O famoso cordel Peleja de Manoel Riachão com o Diabo em edição da Luzeiro, com capa assinada por Glen |
Por: Marco Haurélio
Quando Riachão é o
próprio diabo
Manuel do Riachão ou
Manoel Riachão pertence à categoria dos cantadores semilendários preservados
pela memória popular, com características que variam de região para
região. Personagem ambivalente, é
retratado, por vezes, como um repentista que é desafiado pelo diabo, a quem
derrota, ardilosamente, recorrendo à terminologia sagrada. Noutras, Riachão é
um indivíduo que vendeu a alma para o diabo, tornando-se, graças ao pacto,
imbatível nos desafios sertanejos. Aparece, ainda, como o próprio diabo, e sua
presença era indício de grandes catástrofes, como veremos no precioso documento
recolhido e transcrito em forma de conto, intitulado Manuel do Riachão, pelo escritor mineiro Viriato Padilha:
É bastante conhecida
em diversos estados brasileiros, principalmente nos do norte, a lenda do
misterioso personagem a quem o povo deu o nome de Manuel do Riachão, e cujas
aventuras satânicas são contadas em verso rústico desde Piauí até Sergipe.
Em alguns lugares
acredita-se que Manuel do Riachão era o diabo em pessoa; em outros
apresentam-no simplesmente como um indivíduo malfazejo e nefasto, que vendera a
alma ao príncipe das trevas, a fim de se tornar o primeiro tocador de viola e
improvisador dos batuques sertanejos.
Em toda parte,
porém, Manuel do Riachão figura na tradição como bardo sem rival, afirmando-se
que a sua passagem por qualquer lugar era prenúncio de calamidades súbitas e
inexplicáveis. Guarda o povo lembrança de que secavam os regatos, não obstante
a regularidade das chuvas, tresmalhavam-se os rebanhos, surgiam enfermidades no
gado, desmereciam as lavouras, e até as pessoas sentiam-se atacadas de
sofrimentos estranhos, quando Manuel do Riachão, de viola a tiracolo,
atravessava qualquer paragem.
Assim, apesar da
admiração que causava pelos seus altos dotes de improvisador inspirado e
violeiro habilíssimo, Manuel do Riachão não podia demorar-se por muito tempo em
qualquer ponto. Desde logo, a indignação popular levantava-se contra os seus
singulares costumes, e nela procurava um derivativo por causa dos males que
começavam a afligir a terra, sendo o pobre violeiro obrigado a enfronhar a
viola, e buscar outro sítio, até que, sendo aí também perseguido, recomeçasse a
sua eterna peregrinação. Assim vivia Manuel do Riachão, e os lugares que de
preferência freqüentava eram as tavernas, as mesas de jogo, e principalmente os
batuques, pelo prazer de derrotar no verso os mais afamados cantores.
Pois bem: vamos
descrever a forma pela qual o povo do norte conta como o sombrio Manuel do
Riachão desapareceu dos sambas sertanejos.
* * *
Em uma noite de São
João folgava-se ruidosamente em modesta casa do sertão cearense. No terreiro
crepitava grande fogueira que iluminava toda a frente da habitação; a criançada
pagodeava em derredor do fogo, assando batatas e macaxeiras ao borralho, e na
sala roncava o sapateado, puxado vigorosamente por uns cabras desempenados,
vaqueiros, comboieiros e roceiros, e por moças sadias, robustas e esbeltas.
Todas aquelas pessoas, ali reunidas em alegre folgança, conheciam-se muito, e,
ou eram parentes próximos ou afastados, ou vizinhos bastante íntimos.
Assim, notava-se em
todas as fisionomias bem-estar completo, satisfação imensa, principalmente nos
rapazes e raparigas, quase todos de namoro entabulado ou de casamento ajustado.
Foi em meio dessa
festa, simples e boa, que se lembrou fazer um dia a sua aparição o misterioso
indivíduo cujo nome encabeça estas linhas, Manuel do Riachão, o mais afamado e
fantástico violeiro dos sertões do norte.
* * *
Esse bardo errante,
sempre precedido pela antipatia popular, vira-se obrigado a abandonar o Icó,
onde assombrara pela sua perícia em improvisar, mas onde também incorrera
gravemente no desagrado público, por haver desrespeitado, com uma cantada
obscena, uma procissão que se fazia no lugar, sacrilégio que coincidiu com o
aparecimento de uma praga de lagartas que devastara completamente os roçados de
milho.
A calamidade foi
tomada como conseqüência do desacato religioso, e Manuel do Riachão, temendo
qualquer violência contra a sua pessoa, bebeu o último gole de aguardente, nas
tavernas do Icó, pôs a sua preciosa viola em bandoleira, e lá se foi, estrada
fora, a procurar novos auditórios para exibição dos seus dotes de improvisador.
Gastou dias em
atravessar a serra do Pereiro, porém na noite de São João já se achava na
chapada do Apodi, sôfrego por cantar, visto como no caminho não havia
encontrado um só parceiro com o qual se divertisse.
Passava na estrada
Manuel do Riachão, quando viu a fogueira e a festa a que já nos referimos. Sem
hesitação encaminhou-se para o lugar da patuscada, e, aproveitando-se de um
momento de suspensão do batuque, chamou a viola ao peito, e cantou com voz
forte estas duas quadras:
Senhora dona da festa,
Me ouça, faça favô;
Não trago fome, nem sede
Nem me atormenta o calô;
Me ouça, faça favô;
Não trago fome, nem sede
Nem me atormenta o calô;
Só quero, senhora minha,
Dizer aos seus convidados
Que, quando o meu peito se abre,
Se esconde o mais pintado.
Dizer aos seus convidados
Que, quando o meu peito se abre,
Se esconde o mais pintado.
Todas as pessoas que
se achavam na sala, e bem assim a criançada que se divertia em torno da
fogueira, correram para perto de Manuel do Riachão, que, em pé, no meio do
terreiro, continuava a tanger o rasgado na sua viola, sem dizer palavra, e como
que à espera que alguém lhe aceitasse o atrevido desafio. Muito alto, magro e
de longo cavanhaque cor de barba de milho, tinha a perna arqueada em postura
mefistofélica, e um riso sardônico lhe arregaçava o canto dos lábios magros e
arroxeados.
Não haveria ninguém
naquela festa que aceitasse o desafio daquele sujeito? Era o que todos, com os
olhos, se perguntavam uns aos outros, ansiosos por uma lição ao insolente, e ao
mesmo tempo desejosos de novo divertimento.
Não esperaram muito
tempo os foliões. Dentre a chusma saiu logo um crioulo de gaforinha crescida, o
Xico Bordão, que, apanhando uma viola, respondeu no mesmo tom e música ao
violeiro errante:
No tempo em que eu cantava
O meu peito retinia;
Dava um grito no Icó,
No Cariri se ouvia.
Dava um grito no Icó,
No Cariri se ouvia.
Senhora dona da casa,
Faça favô, mande entrá
Quem à sua porta bate,
Pedindo só pra cantá.
Faça favô, mande entrá
Quem à sua porta bate,
Pedindo só pra cantá.
Uma salva estrondosa
de palmas, acompanhada de gritaria dos meninos, acolheu a cantiga do Xico
Bordão, e este, indo ao encontro do Riachão, que continuava sempre de perna
arqueada e viola ao peito, cumprimentou-o; e, tomando-o pelo braço,
introduziu-o na sala. Rapazes e moças sentaram-se nos bancos dispostos ao
correr das paredes, e tendo a dona da casa chegado dois tamboretes aos
contendores, estes se abancaram cerimoniosamente, e depois de chupitar cada um
seu copinho de aguardente, começou o torneio poético e musical, que não durou
muito, pois o Bordão declarou-se logo vencido e retirou-se da sala
envergonhado.
Estimulados os brios
dos assistentes pela derrota do companheiro, empurraram para o meio do aposento
um outro cantador, o Xico Casa-Velha, que também tinha as suas fumaças de
improvisador.
Este, porém, no fim
de duas quadras esmoreceu. Dizendo o seu nome numa quadrinha, Riachão
aproveitou-se dele, e respondeu que toda a casa velha era tapera. Isso foi
suficiente para confundir o adversário.
Ainda um terceiro
cantador veio sentar-se no fatídico tamborete: era o Totonho, filho da dona da
casa, e esse também foi levado à parede com a mesma facilidade.
Então ninguém mais
quis cantar com o homem magro do cavanhaque vermelho; e Manuel do Riachão,
vendo que nenhum cantador vinha ocupar o tamborete vazio, levantou-se, fez uma
grande mesura, e, recuando até a porta, preparava-se para dar a sua despedida
em verso, como é costume, quando surgiu na sala, com um machete a tiracolo, e
sem que ninguém soubesse por onde tinha entrado, um rapaz muito pálido, de
longos cabelos dourados e anelados, olhos profundamente azuis, envolvido num
amplo ponche-pala de cor cinzenta clara.
Esse moço
adiantou-se na sala, e sentando-se no tamborete onde tinham sido vencidos o
Bordão, o Casa-Velha e Totonho, cantou com voz dulcíssima a seguinte quadrinha,
em desafio, fazendo-se acompanhar no machete:
Seu Manué do Riachão,
Não dê já a despedida,
Torne a afinar a viola
Que o dia vem longe ainda.
Não dê já a despedida,
Torne a afinar a viola
Que o dia vem longe ainda.
Manuel do Riachão,
sentindo-se nomear, isto em lugar em que julgava ser completamente
desconhecido, teve um estremeção e fixou os seus olhos fundos e vivos como
brasas no desconhecido que continuava a dedilhar no machete, até então
conservando a vista abaixada, como que por timidez e recato. A ligeira emoção
do violeiro não foi no entanto percebida pelos foliões; e ele, procurando
disfarçá-la, respondeu ao moço com esta quadra arrogante:
Bem sei que o dia vem longe,
Temos tempo pra trová,
Mas vosmecê se arrepende
Antes do galo cantá.
Temos tempo pra trová,
Mas vosmecê se arrepende
Antes do galo cantá.
O moço de olhos cor
do céu continuava de fronte baixa, e em sua fisionomia, que parecia anuviada
por funda tristeza, nem o menor sinal de emoção denunciou, ao ouvir a resposta
atrevida do Riachão.
Ao mesmo tempo que
todos os circunstantes crescia o interesse pelo desafio; e um pressentimento
vago como que lhes dizia que Manuel do Riachão, segundo a frase popular, se
estreparia naquela topada. Assim, foi com satisfação que viram o moço do
machete ferir de novo o instrumento com as suas mãos, que eram de uma brancura
de cera de carnaúba, e soltar estes versos:
Um ano tão bom de inverno
Que pecados são os seu!
Seu Manué do Riachão
Seu riacho não correu ...
Que pecados são os seu!
Seu Manué do Riachão
Seu riacho não correu ...
Manuel do Riachão
tornou a fitar os seus olhos de brasa no moço do ponche-pala cinzento; o famoso
violeiro como que procurava saber quem era esse que parecia querer revelar ao
auditório matuto a sua misteriosa e sombria natureza. No entanto não deixou de
fazer a sua entrada em tempo e responder com visível mau humor nos seguintes
versos:
Se o riacho não correu
Não foi por falta de inverno,
É que as águas afundaram
Foram ferver no inferno.
Não foi por falta de inverno,
É que as águas afundaram
Foram ferver no inferno.
Os caipiras
começaram a admirar-se da feição estranha que tomava o desafio poético. Quem
seriam aqueles dois singulares violeiros, tão estranhos e diferentes nos modos
e nas figuras? – perguntavam eles, chegando as bocas aos ouvidos uns dos
outros. Quando as últimas notas, que acompanhavam os versos do Riachão, se
extinguiram, o moço triste do machete descerrou outra vez os lábios, sem no
entanto levantar ainda fronte, e cantou:
Seu Manué do Riachão,
Que triste sina é a sua,
Noite que vomecê canta,
No céu não se vê a lua.
Que triste sina é a sua,
Noite que vomecê canta,
No céu não se vê a lua.
Riachão torceu-se no
tamborete, incomodado por essa segunda investida à sua reputação, e apenas o
moço cor de cera acabava de desferir a última sílaba do verso, ele bramiu com
voz forte, na qual se percebia claramente a raiva e o despeito:
Se a lua não aparece
Na noite de meu descante,
É, moço do machetinho,
Que eu canto só no minguante.
Na noite de meu descante,
É, moço do machetinho,
Que eu canto só no minguante.
Na verdade Manuel do
Riachão era um repentista admirável, e essa resposta tão adequada causou a
admiração dos sertanejos. O moço louro, porém, continuava impassível e de olhos
fitos no chão. De seu amplo ponche-pala cinzento evolava-se como que uma
neblina levemente dourada que o envolvia todo; e assim que lhe coube a vez de
cantar, gemeu no semblante esquálido crescente perturbação; e, embora só o
tivesse encarado de frente uma só vez, o moço pálido bem o percebia, e assim
saiu-se com esta:
Seu Manué do Riachão,
Uma coisa está se vendo:
Sua viola enrouquece,
Sua voz 'tá 'smorecendo.
Uma coisa está se vendo:
Sua viola enrouquece,
Sua voz 'tá 'smorecendo.
Era verdade o que
dizia o moço triste, porém Manuel do Riachão tentava ainda resistir, e assim
respondeu incontinenti:
Não se glorie com isso,
Cantante do ponche-pala,
Bebi demais no caminho
Sinto um pigarro na fala...
Cantante do ponche-pala,
Bebi demais no caminho
Sinto um pigarro na fala...
Esses versos eram
prenúncio da derrota do terrível trovador. O auditório compreendeu-o, e ficou
suspenso dos lábios do cantador cor de cera, que, sempre de olhos baixos,
tangia no machetinho, com tanta doçura que parecia que os seus dedos vaporosos
nem feriam as cordas.
Logo que Riachão se
calou, o moço levantou pela segunda vez os seus olhos serenos, tornou a
fitá-los em cheio no violeiro, e cantou com voz mais alta e vibrante:
Seu Manué do Riachão,
Meu amigo e camarada,
Vomecê se avexa tanto
Eu não me avexo de nada.
Meu amigo e camarada,
Vomecê se avexa tanto
Eu não me avexo de nada.
Manuel do Riachão,
ao sentir de novo penetrar-lhe a luz clara e profundamente azul dos olhos do
fantástico moço pálido, tornou a confundir-se: os seus dedos, rasparam na
viola, nervosamente, sem tirar harmonia, o seu corpo todo tremeu; e, pela
segunda vez, nesse desafio, não entrou logo com a réplica, ao que o moço do
machete, aproveitando a descaída, tornou de novo a abrir os lábios, e cantou,
tornando-se a sua voz aguda e firme:
Seu Manué do Riachão,
Depois da flô vem a espiga:
Quero que vomecê reze
O Padre-Nosso em cantiga.
Depois da flô vem a espiga:
Quero que vomecê reze
O Padre-Nosso em cantiga.
Sentindo essa
provocação direta aos seus sentimentos religiosos, Manuel do Riachão ergueu-se
de um salto. Todo o seu corpo foi tomado de um tremor convulsivo; e torcendo os
braços e as pernas, como se fossem serpentes raivosas, vibrou as cordas da
viola, com tanta raiva, que as fazia rebentar, ao mesmo tempo que berrava com
voz sombria:
Seu moço do ponche-pala,
Não sou padre pra rezá;
Renego os santos da igreja,
Renego a pedra do artá.
Não sou padre pra rezá;
Renego os santos da igreja,
Renego a pedra do artá.
E, ao dizer isto,
todas as luzes da sala se apagaram, e bem assim a fogueira que crepitava no
terreiro. Todos ficaram tomados de assombro.
Pelo luar que entrava
pela janela viram no entanto que o moço pálido se levantava e se erguia do
chão, alguns palmos, ao mesmo tempo que cantava, com voz tão aguda que chegava
a doer nos ouvidos, estes versos que foram os últimos do famoso desafio:
Senhora dona da festa,
Abra a porta, acenda a luz,
Estamos com o diabo em casa
Rezemos o Credo em cruz.
Abra a porta, acenda a luz,
Estamos com o diabo em casa
Rezemos o Credo em cruz.
Assim que acabou de
cantar, ouviu-se na sala um estrondo medonho; e, abrindo-se logo o soalho, de
meio a meio, por ele enterrou-se e sumiu-se o nefasto Manuel do Riachão, ao
passo que o moço triste e de mãos cor de cera mais se elevava do chão. O seu
amplo ponche-pala cinzento transformara-se em asas, brancas como a neblina da
manhã; e o seu machete tomara a forma de uma palma, que ele comprimiu ao seio,
e, sempre subindo, voou pela janela aberta e desapareceu no espaço, sem que
olhos humanos pudessem segui-lo.
* * *
É assim que o povo
do norte conta de que maneira Manuel do Riachão desapareceu dos sambas
sertanejos.
(Padilha, Viriato. O livro dos fantasmas. Rio de Janeiro, Spiker, 1956)
Ruth Guimarães, no
impressionante e erudito estudo Os filhos
do medo (1950), reproduz uma versão
da lenda em que o cantador é derrotado por um moço que depois se revela um
anjo. A quadra que sela a derrota do diabo (Riachão), que estoura e some,
aparece com uma pequena variação:
Senhora dona de casa
Feche a porta e apague
a luz,
Que temos o Diabo em
casa,
Rezemos o credo em
cruz.
Em Terra de sol, Gustavo Barroso cita a mesma estrofe, atribuída a
Manoel da Bernarda que, numa peleja travada numa fazenda dos Inhamuns, Ceará,
derrota o cangaceiro Rio-Preto:
Senhora dona de casa,
Abra a porta e apague a
luz,
Estamos com o cão em
casa,
Rezemos o credo em
cruz.
Quando Riachão é
oponente do diabo
A história do
violeiro que, desafiado pelo diabo, derrota-o, sobreviveu na tradição oral até
que Leandro Gomes de Barros desse a ela forma literária, no final do século
XIX. Riachão, na versão fixada por Leandro, não é o diabo, mas seu antagonista.
A ação se passa em Açu, Rio Grande do Norte, onde Riachão cantava:
Riachão estava
cantando
Na cidade de
Açu,
Quando apareceu um
negro
Da espécie de
urubu,
Tinha a camisa de
sola
E as calças de couro
cru.
Beiços grossos e
virados
Como a sola de um
chinelo
Um olho muito
encarnado
O outro muito
amarelo,
Este chamou
Riachão
Para cantar um martelo.
Riachão disse: eu
não canto
Com negro
desconhecido,
Porque pode ser
escravo,
E anda por aqui
fugido
Isso é dar cauda a
nambu
E entrada a negro
enxerido.
Mesmo assim, a
peleja têm início, e o diabo, personificado num catador negro, em plena vigência
da escravidão no Brasil, apresenta suas “credenciais”:
N - Sou professor de
matérias
Que sábio não as
conhece;
A lei que dito no
mundo,
O próprio rei
obedece
Meus feitos são
conhecidos,
A fama se estende e
cresce.
O que chama a
atenção de Riachão:
Riachão disse
consigo:
- Esse negro é um
danado!
Esse saiu do
Inferno,
Pelo Demônio
mandado,
E para enganar-me
veio
Em um negro
transformado!
No trecho a seguir,
temos algumas informações que podem conter traços da biografia do verdadeiro Riachão:
R - O senhor diga o
seu nome,
Eu quero lhe
conhecer,
Pois só assim posso
dar-lhe
O valor que merecer,
Em tudo que você
diz
A inda não posso
crer.
N - Você, sabendo
quem sou
Talvez que fique
assombrado,
Superior a
você
Comigo tem se espantado
Os grandes da sua
Terra
Eu tenho subjugado!
R - Eu canto há
dezoito anos,
Há vinte toco
viola,
Sempre encontro
cantador
Que só tem fama e
parola
Quando canta meio
dia,
Cai nos meus pés, no
chão rola.
N - Eu já canto há
muitos anos,
Não vou em toda
função,
Arranco pontas de
touro,
Quebro o furor do
leão,
Nunca achei esse
duro
Que para mim tenha
ação.
R - Garanto que de
hoje em diante,
O senhor tem que
encontrar
A força
superior
Que o obrigue a se
calar,
Porque eu boto o
cerco,
Quem vai não pode
voltar!
N - Manoel, tu és
criança,
Só tens mesmo é
pabulagem!
Vejo que falar é
fôlego,
Porém obrar é
coragem
Juro que' de agora
em diante
Não contarás mais
vantagem!
R - Meu pai
chamava-se Antônio,
Seu apelido era
Rio;
De uma enxurrada que
dava
Cobria todo o
baixio
Secava em tempo de
inverno
Enchia em tempo de
estio.
N - Conheci muito
seu pai,
Que vivia de pescar,
Sua mãe era tão
pobre,
Que vivia de um
tear
Seu padrinho tomou
você
E levou-o para
criar.
R - Onde mora o senhor,
Que meu avô
conheceu?
Que eu nem me lembro
mais
Do tempo que ele
morreu
E você está
parecendo
Muito mais moço que
eu!
N - Eu sei do dia e
da hora
Que nasceu seu
bisavô,
Chamava-se Ana
Mendes
A parteira que o
pegou
E conheci muito o
frade
E o vi quando o
batizou.
R - Bote sua maca
abaixo
Conte essa história
direito,
Da forma que você
conta
Eu não fico
satisfeito
Como ver-se um
objeto
Antes daquilo ser
feito?
N - Seu bisavô se
chamava
Apolinário Cancão
Era filho de um
ferreiro
Que o chamavam
Gavião
Sua bisavó
Lourença
Filha de Amaro
Assunção.
R - Mas que idade
tem você,
Que me faz
admirar?
Conheceu meu
bisavô
Eu não posso
acreditar,
Assim destas
condições
Faz até desconfiar.
N - Seu bisavô e o
avô
Foram por mim
conhecidos,
Seu pai, sua mãe,
você
Antes de serem
nascidos
Já estavam em minha
nota
Para serem
protegidos.
E, aqui, temos um
indício da proteção demoníaca, também associada à lenda do cantador Riachão:
N - Eu protejo você
tanto,
Que o defendi de
morrer
Você se lembra da
onça
que um a vez quis
lhe comer
Que apareceu um
cachorro
E fez a onça correr?
R - Me lembro
perfeitamente
Quando a onça me
emboscou
Já ia marcando o
salto
Quando um cachorro
chegou
A onça correu com
medo,
Eu não sei quem me
salvou...
N - Pois foi este
seu criado
Que viu a onça
emboscá-lo
Eu chamei por meu
cachorro
Para da onça
livrá-lo
Se lembra quando
você
Ouviu o canto dum
galo?
E todas as dúvidas
se dissipam:
R - Agora acabei de
crer
Que tu és o
inimigo!
Te transformaste em
homem,
Para vir cantar
comigo,
Mas eu acredito em
Deus
Não posso correr
perigo!
E o diabo aparece em
outro papel, o de tentador:
N - Riachão, amas a
Deus
Sendo mal
recompensado!
Deus fez de Paulo um
Monarca
De Pedro um simples
soldado
Fez um com tanta
saúde,
Outro cego e
aleijado!
E sai-se bem na
resposta, contudo, derrotar o inimigo:
R - Se Deus fez de
Paulo um rei,
Porque Paulo
merecia
Se fez de Pedro um
soldado,
Era o que a Pedro
cabia:
Se não fosse
necessário,
O grande Deus não fazia!
N - O teu vizinho e
parente
Enricou sem
trabalhar;
Teu pai trabalhava
tanto
E nunca pode
enricar
Não se deitava uma
noite
Que deixasse de
rezar!
R - Meu pai morreu
na pobreza,
Foi fiel ao seu
Senhor!
Executou toda
ordem
Que lhe deu o Criador
E foi um a das
ovelhas
Que deu mais gosto
ao pastor!
N - Arre lá! Lhe
disse o Negro.
Você é caso sem
jeito!
Eu com tanta
paciência,
Estou lhe ensinando
direito
Você vê que está
errado,
Faz que não vê o
defeito!
R - É muito feliz o
homem
Que com tudo se
consola!
posso morrer na
pobreza,
Me achar pedindo
esmola
Deus me dá para
passar
Ciência e esta
viola!
Nas três estrofes
que se seguem, há elementos que
enriquecem qualquer análise etnográfica: a invocação da Virgem Maria, como
advogada de defesa, é tema de autos
populares e de obras literárias irrigadas pelas águas da tradição:
O negro olhou
Riachão
Com os olhos de cão
danado,
Riachão gritou: -
Jesus,
Homem Deus
Sacramentado!
Valha-me a Virgem
Maria,
A Mãe do Verbo
Encarnado!
O negro, soltando um
grito,
Dali
desapareceu.
De uma catinga de
enxofre
A casa toda se
encheu,
Os cães uivaram na
rua,
O chão da casa
tremeu.
Riachão ficou
cismado
Com cantor
desconhecido,
Que, quando
encontrava um,
Tomava logo
sentido
O seu primeiro
repente
Era a Deus
oferecido.
A fonte do grande
poeta paraibano foi mesmo a tradição oral, conforme atestado na última estrofe:
Essa história que
escrevi
Não foi por mim
inventada:
Um velho daquela
época
Tem ainda
decorada.
Minha aqui só são as
rimas
Exceto elas, mais
nada!
Um enigma
Câmara
Cascudo, em Vaqueiros e cantadores,
reproduz algumas estrofes do desafio de Manuel do Riachão com Maria Tebana, no
qual predominam as perguntas sibilinas que, depois, entrariam na literatura de cordel, como um subgênero muito
explorado:
Pois agora me responda,
Nego Manuel
Riachão,
Que é que
não tem mão nem pé,
Não tem pena
nem canhão,
Não tem
figo, não tem bofe,
Nem vida nem
coração,
Mas, eu
querendo, ele avoa,
Trinta palmo
alto do chão?
A resposta –
“um papagaio de papel/ Enfiado num cordão...” – mostra a destreza de Riachão,
contudo, o que mais importa, para nós, é
a informação contida no segundo verso da oitava de Tebana , que qualifica seu
adversário como “nego” (negro). A informação
mais complica que esclarece a nossa tentativa de conhecer o personagem
do lendário cantador. Se na peleja com o diabo, recriada por Leandro, ele
escarnece do oponente por este ser negro (e, possivelmente, um escravo
foragido), no desafio com Tebana, ele é qualificado como tal, embora o recurso
não sirva à degradação do oponente. Sobre Maria Tebana, as informações são
escassas, mas é possível que tenha nascido No Rio Grande do Norte, no século
XIX (ou entre os séculos XVIII e XIX).
No Dicionário biobibliográfico de repentistas e
poetas de bancada, Átila Almeida e José Alves Sobrinho dão como berço de
Riachão Araruna, na Paraíba, e o situam no final do século XIX e início do
século XX. Mas, se Leandro
Gomes de Barros, no folheto famoso, cita como fonte da peleja lendária um velho
do passado (“daquela época”), como pode Riachão ser seu contemporâneo? Até
porque Silvio Romero, secundado por Ruth Guimarães, afirma ter sido Riachão um
cantador das margens do São Francisco que, sabemos, não banha ainda a Paraíba.
Romero colheu inclusive, no Rio Grande do Sul, duas quadras atribuídas a Riachão
e Tebana que Câmara Cascudo atesta serem “dos fins do século XVIII e princípio do XIX”.
O enigma,
como se vê, permanece.