nosso povo, pesquisando, escrevendo e divulgando essa tradição através da literatura de cordel e de livros infantojuvenis que abordam sempre os temas da cultura popular.

Natural de Riacho de Santana, Bahia, esse jovem escritor, que em julho completou 36 anos, recolheu, entre os anos em que viveu na cidade vizinha a sua terra natal, Igaporã, enquanto cursava Letras na UNEB/Campus VI (Caetité – BA) e lecionava numa escola pública do ensino básico, uma centena de contos populares, lendas e fábulas, colhidas direto da fonte mais preciosa, as vozes de anciões sabiamente nutridas pela tradição popular.




Abertura da seção Contos de encantamento ou maravilhosos (ilustração de maurício Negro)

O seu mais novo livro, Contos Folclóricos Brasileiros, editado pela Paulus e ilustrado por Maurício Negro, é fruto desse trabalho de pesquisa da cultura popular, que desde cedo seduziu o autor. O livro não traz na íntegra todas as histórias recolhidas pelo autor durante o período em que viveu em Igaporã, mas apenas algumas das narrativas, coletadas entre as cidades de Serra do Ramalho, Bom Jesus da Lapa, Riacho de Santana, Igaporã, Caetité e Brumado.[2] Esse primeiro trabalho será ampliado num segundo livro, que além dos contos terá lendas e fábulas. Esse segundo trabalho está com data prevista ainda para este ano, e sairá pela Nova Alexandria, editora onde o autor trabalha como editor desde que saiu da Luzeiro, tradicional casa editorial de grandes cordelistas.

Nascido em uma família de trabalhadores rurais, Marco Haurélio ouviu, desde a mais tenra idade, de seu pai e de sua avó Luzia Josefina de Farias as deslumbrantes lendas, aventuras, cenas de amores e lutas religiosas, narradas saborosamente à luz de candeeiros movidos a querosene. Desse imaginário cheio de exotismo aprendeu as mais ricas e belas lições da vida em toda a sua maravilhosa diversidade. Dessas vivências é que ele tira a substância para os seus trabalhos, sempre associados ao universo da cultura e das tradições populares.

Com 36 contos, as narrativas contidas nesse livro abordam uma variedade de temas. Vão dos contos de animais em que os personagens, à moda das fábulas, personificam ações humanas, com fim moralizante, passando dos contos maravilhosos ou de encantamento onde as narrativas se desenrolam através das aventuras de personagens na busca de realizações emocionais, até, como é próprio da tradição cultural popular, narrativas com motivos religiosos, inspiradas nos evangelhos.

Outros temas, como os contos novelescos ou de amor e recompensa, contos jocosos ou humorísticos, contos de fórmula ou acumulativos e os contos de exemplo, completam a recolha. Os amantes das histórias dos irmãos Grimm e os leitores de Perrault reconhecerão de pronto os motivos de várias narrativas que aqui foram reincorporadas à tradição cultural do Nordeste. Uma característica dos contos populares é que eles podem sofrer transformações ao longo do tempo, porém sua essência é a mesma de um conto remoto, contado em época e lugar completamente diferente. Isso pode ser exemplificado pela máxima popular que diz: quem conta um conto aumenta um ponto.

Objetos de entretenimento, distração despretensiosa, são muitos os usos que se pode dar a essas histórias. O certo, no entanto, é que as várias narrativas presentes no imaginário popular, e agora reunidas nesse fabuloso trabalho, servem-se do extraordinário e encantatório, presentes nas histórias, como adereço à instrução dos homens, de todas as idades. A sabedoria contida no conto popular é capaz de levar o homem, nas palavras de Heinrich Zimmer, grande estudioso das culturas antigas, a uma consciência de si próprio, suas potencialidades, bem como ao reconhecimento de seus limites.

Despretensiosos em sua linguagem, os contos recolhidos e recontados por Marco Haurélio seguem fielmente os falares populares, tão variados e expressivos. Sem prejuízo ao entendimento do conto, ou ao trabalho de verter das fontes orais, cheias de redundância, para a escrita os vocábulos próprios e as expressões típicas dos contadores, os contos recolhidos aqui preservam as nuances idiomáticas que caracterizam a fala do povo. Veja-se um exemplo: no conto São Pedro e a questão das almas, a certa altura se lê “São Pedro foi o santo mais teimoso e arteiroso que já existiu...”. Arteiroso, expressão singular do vocabulário nordestino, aqui preservada. Familiarizados com essas expressões, os nordestinos, principalmente os da região onde foram recolhidos os contos, não encontrarão qualquer dificuldade em entender o significado da palavra. Os leitores de outras regiões terão o auxílio de um rico glossário atentamente preparado para desbaratar qualquer dúvida quanto aos significados regionais que abundam nos contos. Nele podemos ler: Arteiroso, sinônimo popular de teimoso e, em alguns casos, de inteligente.

Fonte inesgotável de saberes, os contos populares, assim como as lendas e fábulas, são criações inspiradas de civilizações antigas com o mais elevado propósito: corrigir quando parecem incorrigíveis as malversações, alertar quando os sinais ainda não são totalmente visíveis, fazendo vivos erros que, de tão graves e grosseiros, não deveriam tornar a se repetir.

As distrações que eles promovem, não escondem as mensagens profundas que são encenadas por animais e outros seres mágicos, a fim de divertir, entretendo. Jean de La Fontaine, autor francês que modernizou as fábulas do grego Esopo, quando falou a respeito do propósito de suas fábulas, disse: “Sirvo-me dos animais para instruir os homens”.
Os contos populares estão ricamente espalhados por todos os lugares do mundo. Migrando de região em região, reincorporam elementos sempre novos das várias civilizações por onde andaram. Puro alimento espiritual de um sem número de povos que, em sua maioria, já não existem, mas que permanecem vivas, através dos tempos, como testemunhas de épocas remotas, essas narrativas tradicionais encontraram pouso tranquilo e morada segura nos rincões “carrascosos” do Brasil, e aqui persistem, graças aos esforços e ao trabalho de homens como Marco Haurélio.

Essas histórias guardam íntima relação com aquilo que chamamos de identidade de um povo. Se elas desaparecerem, parte significativa da memória, sabiamente abrigada por anos no seio de corações ardentes, some, e com ela, o registro dos hábitos e costumes que compõem as tradições populares, elo entre o passado e o futuro de uma nação, também desaparece. Estímulo às consciências, leitura prazerosa, os contos contidos nesse saboroso livro entretêm, ensinando. Passatempo divertido, os contos populares também servem de pretexto para reunir os amigos e a família numa roda descontraída de leitura onde a imaginação cavalga por terras distantes.

Publicado em: Crítica & Debates, v. 1, n. 1, p. 1-4, jul./dez. 2010

[1] Professor Auxiliar do curso de Letras da UNEB/Campus VI. Especialista em Literatura Comparada em Língua Portuguesa pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC / 2008).

[2] Cidades baianas localizadas na região Sudoeste do Estado.

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