domingo, 9 de outubro de 2011

O enigma Manoel Riachão



O famoso cordel Peleja de Manoel Riachão com o Diabo
em edição da Luzeiro, com capa assinada por Glen

Por: Marco Haurélio

Quando Riachão é o próprio diabo

Manuel do Riachão ou Manoel Riachão pertence à categoria dos cantadores semilendários preservados pela memória popular, com características que variam de região para região.  Personagem ambivalente, é retratado, por vezes, como um repentista que é desafiado pelo diabo, a quem derrota, ardilosamente, recorrendo à terminologia sagrada. Noutras, Riachão é um indivíduo que vendeu a alma para o diabo, tornando-se, graças ao pacto, imbatível nos desafios sertanejos. Aparece, ainda, como o próprio diabo, e sua presença era indício de grandes catástrofes, como veremos no precioso documento recolhido e transcrito em forma de conto, intitulado Manuel do Riachão, pelo escritor mineiro Viriato Padilha:

É bastante conhecida em diversos estados brasileiros, principalmente nos do norte, a lenda do misterioso personagem a quem o povo deu o nome de Manuel do Riachão, e cujas aventuras satânicas são contadas em verso rústico desde Piauí até Sergipe.

Em alguns lugares acredita-se que Manuel do Riachão era o diabo em pessoa; em outros apresentam-no simplesmente como um indivíduo malfazejo e nefasto, que vendera a alma ao príncipe das trevas, a fim de se tornar o primeiro tocador de viola e improvisador dos batuques sertanejos.

Em toda parte, porém, Manuel do Riachão figura na tradição como bardo sem rival, afirmando-se que a sua passagem por qualquer lugar era prenúncio de calamidades súbitas e inexplicáveis. Guarda o povo lembrança de que secavam os regatos, não obstante a regularidade das chuvas, tresmalhavam-se os rebanhos, surgiam enfermidades no gado, desmereciam as lavouras, e até as pessoas sentiam-se atacadas de sofrimentos estranhos, quando Manuel do Riachão, de viola a tiracolo, atravessava qualquer paragem.

Assim, apesar da admiração que causava pelos seus altos dotes de improvisador inspirado e violeiro habilíssimo, Manuel do Riachão não podia demorar-se por muito tempo em qualquer ponto. Desde logo, a indignação popular levantava-se contra os seus singulares costumes, e nela procurava um derivativo por causa dos males que começavam a afligir a terra, sendo o pobre violeiro obrigado a enfronhar a viola, e buscar outro sítio, até que, sendo aí também perseguido, recomeçasse a sua eterna peregrinação. Assim vivia Manuel do Riachão, e os lugares que de preferência freqüentava eram as tavernas, as mesas de jogo, e principalmente os batuques, pelo prazer de derrotar no verso os mais afamados cantores.

Pois bem: vamos descrever a forma pela qual o povo do norte conta como o sombrio Manuel do Riachão desapareceu dos sambas sertanejos.
* * *
Em uma noite de São João folgava-se ruidosamente em modesta casa do sertão cearense. No terreiro crepitava grande fogueira que iluminava toda a frente da habitação; a criançada pagodeava em derredor do fogo, assando batatas e macaxeiras ao borralho, e na sala roncava o sapateado, puxado vigorosamente por uns cabras desempenados, vaqueiros, comboieiros e roceiros, e por moças sadias, robustas e esbeltas. Todas aquelas pessoas, ali reunidas em alegre folgança, conheciam-se muito, e, ou eram parentes próximos ou afastados, ou vizinhos bastante íntimos.

Assim, notava-se em todas as fisionomias bem-estar completo, satisfação imensa, principalmente nos rapazes e raparigas, quase todos de namoro entabulado ou de casamento ajustado.
Foi em meio dessa festa, simples e boa, que se lembrou fazer um dia a sua aparição o misterioso indivíduo cujo nome encabeça estas linhas, Manuel do Riachão, o mais afamado e fantástico violeiro dos sertões do norte.

* * *

Esse bardo errante, sempre precedido pela antipatia popular, vira-se obrigado a abandonar o Icó, onde assombrara pela sua perícia em improvisar, mas onde também incorrera gravemente no desagrado público, por haver desrespeitado, com uma cantada obscena, uma procissão que se fazia no lugar, sacrilégio que coincidiu com o aparecimento de uma praga de lagartas que devastara completamente os roçados de milho.
A calamidade foi tomada como conseqüência do desacato religioso, e Manuel do Riachão, temendo qualquer violência contra a sua pessoa, bebeu o último gole de aguardente, nas tavernas do Icó, pôs a sua preciosa viola em bandoleira, e lá se foi, estrada fora, a procurar novos auditórios para exibição dos seus dotes de improvisador.

Gastou dias em atravessar a serra do Pereiro, porém na noite de São João já se achava na chapada do Apodi, sôfrego por cantar, visto como no caminho não havia encontrado um só parceiro com o qual se divertisse.

Passava na estrada Manuel do Riachão, quando viu a fogueira e a festa a que já nos referimos. Sem hesitação encaminhou-se para o lugar da patuscada, e, aproveitando-se de um momento de suspensão do batuque, chamou a viola ao peito, e cantou com voz forte estas duas quadras:

Senhora dona da festa,
Me ouça, faça favô;

Não trago fome, nem sede
Nem me atormenta o calô;

Só quero, senhora minha,
Dizer aos seus convidados
Que, quando o meu peito se abre,
Se esconde o mais pintado.

Todas as pessoas que se achavam na sala, e bem assim a criançada que se divertia em torno da fogueira, correram para perto de Manuel do Riachão, que, em pé, no meio do terreiro, continuava a tanger o rasgado na sua viola, sem dizer palavra, e como que à espera que alguém lhe aceitasse o atrevido desafio. Muito alto, magro e de longo cavanhaque cor de barba de milho, tinha a perna arqueada em postura mefistofélica, e um riso sardônico lhe arregaçava o canto dos lábios magros e arroxeados.

Não haveria ninguém naquela festa que aceitasse o desafio daquele sujeito? Era o que todos, com os olhos, se perguntavam uns aos outros, ansiosos por uma lição ao insolente, e ao mesmo tempo desejosos de novo divertimento.

Não esperaram muito tempo os foliões. Dentre a chusma saiu logo um crioulo de gaforinha crescida, o Xico Bordão, que, apanhando uma viola, respondeu no mesmo tom e música ao violeiro errante:

No tempo em que eu cantava 
O meu peito retinia;
Dava um grito no Icó,
No Cariri se ouvia.

Senhora dona da casa,
Faça favô, mande entrá
Quem à sua porta bate,
Pedindo só pra cantá.

Uma salva estrondosa de palmas, acompanhada de gritaria dos meninos, acolheu a cantiga do Xico Bordão, e este, indo ao encontro do Riachão, que continuava sempre de perna arqueada e viola ao peito, cumprimentou-o; e, tomando-o pelo braço, introduziu-o na sala. Rapazes e moças sentaram-se nos bancos dispostos ao correr das paredes, e tendo a dona da casa chegado dois tamboretes aos contendores, estes se abancaram cerimoniosamente, e depois de chupitar cada um seu copinho de aguardente, começou o torneio poético e musical, que não durou muito, pois o Bordão declarou-se logo vencido e retirou-se da sala envergonhado.

Estimulados os brios dos assistentes pela derrota do companheiro, empurraram para o meio do aposento um outro cantador, o Xico Casa-Velha, que também tinha as suas fumaças de improvisador.

Este, porém, no fim de duas quadras esmoreceu. Dizendo o seu nome numa quadrinha, Riachão aproveitou-se dele, e respondeu que toda a casa velha era tapera. Isso foi suficiente para confundir o adversário.
Ainda um terceiro cantador veio sentar-se no fatídico tamborete: era o Totonho, filho da dona da casa, e esse também foi levado à parede com a mesma facilidade.

Então ninguém mais quis cantar com o homem magro do cavanhaque vermelho; e Manuel do Riachão, vendo que nenhum cantador vinha ocupar o tamborete vazio, levantou-se, fez uma grande mesura, e, recuando até a porta, preparava-se para dar a sua despedida em verso, como é costume, quando surgiu na sala, com um machete a tiracolo, e sem que ninguém soubesse por onde tinha entrado, um rapaz muito pálido, de longos cabelos dourados e anelados, olhos profundamente azuis, envolvido num amplo ponche-pala de cor cinzenta clara.

Esse moço adiantou-se na sala, e sentando-se no tamborete onde tinham sido vencidos o Bordão, o Casa-Velha e Totonho, cantou com voz dulcíssima a seguinte quadrinha, em desafio, fazendo-se acompanhar no machete:

Seu Manué do Riachão,
Não dê já a despedida,
Torne a afinar a viola
Que o dia vem longe ainda.

Manuel do Riachão, sentindo-se nomear, isto em lugar em que julgava ser completamente desconhecido, teve um estremeção e fixou os seus olhos fundos e vivos como brasas no desconhecido que continuava a dedilhar no machete, até então conservando a vista abaixada, como que por timidez e recato. A ligeira emoção do violeiro não foi no entanto percebida pelos foliões; e ele, procurando disfarçá-la, respondeu ao moço com esta quadra arrogante:

Bem sei que o dia vem longe,
Temos tempo pra trová,
Mas vosmecê se arrepende
Antes do galo cantá.

O moço de olhos cor do céu continuava de fronte baixa, e em sua fisionomia, que parecia anuviada por funda tristeza, nem o menor sinal de emoção denunciou, ao ouvir a resposta atrevida do Riachão.

Ao mesmo tempo que todos os circunstantes crescia o interesse pelo desafio; e um pressentimento vago como que lhes dizia que Manuel do Riachão, segundo a frase popular, se estreparia naquela topada. Assim, foi com satisfação que viram o moço do machete ferir de novo o instrumento com as suas mãos, que eram de uma brancura de cera de carnaúba, e soltar estes versos:

Um ano tão bom de inverno
Que pecados são os seu!
Seu Manué do Riachão
Seu riacho não correu ...

Manuel do Riachão tornou a fitar os seus olhos de brasa no moço do ponche-pala cinzento; o famoso violeiro como que procurava saber quem era esse que parecia querer revelar ao auditório matuto a sua misteriosa e sombria natureza. No entanto não deixou de fazer a sua entrada em tempo e responder com visível mau humor nos seguintes versos:

Se o riacho não correu
Não foi por falta de inverno,
É que as águas afundaram
Foram ferver no inferno.

Os caipiras começaram a admirar-se da feição estranha que tomava o desafio poético. Quem seriam aqueles dois singulares violeiros, tão estranhos e diferentes nos modos e nas figuras? – perguntavam eles, chegando as bocas aos ouvidos uns dos outros. Quando as últimas notas, que acompanhavam os versos do Riachão, se extinguiram, o moço triste do machete descerrou outra vez os lábios, sem no entanto levantar ainda fronte, e cantou:

Seu Manué do Riachão,
Que triste sina é a sua,
Noite que vomecê canta,
No céu não se vê a lua.

Riachão torceu-se no tamborete, incomodado por essa segunda investida à sua reputação, e apenas o moço cor de cera acabava de desferir a última sílaba do verso, ele bramiu com voz forte, na qual se percebia claramente a raiva e o despeito:

Se a lua não aparece
Na noite de meu descante,
É, moço do machetinho,
Que eu canto só no minguante.

Na verdade Manuel do Riachão era um repentista admirável, e essa resposta tão adequada causou a admiração dos sertanejos. O moço louro, porém, continuava impassível e de olhos fitos no chão. De seu amplo ponche-pala cinzento evolava-se como que uma neblina levemente dourada que o envolvia todo; e assim que lhe coube a vez de cantar, gemeu no semblante esquálido crescente perturbação; e, embora só o tivesse encarado de frente uma só vez, o moço pálido bem o percebia, e assim saiu-se com esta:

Seu Manué do Riachão,
Uma coisa está se vendo:
Sua viola enrouquece,
Sua voz 'tá 'smorecendo.

Era verdade o que dizia o moço triste, porém Manuel do Riachão tentava ainda resistir, e assim respondeu incontinenti:

Não se glorie com isso,
Cantante do ponche-pala,
Bebi demais no caminho
Sinto um pigarro na fala...

Esses versos eram prenúncio da derrota do terrível trovador. O auditório compreendeu-o, e ficou suspenso dos lábios do cantador cor de cera, que, sempre de olhos baixos, tangia no machetinho, com tanta doçura que parecia que os seus dedos vaporosos nem feriam as cordas.

Logo que Riachão se calou, o moço levantou pela segunda vez os seus olhos serenos, tornou a fitá-los em cheio no violeiro, e cantou com voz mais alta e vibrante:

Seu Manué do Riachão,
Meu amigo e camarada,
Vomecê se avexa tanto
Eu não me avexo de nada.

Manuel do Riachão, ao sentir de novo penetrar-lhe a luz clara e profundamente azul dos olhos do fantástico moço pálido, tornou a confundir-se: os seus dedos, rasparam na viola, nervosamente, sem tirar harmonia, o seu corpo todo tremeu; e, pela segunda vez, nesse desafio, não entrou logo com a réplica, ao que o moço do machete, aproveitando a descaída, tornou de novo a abrir os lábios, e cantou, tornando-se a sua voz aguda e firme:

Seu Manué do Riachão,
Depois da flô vem a espiga:
Quero que vomecê reze
O Padre-Nosso em cantiga.

Sentindo essa provocação direta aos seus sentimentos religiosos, Manuel do Riachão ergueu-se de um salto. Todo o seu corpo foi tomado de um tremor convulsivo; e torcendo os braços e as pernas, como se fossem serpentes raivosas, vibrou as cordas da viola, com tanta raiva, que as fazia rebentar, ao mesmo tempo que berrava com voz sombria:

Seu moço do ponche-pala,
Não sou padre pra rezá;
Renego os santos da igreja,
Renego a pedra do artá.

E, ao dizer isto, todas as luzes da sala se apagaram, e bem assim a fogueira que crepitava no terreiro. Todos ficaram tomados de assombro.

Pelo luar que entrava pela janela viram no entanto que o moço pálido se levantava e se erguia do chão, alguns palmos, ao mesmo tempo que cantava, com voz tão aguda que chegava a doer nos ouvidos, estes versos que foram os últimos do famoso desafio:

Senhora dona da festa,
Abra a porta, acenda a luz,
Estamos com o diabo em casa
Rezemos o Credo em cruz.

Assim que acabou de cantar, ouviu-se na sala um estrondo medonho; e, abrindo-se logo o soalho, de meio a meio, por ele enterrou-se e sumiu-se o nefasto Manuel do Riachão, ao passo que o moço triste e de mãos cor de cera mais se elevava do chão. O seu amplo ponche-pala cinzento transformara-se em asas, brancas como a neblina da manhã; e o seu machete tomara a forma de uma palma, que ele comprimiu ao seio, e, sempre subindo, voou pela janela aberta e desapareceu no espaço, sem que olhos humanos pudessem segui-lo.

* * *

É assim que o povo do norte conta de que maneira Manuel do Riachão desapareceu dos sambas sertanejos.

(Padilha, Viriato. O livro dos fantasmas. Rio de Janeiro, Spiker, 1956)

Ruth Guimarães, no impressionante e erudito estudo Os filhos do medo (1950),  reproduz uma versão da lenda em que o cantador é derrotado por um moço que depois se revela um anjo. A quadra que sela a derrota do diabo (Riachão), que estoura e some, aparece com uma pequena variação:

Senhora dona de casa
Feche a porta e apague a luz,
Que temos o Diabo em casa,
Rezemos o credo em cruz.

Em Terra de sol, Gustavo Barroso cita a mesma estrofe, atribuída a Manoel da Bernarda que, numa peleja travada numa fazenda dos Inhamuns, Ceará, derrota o cangaceiro Rio-Preto:

Senhora dona de casa,
Abra a porta e apague a luz,
Estamos com o cão em casa,
Rezemos o credo em cruz.


Quando Riachão é oponente do diabo

A história do violeiro que, desafiado pelo diabo, derrota-o, sobreviveu na tradição oral até que Leandro Gomes de Barros desse a ela forma literária, no final do século XIX. Riachão, na versão fixada por Leandro, não é o diabo, mas seu antagonista. A ação se passa em Açu, Rio Grande do Norte, onde Riachão cantava:

Riachão estava cantando 
Na cidade de Açu, 
Quando apareceu um negro 
Da espécie de urubu, 
Tinha a camisa de sola 
E as calças de couro cru.

Beiços grossos e virados 
Como a sola de um chinelo 
Um olho muito encarnado 
O outro muito amarelo, 
Este chamou Riachão 
Para cantar um martelo.

Riachão disse: eu não canto 
Com negro desconhecido, 
Porque pode ser escravo, 
E anda por aqui fugido 
Isso é dar cauda a nambu 
E entrada a negro enxerido.

Mesmo assim, a peleja têm início, e o diabo, personificado num catador negro, em plena vigência da escravidão no Brasil, apresenta suas “credenciais”:

N - Sou professor de matérias 
Que sábio não as conhece; 
A lei que dito no mundo, 
O próprio rei obedece 
Meus feitos são conhecidos, 
A fama se estende e cresce.

O que chama a atenção de Riachão:

Riachão disse consigo: 
- Esse negro é um danado! 
Esse saiu do Inferno, 
Pelo Demônio mandado, 
E para enganar-me veio 
Em um negro transformado!

No trecho a seguir, temos algumas informações que podem conter traços da biografia do verdadeiro Riachão:

R - O senhor diga o seu nome, 
Eu quero lhe conhecer, 
Pois só assim posso dar-lhe 
O valor que merecer,
Em tudo que você diz 
A inda não posso crer.

N - Você, sabendo quem sou 
Talvez que fique assombrado, 
Superior a você 
Comigo tem se espantado 
Os grandes da sua Terra 
Eu tenho subjugado!

R - Eu canto há dezoito anos, 
Há vinte toco viola, 
Sempre encontro cantador 
Que só tem fama e parola 
Quando canta meio dia, 
Cai nos meus pés, no chão rola.

N - Eu já canto há muitos anos, 
Não vou em toda função, 
Arranco pontas de touro, 
Quebro o furor do leão, 
Nunca achei esse duro 
Que para mim tenha ação.

R - Garanto que de hoje em diante, 
O senhor tem que encontrar 
A força superior 
Que o obrigue a se calar, 
Porque eu boto o cerco, 
Quem vai não pode voltar!

N - Manoel, tu és criança, 
Só tens mesmo é pabulagem! 
Vejo que falar é fôlego, 
Porém obrar é coragem 
Juro que' de agora em diante 
Não contarás mais vantagem!

R - Meu pai chamava-se Antônio, 
Seu apelido era Rio; 
De uma enxurrada que dava 
Cobria todo o baixio 
Secava em tempo de inverno 
Enchia em tempo de estio.

N - Conheci muito seu pai, 
Que vivia de pescar,
Sua mãe era tão pobre, 
Que vivia de um tear 
Seu padrinho tomou você 
E levou-o para criar.

R - Onde mora o senhor, 
Que meu avô conheceu? 
Que eu nem me lembro mais 
Do tempo que ele morreu 
E você está parecendo 
Muito mais moço que eu!

N - Eu sei do dia e da hora 
Que nasceu seu bisavô,
Chamava-se Ana Mendes 
A parteira que o pegou 
E conheci muito o frade 
E o vi quando o batizou.

R - Bote sua maca abaixo 
Conte essa história direito,
Da forma que você conta 
Eu não fico satisfeito 
Como ver-se um objeto 
Antes daquilo ser feito?

N - Seu bisavô se chamava
Apolinário Cancão
Era filho de um ferreiro 
Que o chamavam Gavião
Sua bisavó Lourença 
Filha de Amaro Assunção.

R - Mas que idade tem você, 
Que me faz admirar? 
Conheceu meu bisavô 
Eu não posso acreditar, 
Assim destas condições 
Faz até desconfiar.

N - Seu bisavô e o avô 
Foram por mim conhecidos, 
Seu pai, sua mãe, você 
Antes de serem nascidos 
Já estavam em minha nota 
Para serem protegidos.

E, aqui, temos um indício da proteção demoníaca, também associada à lenda do cantador Riachão:

N - Eu protejo você tanto, 
Que o defendi de morrer 
Você se lembra da onça 
que um a vez quis lhe comer 
Que apareceu um cachorro 
E fez a onça correr?

R - Me lembro perfeitamente 
Quando a onça me emboscou 
Já ia marcando o salto 
Quando um cachorro chegou 
A onça correu com medo, 
Eu não sei quem me salvou...

N - Pois foi este seu criado 
Que viu a onça emboscá-lo 
Eu chamei por meu cachorro 
Para da onça livrá-lo 
Se lembra quando você 
Ouviu o canto dum galo?
E todas as dúvidas se dissipam:

R - Agora acabei de crer 
Que tu és o inimigo! 
Te transformaste em homem, 
Para vir cantar comigo, 
Mas eu acredito em Deus 
Não posso correr perigo!

E o diabo aparece em outro papel, o de tentador: 

N - Riachão, amas a Deus 
Sendo mal recompensado! 
Deus fez de Paulo um Monarca 
De Pedro um simples soldado 
Fez um com tanta saúde, 
Outro cego e aleijado!

E sai-se bem na resposta, contudo, derrotar o inimigo:

R - Se Deus fez de Paulo um rei, 
Porque Paulo merecia 
Se fez de Pedro um soldado, 
Era o que a Pedro cabia: 
Se não fosse necessário, 
O grande Deus não fazia!

N - O teu vizinho e parente 
Enricou sem trabalhar; 
Teu pai trabalhava tanto 
E nunca pode enricar 
Não se deitava uma noite 
Que deixasse de rezar!

R - Meu pai morreu na pobreza, 
Foi fiel ao seu Senhor! 
Executou toda ordem 
Que lhe deu o Criador 
E foi um a das ovelhas 
Que deu mais gosto ao pastor!

N - Arre lá! Lhe disse o Negro. 
Você é caso sem jeito!
Eu com tanta paciência, 
Estou lhe ensinando direito 
Você vê que está errado, 
Faz que não vê o defeito!

R - É muito feliz o homem 
Que com tudo se consola! 
posso morrer na pobreza, 
Me achar pedindo esmola 
Deus me dá para passar 
Ciência e esta viola!

Nas três estrofes que se seguem,  há elementos que enriquecem qualquer análise etnográfica: a invocação da Virgem Maria, como advogada de defesa,  é tema de autos populares e de obras literárias irrigadas pelas águas da tradição:

O negro olhou Riachão 
Com os olhos de cão danado,
Riachão gritou: - Jesus,
Homem Deus Sacramentado! 
Valha-me a Virgem Maria, 
A Mãe do Verbo Encarnado!

O negro, soltando um grito, 
Dali desapareceu. 
De uma catinga de enxofre 
A casa toda se encheu, 
Os cães uivaram na rua,
O chão da casa tremeu.

Riachão ficou cismado 
Com cantor desconhecido, 
Que, quando encontrava um, 
Tomava logo sentido 
O seu primeiro repente 
Era a Deus oferecido.

A fonte do grande poeta paraibano foi mesmo a tradição oral, conforme atestado na última estrofe:

Essa história que escrevi 
Não foi por mim inventada: 
Um velho daquela época 
Tem ainda decorada. 
Minha aqui só são as rimas 
Exceto elas, mais nada!

Um enigma

Câmara Cascudo, em Vaqueiros e cantadores, reproduz algumas estrofes do desafio de Manuel do Riachão com Maria Tebana, no qual predominam as perguntas sibilinas que, depois, entrariam na  literatura de cordel, como um subgênero muito explorado:

Pois  agora me responda,
Nego Manuel Riachão,
Que é que não tem mão nem pé,
Não tem pena nem canhão,
Não tem figo, não tem bofe,
Nem vida nem coração,
Mas, eu querendo, ele avoa,
Trinta palmo alto do chão?

A resposta – “um papagaio de papel/ Enfiado num cordão...” – mostra a destreza de Riachão, contudo, o que mais importa, para  nós, é a informação contida no segundo verso da oitava de Tebana , que qualifica seu adversário como “nego” (negro). A informação  mais complica que esclarece a nossa tentativa de conhecer o personagem do lendário cantador. Se na peleja com o diabo, recriada por Leandro, ele escarnece do oponente por este ser negro (e, possivelmente, um escravo foragido), no desafio com Tebana, ele é qualificado como tal, embora o recurso não sirva à degradação do oponente. Sobre Maria Tebana, as informações são escassas, mas é possível que tenha nascido No Rio Grande do Norte, no século XIX (ou entre os séculos XVIII e XIX).

No Dicionário biobibliográfico de repentistas e poetas de bancada, Átila Almeida e José Alves Sobrinho dão como berço de Riachão Araruna, na Paraíba, e o situam no final do século XIX e início do século XX.  Mas, se Leandro Gomes de Barros, no folheto famoso, cita como fonte da peleja lendária um velho do passado (“daquela época”), como pode Riachão ser seu contemporâneo? Até porque Silvio Romero, secundado por Ruth Guimarães, afirma ter sido Riachão um cantador das margens do São Francisco que, sabemos, não banha ainda a Paraíba. Romero colheu inclusive, no Rio Grande do Sul, duas quadras atribuídas a Riachão e Tebana que Câmara Cascudo atesta serem “dos fins do século XVIII e  princípio do XIX”.

O enigma, como se vê, permanece.