quarta-feira, 26 de março de 2025

As virtudes da mentira


Chicó, o menino das cem mentiras
folheto de Pedro Monteiro.

Na literatura de cordel, Diferente do que ocorre no conto popular, as patranhas são mais raras, embora encontremos, aqui e ali, versões de tais histórias, a mais divulgada delas, O contador de mentira, de Hélio Cavenaghi (1927-1984), inspirada nas Aventuras do Barão de Münchhausen. À diferença das narrativas de tolos ou sabichões, que quase sempre começam de forma realista, a presente história é absurda desde o prólogo:

Esta nossa personagem

É o primeiro sem segundo.

Nasceu em Pilão sem Boca,

Perto de Prato sem Fundo –

Com piadas e anedotas,

Ele agrada a todo mundo.

 

Atrai toda a vizinhança

Até alta madrugada.

Tem gente que se ri tanto

Que sai de barriga inchada;

Outros passam dez minutos

Com a boca escancarada.

 

É Pedro Conta-Mentira,

Filho de Joaquim Teimoso

E Maria Língua Solta,

Neto do velho Trancoso,

Que se notabilizou

Como o maior mentiroso.  (CAVENAGHI, 1978, p. 3-4)

O sujeito começa a desfiar seu rosário de mentiras: ao fugir de uma onça, percebeu que esta ia, aos poucos e na carreira, comendo o seu jegue. Por fim, o comeu inteiro, ficando ele montado na onça arreada. Em outra ocasião, em uma caçada, tendo esquecido em casa a espingarda, amarra um toucinho à linha de pesca, engolida por uma marreca.

Logo veio uma marreca,

E o toucinho ela papou;

Do papo para a moela

O toucinho escorregou,

Saindo pelo fiofó,

Tão depressa como entrou.

 

Veio logo outra marreca,

Olhando o toucinho, viu;

O bicho liso, molhado,

Rapidamente engoliu –

Em menos de dois segundos,

Do outro lado saiu. (Idem, 1978, p.9)

Ao todo, trinta e seis marrecas são “pescadas” e o caçador/pescador, içado por elas, passa a torcer o pescoço de cada uma até pisar o chão novamente. Classificado como ATU 1889 (Histórias de exageros), Münchhausen Tales em inglês, é o mais característico dos tipos miscelânicos entre as patranhas.

O poeta Doddó Félix, em Mentira só presta grande, reproduz o conto do menino que, substituindo o pai, precisa narrar ao rei, sob ameaça de morte, cem mentiras emparelhadas, e o faz com toda a mestria (ATU 1920C: Uma mentira maior que o padre-nosso). Começa narrando como o pai foi atrás de uma abelha e, encontrando-a presa numa folha, vai em busca de um machado. Danificando-o, vai em busca do ferreiro, que refunde o martelo transformando-o em anzol; pesca uma carga de rapadura, mas como boi que a transportava estava com a pata machucada, ensinam-lhe a pôr fava como curativo.

Então, na dúvida, aplicou

No bicho uma fava inteira

Pra seu espanto, nasceu

No animal uma faveira

Que botou fava adoidado

E ele foi vender na feira. (Félix, 2009, P. 5)

Segue para o pasto, puxando o boi por uma corda, montado a cavalo com chocalho de seda e badalo de lã. O rei, não se aguentando mais, declara-se satisfeito. Na fabulação de Pedro Monteiro, Chicó, o menino das cem mentiras, o rei é substituído por um coronel nordestino. Depois de Chicó contar mentiras encadeadas, cumprindo o acordado por seu pai, o sujeito, antes irascível, se enternece com a astúcia do menino:

O Coronel o fitou

Com os olhos marejando,

Vendo uma fotografia

Do que estava escutando.

Era o menino Chicó 

Sua lorota contando. (Monteiro, 2009, p. 13)

O Barão de Münchhausen teve em Alexandre, personagem criado por Graciliano Ramos, em 1938, um oponente à altura. Alexandre, “homem cheio de conversas, meio caçador e meio vaqueiro, alto, magro, já velho”, segundo o velho Graça, “tinha um olho torto e falava cuspindo a gente, espumando como um sapo-cururu...” (RAMOS, 1991, p. 9). Para ouvir suas lorotas, sempre reafirmadas como verdade pela esposa Cesária, acorriam à sua casa tipos como o embolador Libório, o negro cego Firmino e o curandeiro Gaudêncio, além da benzedeira Das Dores. O grupo forma um microcosmo dos tipos comuns nos sertões de antanho, sendo Firmino, o mais cético de todos, o contraponto racional aos delírios do anfitrião. No primeiro relato, Alexandre explica o porquê de o seu olho ser torto. Quando era jovem, saindo em demanda de uma égua pampa de propriedade do pai, se perdeu na escuridão da noite, em que só se avistava o carreiro de sant’Iago. Ao ouvir barulho de animal saciando a sede, e avistar dois vultos, do que deviam ser a água e uma cria, saltou sobre o seu lombo e pôs-lhe os arreios enquanto galopava. Caiu sobre um espinheiro, ficando com o rosto lanhado e a pele esfolada. Contudo, conseguiu, ainda, montar que supunha ser a égua. Chegou em casa dia claro, amarrou o animal no mourão para descobrir, depois, que, em vez de égua, montara uma onça-pintada.

Notando o estado de Xandu (seu apelido), um irmão trouxe-lhe um espelho. Só então ele se deu conta de que enxergava tudo pela metade. Havia perdido um olho e precisava reavê-lo. Encontrou-o “murcho, seco, espetado na ponta de um garrancho, todo coberto de moscas” (RAMOS, , p. 18). Pô-lo de volta e viu sua cabeça por dentro, miolos e até mesmo seus pensamentos. O olho fora posto pelo avesso. Segundo o faroleiro, “havia apenas uma parte das plantas, do céu, do coração, das tripas, das figuras que se mexiam dentro da minha cabeça.” (Idem, p. 23). Stélio Torquato Lima, vertendo o causo para o cordel, resumiu a passagem nesta setilha:

 

E depois, baixando a vista,

Eu vi o meu coração,

Minhas tripas, o meu bofe,

Fígado, cada pulmão...

Com o outro olho eu via

Metade do que havia

Ao redor. Que confusão! (Lima, 2024, p. 12)


Histórias de um mentiroso, cordel de Nezite Alencar.

Francisca Nezite Alencar, em Histórias de um mentiroso, narra as peripécias de Joaquim Trigueiro, vaqueiro que, em demanda de um boi fujão, repete a façanha de Alexandre. Depois de capturar o boi e levá-lo ao mourão, Joaquim percebe um líquido melado a escorrer-lhe no rosto. Volta na mesma batida (trilha) e reencontra o olho, espetado num espinho, branco de ovos de vareja. Mas deixemos que Nezite, ou melhor, Joaquim narre o desfecho:

Tomei um copo de vinho,

num instante me acalmei,

peguei o olho bichado,

com água quente escaldei,

coloquei-o no lugar,

mas tudo errado enxerguei.

 

Dentro de mim avistei

Tripa, bofe e coração,

Foi aí que percebi

Ter havido confusão,

Tirei o olho de novo

Pra fazer a correção.

 

Botei na palma da mão,

A posição ajeitei

E depois com muita calma

No lugar recoloquei

Melhor do que com o outro

Com este olho enxerguei. (2009, p. 8)

É de se presumir que esses faroleiros descendam de Ulisses, herói ambivalente por excelência, e de Simbad, o marinheiro das sete viagens, narradas espetacularmente por ele, no Livro das mil e uma noites. A maior parte das façanhas de Ulisses, incluindo a burla do gigante Polífemo, são contadas pelo próprio, na corte de Alcínoo, rei da Feácia, o que instiga Ítalo Calvino a fazer alguns questionamentos:

Se Ulisses é um simulador, todo o relato que ele faz ao rei dos feacos [Alcínoo] poderia ser mentiroso. De fato, suas aventuras marítimas, concentradas em quatro livros centrais da Odisseia, rápida sucessão de encontros com seres fantásticos, que surgem nas fábulas do folclore de todos os tempos e lugares: o ogro, Polifemo, os ventos encerrados no odre, os encantos de Circe, sereias e monstros marinhos), contrastam com o restante do poema, em que dominam os tons graves, a tensão psicológica, o crescendo dramático, gravitando sobre um objetivo: a reconquista do reino e da mulher cercados pelos prócios. (Calvino, 2007, p. 12)

Bettelheim, por seu turno, sugere que Simbad, o marujo, e Simbad, o carregador de água, para quem o primeiro narra fantásticas aventuras marítimas, são dois aspectos de uma mesma pessoa, representando, respectivamente, o princípio do prazer e o princípio da realidade: 

Quando a estória começa, Simbad, um simples carregador, está descansando em frente a uma linda casa. Meditando sobre sua situação, diz: "O dono deste lugar convive com todos os prazeres da vida e se delicia com perfumes agradáveis, comidas excêntricas e vinhos exóticos..., enquanto outros suportam o máximo de trabalho.... como eu". Ele assim justapõe uma existência baseada em satisfações agradáveis a uma baseada na necessidade. Para estarmos certos de que entendemos como estas observações pertencem a dois aspectos de uma só pessoa, Simbad diz sobre si mesmo e sobre o ainda desconhecido dono do palácio: "A origem dele é minha e minha proveniência é dele". (Bettelheim, 1980, p. 105-6)

Frame do filme O Auto da Compadecida, com o autor Selton Melo (Chicó)
Imagem: Reprodução/Globoplay. 

O episódio da ilha-baleia, imagem-símbolo do monstro bíblico Leviatã, aparece já na primeira viagem de Simbad e evoca os horrores de Cila e Caribde na Odisseia. Reaparecerá, em tom de galhofa, entre as histórias do Barão de Münchhausen, e de Pedro Conta-Mentira. Ambos são engolidos por um grande peixe, à maneira do profeta Jonas, e escapam, acendendo um cachimbo dentro do interior do animal. Similar à patranha contada por Chicó (o princípio do prazer) a João Grilo (o princípio da realidade no Auto da Compadecida), sobre o pirarucu que o pescou, depois de ele haver atirado o arpão, arrastando-o por três dias e três noites, pelo rio Amazonas. Ao ser indagado se passara fome, depois de tanto tempo sem comer, Chicó responde: 

Fome não, mas era uma vontade de fumar danada. E o engraçado foi que ele deixou para morrer bem na entrada de uma vila, de modo que eu pudesse escapar. (Suassuna, 2018, p. 55) 

Novamente, a referência ao profeta Jonas, comprovando a faceta paródica de todos os mentirosos contemporâneos, e ao rito do engolimento ritual, simbolizado pela libertação de Chicó, que estava amarrado junto ao peixe, cena certamente decalcada do desfecho de Moby-Dick. O riso emerge do fato de Chicó noticiar que acenara a uma lavadeira para, em seguida, o amigo, tal qual o cego Firmino, em Alexandre, questioná-lo sobre como fez aquilo, estando de braços amarrados.

Olhar para dentro de si (e rir de si mesmo)

A ausência de limites, sugerida pelo carnaval, é representada pelos personagens cômicos, em cujos rostos projetamos os nossos desejos reprimidos. Se a comédia se origina da tragédia, a reparação, no plano simbólico, é a constatação de que, quase sempre, fracassamos, em nossos pactos, ritos e tratados no mundo “real”. Nietzsche via no cômico “a descarga artística da náusea do absurdo”, o oposto do sublime, associado “à domesticação artística do horrível” (Nietzsche, 2007, p. 53) e, podemos acrescentar, do grotesco. O filósofo do martelo, ao considerar ilusório o saber artístico de seu tempo, sugere uma fusão com “o artista primordial do mundo”, simbolizado por Dionísio, para que vivamos

[...] naquele estado [que] assemelha-se, miraculosamente, à estranha imagem do conto de fadas, que é capaz de revirar os olhos e contemplar-se a si mesma; agora ele é ao mesmo tempo sujeito e objeto; ao mesmo tempo poeta, ator e espectador (Ibid., p. 45, grifo nosso).

Foi isso que fez Alexandre que, com seu olho torto, consertou o mundo (ao menos o seu mundo interior). É isso que fazem os poetas cômicos de todas as épocas, reinterpretando os ritos, subvertendo os costumes, por meio do riso, fertilizador da terra e renovador da vida. A própria literatura de cordel, se não encontrar seu equilíbrio entre o princípio da realidade e o princípio do prazer, perderá sua relevância. Recorramos a Vladimir Propp:

Se hoje nos encanta a presença de certos limites, outrora o que fascinava era a ausência de fronteiras, àquilo que habitualmente se considera ilícito e inadmissível e que costuma suscitar uma grande risada. Nas estéticas burguesas, esse gênero de riso é classificado entre os mais “baixos”. É o riso das praças, dos bufões, é o riso das festas e das diversões populares (Propp, 1992, p. 166).

É também o riso de Mateus e Bastião, do Arlequim e da Columbina, de Ariano Suassuna e de José Pacheco, de Arievaldo Viana e de Dalinha Catunda. O riso satírico, que promove o desmascaramento dos poderosos e a entronização dos “barões famintos” que ousam sobreviver às cinzas de quarta-feira.

 

Referências:

ALENCAR, Nezite. Histórias de um mentiroso. Crato, CE: Academia de Cordelistas do Crato, 2009.

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Tradução: Arlene Caetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. Tradução: Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

CAVENAGHI, Hélio. O contador de mentira. São Paulo: Luzeiro, 1978.

FÉLIX, Doddó. Mentira só presta grande. Bom Jardim, PE: Edição do Autor, 2009.

LIMA, Stélio Torquato. O olho torto de Alexandre. Fortaleza: Rouxinol do Rinaré Edições, 2024.

MONTEIRO, Pedro. Chicó, o menino das cem mentiras. São Paulo: Luzeiro, 2009.

NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. Tradução: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

PROPP, Vladimir. Comicidade e riso. Tradução: Aurora Fornoni Bernardini; Homero Freitas de Andrade. São Paulo: Ática, 1992.

RAMOS, Graciliano. Alexandre e outros heróis. Rio de Janeiro: Record, 1991.

SUASSUNA, Ariano. Auto da compadecida. 39. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.


Nota: Texto extraído de um intertítulo do capítulo 7 (Comicidade e riso na literatura de cordel) da nossa dissertação O fio e a meada : classificação tipológica e uma história cultural da literatura de cordel / Marcus Haurélio Fernandes Farias. – Campinas, SP : [s.n.], 2024.

Para acessar o texto na íntegra, clique A Q U I

 


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