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Chicó, o menino das cem mentiras folheto de Pedro Monteiro. |
Na literatura de cordel, Diferente do que ocorre no conto popular, as patranhas são mais raras, embora encontremos, aqui e ali, versões de tais histórias, a mais divulgada delas, O contador de mentira, de Hélio Cavenaghi (1927-1984), inspirada nas Aventuras do Barão de Münchhausen. À diferença das narrativas de tolos ou sabichões, que quase sempre começam de forma realista, a presente história é absurda desde o prólogo:
Esta nossa
personagem
É o
primeiro sem segundo.
Nasceu em
Pilão sem Boca,
Perto de
Prato sem Fundo –
Com piadas
e anedotas,
Ele agrada
a todo mundo.
Atrai toda
a vizinhança
Até alta
madrugada.
Tem gente
que se ri tanto
Que sai de
barriga inchada;
Outros
passam dez minutos
Com a boca
escancarada.
É Pedro
Conta-Mentira,
Filho de
Joaquim Teimoso
E Maria
Língua Solta,
Neto do
velho Trancoso,
Que se
notabilizou
Como o maior mentiroso. (CAVENAGHI, 1978, p. 3-4)
O sujeito começa a desfiar seu rosário de mentiras: ao fugir de uma onça, percebeu que esta ia, aos poucos e na carreira, comendo o seu jegue. Por fim, o comeu inteiro, ficando ele montado na onça arreada. Em outra ocasião, em uma caçada, tendo esquecido em casa a espingarda, amarra um toucinho à linha de pesca, engolida por uma marreca.
Logo veio
uma marreca,
E o
toucinho ela papou;
Do papo
para a moela
O toucinho
escorregou,
Saindo
pelo fiofó,
Tão
depressa como entrou.
Veio logo
outra marreca,
Olhando o
toucinho, viu;
O bicho
liso, molhado,
Rapidamente
engoliu –
Em menos
de dois segundos,
Do outro lado saiu. (Idem, 1978, p.9)
Ao todo, trinta e seis marrecas são “pescadas” e
o caçador/pescador, içado por elas, passa a torcer o pescoço de cada uma até
pisar o chão novamente. Classificado como ATU 1889 (Histórias de exageros), Münchhausen
Tales em inglês, é o mais característico dos tipos miscelânicos entre as
patranhas.
O poeta Doddó Félix, em Mentira só presta grande, reproduz o conto do menino que, substituindo o pai, precisa narrar ao rei, sob ameaça de morte, cem mentiras emparelhadas, e o faz com toda a mestria (ATU 1920C: Uma mentira maior que o padre-nosso). Começa narrando como o pai foi atrás de uma abelha e, encontrando-a presa numa folha, vai em busca de um machado. Danificando-o, vai em busca do ferreiro, que refunde o martelo transformando-o em anzol; pesca uma carga de rapadura, mas como boi que a transportava estava com a pata machucada, ensinam-lhe a pôr fava como curativo.
Então, na
dúvida, aplicou
No bicho
uma fava inteira
Pra seu
espanto, nasceu
No animal
uma faveira
Que botou
fava adoidado
E ele foi vender na feira. (Félix, 2009, P. 5)
Segue para o pasto, puxando o boi por uma corda, montado a cavalo com chocalho de seda e badalo de lã. O rei, não se aguentando mais, declara-se satisfeito. Na fabulação de Pedro Monteiro, Chicó, o menino das cem mentiras, o rei é substituído por um coronel nordestino. Depois de Chicó contar mentiras encadeadas, cumprindo o acordado por seu pai, o sujeito, antes irascível, se enternece com a astúcia do menino:
O Coronel
o fitou
Com os
olhos marejando,
Vendo uma
fotografia
Do que
estava escutando.
Era o
menino Chicó
Sua lorota contando. (Monteiro, 2009, p. 13)
O Barão de Münchhausen teve em Alexandre,
personagem criado por Graciliano Ramos, em 1938, um oponente à altura.
Alexandre, “homem cheio de conversas, meio caçador e meio vaqueiro, alto,
magro, já velho”, segundo o velho Graça, “tinha um olho torto e falava cuspindo
a gente, espumando como um sapo-cururu...” (RAMOS, 1991, p. 9). Para ouvir suas
lorotas, sempre reafirmadas como verdade pela esposa Cesária, acorriam à sua
casa tipos como o embolador Libório, o negro cego Firmino e o curandeiro
Gaudêncio, além da benzedeira Das Dores. O grupo forma um microcosmo dos tipos
comuns nos sertões de antanho, sendo Firmino, o mais cético de todos, o
contraponto racional aos delírios do anfitrião. No primeiro relato, Alexandre
explica o porquê de o seu olho ser torto. Quando era jovem, saindo em demanda
de uma égua pampa de propriedade do pai, se perdeu na escuridão da noite, em
que só se avistava o carreiro de sant’Iago. Ao ouvir barulho de animal saciando
a sede, e avistar dois vultos, do que deviam ser a água e uma cria, saltou
sobre o seu lombo e pôs-lhe os arreios enquanto galopava. Caiu sobre um
espinheiro, ficando com o rosto lanhado e a pele esfolada. Contudo, conseguiu,
ainda, montar que supunha ser a égua. Chegou em casa dia claro, amarrou o
animal no mourão para descobrir, depois, que, em vez de égua, montara uma
onça-pintada.
Notando o estado de Xandu (seu apelido), um
irmão trouxe-lhe um espelho. Só então ele se deu conta de que enxergava tudo
pela metade. Havia perdido um olho e precisava reavê-lo. Encontrou-o “murcho,
seco, espetado na ponta de um garrancho, todo coberto de moscas” (RAMOS, , p.
18). Pô-lo de volta e viu sua cabeça por dentro, miolos e até mesmo seus
pensamentos. O olho fora posto pelo avesso. Segundo o faroleiro, “havia apenas
uma parte das plantas, do céu, do coração, das tripas, das figuras que se mexiam
dentro da minha cabeça.” (Idem, p. 23). Stélio Torquato Lima, vertendo o causo
para o cordel, resumiu a passagem nesta setilha:
E depois,
baixando a vista,
Eu vi o
meu coração,
Minhas
tripas, o meu bofe,
Fígado,
cada pulmão...
Com o
outro olho eu via
Metade do
que havia
Ao redor.
Que confusão! (Lima, 2024, p. 12)
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Histórias de um mentiroso, cordel de Nezite Alencar. |
Francisca Nezite Alencar, em Histórias de um mentiroso, narra as peripécias de Joaquim Trigueiro, vaqueiro que, em demanda de um boi fujão, repete a façanha de Alexandre. Depois de capturar o boi e levá-lo ao mourão, Joaquim percebe um líquido melado a escorrer-lhe no rosto. Volta na mesma batida (trilha) e reencontra o olho, espetado num espinho, branco de ovos de vareja. Mas deixemos que Nezite, ou melhor, Joaquim narre o desfecho:
Tomei um
copo de vinho,
num instante
me acalmei,
peguei o
olho bichado,
com água
quente escaldei,
coloquei-o
no lugar,
mas tudo
errado enxerguei.
Dentro de
mim avistei
Tripa,
bofe e coração,
Foi aí que
percebi
Ter havido
confusão,
Tirei o
olho de novo
Pra fazer
a correção.
Botei na
palma da mão,
A posição
ajeitei
E depois
com muita calma
No lugar
recoloquei
Melhor do
que com o outro
Com este olho enxerguei. (2009, p. 8)
É de se presumir que esses faroleiros descendam de Ulisses, herói ambivalente por excelência, e de Simbad, o marinheiro das sete viagens, narradas espetacularmente por ele, no Livro das mil e uma noites. A maior parte das façanhas de Ulisses, incluindo a burla do gigante Polífemo, são contadas pelo próprio, na corte de Alcínoo, rei da Feácia, o que instiga Ítalo Calvino a fazer alguns questionamentos:
Se Ulisses é um simulador, todo o relato que ele faz ao rei dos feacos [Alcínoo] poderia ser mentiroso. De fato, suas aventuras marítimas, concentradas em quatro livros centrais da Odisseia, rápida sucessão de encontros com seres fantásticos, que surgem nas fábulas do folclore de todos os tempos e lugares: o ogro, Polifemo, os ventos encerrados no odre, os encantos de Circe, sereias e monstros marinhos), contrastam com o restante do poema, em que dominam os tons graves, a tensão psicológica, o crescendo dramático, gravitando sobre um objetivo: a reconquista do reino e da mulher cercados pelos prócios. (Calvino, 2007, p. 12)
Bettelheim, por seu turno, sugere que Simbad, o marujo, e Simbad, o carregador de água, para quem o primeiro narra fantásticas aventuras marítimas, são dois aspectos de uma mesma pessoa, representando, respectivamente, o princípio do prazer e o princípio da realidade:
Quando a estória começa, Simbad, um simples carregador, está descansando em frente a uma linda casa. Meditando sobre sua situação, diz: "O dono deste lugar convive com todos os prazeres da vida e se delicia com perfumes agradáveis, comidas excêntricas e vinhos exóticos..., enquanto outros suportam o máximo de trabalho.... como eu". Ele assim justapõe uma existência baseada em satisfações agradáveis a uma baseada na necessidade. Para estarmos certos de que entendemos como estas observações pertencem a dois aspectos de uma só pessoa, Simbad diz sobre si mesmo e sobre o ainda desconhecido dono do palácio: "A origem dele é minha e minha proveniência é dele". (Bettelheim, 1980, p. 105-6)
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Frame do filme O Auto da Compadecida, com o autor Selton Melo (Chicó) Imagem: Reprodução/Globoplay. |
Fome não, mas era uma vontade de fumar danada. E o engraçado foi que ele deixou para morrer bem na entrada de uma vila, de modo que eu pudesse escapar. (Suassuna, 2018, p. 55)
Novamente, a referência ao profeta Jonas,
comprovando a faceta paródica de todos os mentirosos contemporâneos, e ao rito
do engolimento ritual, simbolizado pela libertação de Chicó, que estava
amarrado junto ao peixe, cena certamente decalcada do desfecho de Moby-Dick.
O riso emerge do fato de Chicó noticiar que acenara a uma lavadeira para, em
seguida, o amigo, tal qual o cego Firmino, em Alexandre, questioná-lo sobre
como fez aquilo, estando de braços amarrados.
Olhar para dentro de si (e rir de si mesmo)
A ausência de limites, sugerida pelo carnaval, é representada pelos personagens cômicos, em cujos rostos projetamos os nossos desejos reprimidos. Se a comédia se origina da tragédia, a reparação, no plano simbólico, é a constatação de que, quase sempre, fracassamos, em nossos pactos, ritos e tratados no mundo “real”. Nietzsche via no cômico “a descarga artística da náusea do absurdo”, o oposto do sublime, associado “à domesticação artística do horrível” (Nietzsche, 2007, p. 53) e, podemos acrescentar, do grotesco. O filósofo do martelo, ao considerar ilusório o saber artístico de seu tempo, sugere uma fusão com “o artista primordial do mundo”, simbolizado por Dionísio, para que vivamos
[...] naquele estado [que] assemelha-se, miraculosamente, à estranha imagem do conto de fadas, que é capaz de revirar os olhos e contemplar-se a si mesma; agora ele é ao mesmo tempo sujeito e objeto; ao mesmo tempo poeta, ator e espectador (Ibid., p. 45, grifo nosso).
Foi isso que fez Alexandre que, com seu olho
torto, consertou o mundo (ao menos o seu mundo interior). É isso que fazem os
poetas cômicos de todas as épocas, reinterpretando os ritos, subvertendo os
costumes, por meio do riso, fertilizador da terra e renovador da vida. A
própria literatura de cordel, se não encontrar seu equilíbrio entre o princípio
da realidade e o princípio do prazer, perderá sua relevância. Recorramos a
Vladimir Propp:
Se
hoje nos encanta a presença de certos limites, outrora o que fascinava era a
ausência de fronteiras, àquilo que habitualmente se considera ilícito e
inadmissível e que costuma suscitar uma grande risada. Nas estéticas burguesas,
esse gênero de riso é classificado entre os mais “baixos”. É o riso das praças,
dos bufões, é o riso das festas e das diversões populares (Propp, 1992, p. 166).
É também o riso de Mateus e Bastião, do Arlequim
e da Columbina, de Ariano Suassuna e de José Pacheco, de Arievaldo Viana e de
Dalinha Catunda. O riso satírico, que promove o desmascaramento dos poderosos e
a entronização dos “barões famintos” que ousam sobreviver às cinzas de
quarta-feira.
Referências:
ALENCAR, Nezite. Histórias de um mentiroso. Crato,
CE: Academia de Cordelistas do Crato, 2009.
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas.
Tradução: Arlene Caetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. Tradução:
Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
CAVENAGHI, Hélio. O contador de mentira. São Paulo:
Luzeiro, 1978.
FÉLIX, Doddó. Mentira só presta grande. Bom Jardim,
PE: Edição do Autor, 2009.
LIMA, Stélio Torquato. O olho torto de Alexandre.
Fortaleza: Rouxinol do Rinaré Edições, 2024.
MONTEIRO, Pedro. Chicó, o menino das cem mentiras.
São Paulo: Luzeiro, 2009.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia.
Tradução: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
PROPP, Vladimir. Comicidade e riso. Tradução: Aurora
Fornoni Bernardini; Homero Freitas de Andrade. São Paulo: Ática, 1992.
RAMOS, Graciliano. Alexandre e outros heróis. Rio de
Janeiro: Record, 1991.
SUASSUNA, Ariano. Auto da compadecida. 39. ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2018.
Nota: Texto extraído de um intertítulo do capítulo 7 (Comicidade e riso na literatura de cordel) da nossa dissertação O fio e a meada : classificação tipológica e uma história cultural da literatura de cordel / Marcus Haurélio Fernandes Farias. – Campinas, SP : [s.n.], 2024.
Para acessar o texto na íntegra, clique A Q U I.
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