quinta-feira, 3 de abril de 2025

Genoveva de Brabante

Os martírios de Genoveva em edição da Luzeiro.

A lenda de Genoveva de Brabante foi reaproveitada pela literatura de cordel em Portugal e no Brasil. Devemos a Baltazar Dias o Auto de Santa Genoveva, publicada em 1758 em Lisboa, com métrica variada e reduzido número de personagens.  Esposa do conde Siegfried de Trèves, caluniada pelo mordomo Golo, homem de confiança de seu esposo, sentenciada à morte e poupada pelos carrascos na hora da execução, Genoveva é, de todas as heroínas, a que melhor serve à hagiografia, confundida com outra santa, de mesmo nome, Genoveva de Paris, contemporânea de Átila, rei dos hunos.

À diferença de outras mulheres do ciclo da esposa caluniada, Genoveva de Brabante concebe um filho de seu esposo — que partira para a guerra contra os sarracenos — e com ele dividirá o exílio, os martírios e, depois, as bem-aventuranças. A corça que nutre o filho da heroína, na caverna transformada em refúgio, representa o retorno ao estado natural, simbolizado no conto de Crescência (e na História da Imperatriz Porcina) pela aquisição da erva mágica; a sobrevivência da piedosa condessa, nas condições mais inóspitas, é o verdadeiro milagre denunciador de sua inocência ultrajada. A mesma corça, durante uma caçada, acuada pelos cães da tropa do conde, conduzirá Siegfried à cova da infeliz.  

CatherineVelay-Vallantin, estudando a lenda, divulgada em redações em latim dos séculos XV e XVI, menciona quatro textos, os quais, à falta de uma versão “original”, ajudam a compreender a evolução da história.  Memorabile gestum de prodigiosa instauratione capelaae in Frawuen Kichen in honorem gloriossimem dei genetricis Virginis Mariae, escrito em 1472, um pouco antes da Páscoa pelo Matthias Emyich, único manuscrito conservado, segundo a autora, na Biblioteca de Trèves, é a primeira das quatro redações em latim. Explicava a construção da capela em honra da Virgem no local em que Genoveva, banida, viveu com o filho pequeno e uma corça.

A lenda foi nutrida ainda pela propaganda em torno da peregrinação a um santuário beneditino, onde, acreditava-se, estava enterrada a virtuosa heroína: “Um milagre da Virgem na Renânia interessava a todas as comunidades religiosas da região, em particular ao grande convento beneditino de Laach, onde os copistas asseguraram a reprodução do manuscrito que relata a lenda.” (Velay-Vallantin, 1992, p. 189). Mas foi o romance L’innocence raconuue (A inocência reconhecida), do padre Cériziers, publicado em 1634, em uma língua moderna, nesse caso, o francês, que ajudou a popularizar a história, que conhecerá várias reimpressões na Bibliothèque bleue. O sucesso explica-se pela tendência moralizante, em voga na França de então, mas também pela mescla de elementos do heroico e do maravilhoso hagiográfico, que transformaram uma lenda monacal num romance piedoso (Cf. Velay-Vallantin, 1992, p. 190).

Além da França e dos países vizinhos, a Alemanha conhece uma edição em língua materna ainda em 1660, e abraça a história, que alcança notável popularidade em peças de cunho moralista e no teatro de marionetes. Não surpreende, portanto, o fato de a lenda haver sido reescrita pelo cônego Cristoph von Schmid (1768-1854), precursor da literatura infantil em seu país, em romance publicado em 1825 e traduzido para vários idiomas, incluindo o castelhano e o português. Foi a partir da edição de Genoveva de Brabant, de Schmid, publicada pela editora Garnier, que José Galdino da Silva Duda escreveu, no princípio do século XX, o clássico cordel Os martírios de Genoveva. Pouco lembrado hoje, o cônego Schmid foi o nome mais traduzido pela Garnier entre os séculos XIX e XX.

O cordel segue de perto o texto de Schmid e, quando imprime sua marca, José Duda reforça as antinomias herdadas do imaginário medieval, como realçado no prólogo:

 

Nesta história se vê

A virtude progredir,

A verdade triunfar,

O mal se submergir,

A honra salientar-se,

A falsidade cair.

 

Já as estrofes seguintes buscam, na medida do possível, um alinhamento ao texto de Schmid, inclusive no tocante à ideologia. Se no original ficamos sabendo que “a religião cristã já havia dissipado as trevas do paganismo na Alemanha, e, com a sua salutar ascendência, tinha melhorado muito os costumes de seus belicosos habitantes”, no cordel, a informação ganha mais relevância:

 

Neste tempo, na Alemanha

A luz do cristianismo

Tinha melhorado tudo,

Não tinha mais despotismo,

Já tinham se dissipado

As trevas do paganismo.

 

Logo que chegou a luz

Da santa religião,

Nova lei, novos costumes

Tomaram força e ação;

Os homens se industriaram,

Tudo teve aumentação.

 

Essa fidelidade não impede a eliminação de passagens que tornariam a trama arrastada, principalmente aquelas em que a ação cede espaço às prédicas da heroína durante o exílio ou à instrução de seu filho, e acelere o ritmo à medida que a história se aproxima do final.

Ao expor as diferenças flagrantes entre o cordel português e aquele publicado no Brasil, tema central de sua tese de doutorado, a professora Márcia Abreu, se apoia em uma passagem de Os martírios de Genoveva, atribuído por ela, erroneamente, a Leandro Gomes de Barros, como exemplo de história em que as relações entre dominantes e dominados ganham, no Nordeste, uma nova feição:

 

A convivência harmoniosa — presente no cordel português — entre dominantes e dominados dá lugar à tematização de conflitos oriundos do desnível social. Esta questão é tão presente nos folhetos que se imiscui até mesmo em histórias tradicionais que se passam em meio à nobreza. Por exemplo, na versão nordestina da história de D. Genoveva, a comemoração de seu casamento é entremeada de preocupações sociais...

 

Pediu depois ao marido

que aumentasse o ordenado

de todos os súbditos (sic)

até do menor criado

e diminuísse o imposto

que estava demasiado.

 

Pediu com lágrimas nos olhos

que amparasse os desvalidos

remisse os atribulados

consolasse os oprimidos

para que ele mais ela,

fossem de Deus escolhidos.

 

A tematização destas questões carreia consigo elementos da realidade nordestina, que são matéria privilegiada dos "folhetos de época", como o problema dos baixos salários ou dos impostos (Abreu, 1993, p. 261).     

 

O trecho reproduzido poderia, sim, refletir as “preocupações sociais” do Nordeste, mas, em momento algum, isso fica evidente. É mais plausível que a imagem da rainha generosa, espelho terreno da Virgem Maria, reflita fielmente o ideário medieval da salvação alcançável mediante a virtude cristã da caridade. Ademais, José Duda, na prática, apenas versou, isto é, adaptou para o cordel, o seguinte trecho da obra de Schmid:

 

Dirigiu a palavra aos velhos com respeito, com bondade perguntou às mães de família a idade dos filhos e deu a todos um bonito presente. Ficaram todos encantados por ela e cheios de reconhecimento e dedicação. Quando, porém, ela anunciou que naquele ano os soldados e os criados teriam soldo duplo, que os vassalos não pagariam contribuições, que se faria aos pobres uma grande distribuição de lenha e de cereais, então o entusiasmo chegou ao seu cúmulo; de todos os lados romperam aclamações de regozijo. “Feliz, exclamaram os súditos do conde, feliz o homem que tem uma esposa assim! Feliz o país que tem chefes tão bons!” (Schmid, [19--?], p. 10).

 

O entusiasmo dos súditos também foi lembrado pelo poeta que fala por si próprio e não pelo povo nordestino, heterogêneo, como qualquer povo, e cujas questões sociais não se esgotam no protesto contra a tributação injusta nem se resumem ao assistencialismo:

 

Seus súditos exclamavam:

Feliz a nação que tem

Chefes assim como esses

Que transformam o mal em bem!

Velho desejou ser moço

Para ajudá-los também.

           

Baseada numa edição traduzida do francês, a reelaboração de José Duda conserva quase sempre os nomes dos personagens: Sigifroi (Sigefroi no romance) em vez de Siegfried, além dos carrascos de Genoveva, Conrado, mantido no cordel, e Roger, mudado para Roberto, talvez para aproveitamento numa rima. O filho da heroína, Benoni, no cordel e na edição da Garnier, alude à sua condição degradada, e foi inventado pelo padre Cériziers, seguindo a tradição medieval de justificar por meio da etimologia o destino do personagem:

 

Ela [Genoveva] dedica seus momentos de lazer à educação de seu filho a quem Cériziers, um tanto hebraizante, foi o primeiro a dar o nome de Bénoni. "Genoveva, chame seu filho de Benoni ou Tristão; ele deve levar o nome da madrinha, já que Deus é seu padrinho. " (Benoni é o nome que Raquel, mulher abandonada em benefício da irmã, dá ao seu filho (Gênesis, 35-18) (Velay-Vallantin, 1992, p. 188).

 

Na mesma versão, o esposo de Genoveva, que saíra à caça, a confunde com um urso. Conduzida imediatamente ao castelo, não há consagração da clareira à Virgem, como nas versões latina e alemã. Sua morte e sepultamento, em Cériziers, ocorre na gruta, mas não se menciona a construção de uma capela. Há, no entanto, a presença de um anjo, disfarçado em eremita, a consolar o conde. A morte da corça sob o túmulo de Genoveva, narrada por Schmid, passa despercebida no cordel, ao contrário do destino de Golo, que morre de desgosto na prisão; José Duda omite, porém, que a pena de morte decretada pelo conde fora comutada em prisão perpétua a pedido de Genoveva. Supressões desta ordem são, até certo ponto, aceitáveis, contudo, cenas de grande impacto dramático tendem a ser mantidas, especialmente no desfecho.

No Catálogo tipolóxico do conto galego de tradición oral, organizado por Camiño Noia Campos (2010), aparece com o título “Santa Xenoveva”, ratificando a sua canonização, mesmo que ao nível da lenda, e uma possível influência da cantiga V de Santa Maria no imaginário em torno do conto. Campos menciona ainda, em nota, duas versões recolhidas e fixadas por Agustin Durán, no Romancero general, no século XIX: “La peregrina doctora” e “Santa Genoveva, princesa de Brabante”, sendo a primeira o tipo clássico desde os tempos dos Miracle de la Vierge.

Folheto português, em prosa, do século XIX.

Edição espanhola, datada de 1836.

Para além das versões orais e escritas, a lenda de Genoveva de Brabante inspirou, em 1850, uma ópera em quatro atos de Robert Schumann, baseada em libreto do compositor Robert Reinick. No cinema, foi recontada algumas vezes, como, por exemplo, em um filme mudo franco-holandês de 1907, na produção hispano-italiana, dirigida, em 1964, por José Luis Monter. Outra produção italiana de 1947, dirigida por Primo Zeglio, atesta a popularidade da lenda. No cordel, há uma segunda versão, da década de 1950, assinada por Manoel Pereira Sobrinho, sem o mesmo alcance do poema de José Duda.

 

Referências

ABREU, Márcia Azevedo de. Cordel português / folhetos nordestinos: confrontos um estudo histórico-comparativo. Tese (Doutorado em Teoria Literária) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 1993. DOI: 10.47749/T/UNICAMP.1993.65335. 

CAMPOS, Camiño Noia. Catálogo tipolóxico do conto galego de tradición oral. Vigo: Servizo de Publicacións da Universidade de Vigo, 2010.

DUDA, José Galdino da Silva. Os martírios de Genoveva. São Paulo: Luzeiro, 1988.

SCHMID, Chistoph von. Genoveva de Brabant. Rio de Janeiro: Garnier, [19--?].

VELAY-VALLANTIN, Catherine. L'histoire des contes. Paris: Fayard,1992.

Nota: O texto acima foi adaptado de um trecho da dissertação de mestrado de Marco Haurélio (O fio da meada: classificação tipológica e uma história cultural da literatura de cordel, defendida em 2024 na Universidade de Campinas).

Para acessar o texto na íntegra, clique AQUI.


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