domingo, 27 de setembro de 2020

A Morte das Livrarias



 

Por Ednilson Xavier[1] e Ednei Procópio[2]

 

Já se vão algumas décadas desde que Monteiro Lobato cunhou a célebre e memorável frase “Um país de faz com homens e livros!”.

Lobato iniciou uma carreira de editor quando comprou, em 1918, a Revista do Brasil para, logo em seguida, fundar a Companhia Editora Nacional. Não levou muito tempo para ele perceber que não havia muitos espaços no comércio para escoar toda sua própria produção literária, assim como toda produção brasileira.

Não podemos negar que houve um imenso esforço de pessoas, em um passado não muito distante, como a do próprio Lobato, de fazer do Brasil um país realmente de leitores, com grande número de livrarias espelhadas pelas diversas cidades, como acontece em diversos países, civilizados, que tem na Cultura e na Educação suas prioridades. Mas, infelizmente, a cada dia que passa, o que estamos presenciando em nosso país é esse sonho se desprendo de nossos ideais.

Muito de nós, atentos ao mercado livreiro, ficamos abismados, até um tanto quanto perplexos, quando um dos executivos da Amazon proferiu uma palestra, em 2012, para convidados na abertura da 22ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, afirmando que as livrarias físicas iam desaparecer, iriam morrer. Naquele momento, muitos de nós achamos uma aberração aquela afirmação, de certa forma, apocalíptica; pensamos que o executivo estava redondamente equivocado em sua declaração. Acreditávamos que o mercado literário e livreiro brasileiro era diferente, que era forte, consolidado, ético; com uma cadeia produtiva e distributiva muito bem definida.

Pois não é que, guardada às causas e seus efeitos, o executivo da gigante multinacional tinha razão:

Livrarias físicas morreram

Houve um equívoco talvez somente no período em que isso pudesse ocorrer. Pelos cálculos deles, as livrarias iriam desaparecer entre 2012 e 2017, ou seja, nos cinco anos após sua apresentação. Em 2020, não só as livrarias, principalmente as pequenas e medias, praticamente desapareceram como, bem antes disso, as editoras já haviam se rendido às amarras comerciais daquela gigante internacional.

Mas a gigante internacional, sabemos, tem nos livros apenas um atrativo para nutrir seus banco de dados e ganhar rios de dinheiro com a oferta de outros produtos e serviços que não tenham uma concorrência tão desleal quanto a que ela própria impõe ao livro. A Amazon encontrou no mercado editorial brasileiro, tanto quanto em outros países por onde passou antes e depois, um terreno fértil para sua exploração mercantilista.

Mas não encontramos uma concorrência predatória apenas nas gigantes estrangeiras. As pequenas e independentes livrarias de rua, desde sempre a ponta de frente desse mercado, já vinham enfrentando seus próprios fantasmas internos com as redes que tentavam copiar um modelo de negócios trazido de fora sem levar em conta nossas particularidades, insustentável para o mercado interno.

O que acompanhamos hoje, no Brasil, são algumas livrarias que ainda lutam bravamente, seguindo aquele incansável espírito quixotesco e idealista de acreditar até o último instante que tudo o que fazemos pelos livros vale a pena. E para essas livrarias nós temos que tirar o chapéu pelo ato de bravura, paixão pelos livros e por manter vivo aquele sonho de nutrir a população brasileira com conhecimento.

Temos acompanhado algumas iniciativas de ajuda que, do ponto de vista prático, embora tenha ajudado muitos negócios em particular, podemos considerar como paliativas no sentido de não só socorrerem essas livrarias, mas de mantê-las efetivamente vivas frente às demandas. A origem de todo o problema, porém, não é e não foi encarado com a coragem necessária. Além de toda a questão do custo da logística dos livros, da divisão dos percentuais sobre as vendas, nos esquecemos completamente da ética em nossas relações comerciais.

O mercado livreiro vem resistindo há muito tempo a um cenário de constantes crises, cíclicas, instaladas desde a época em que as livrarias ainda comercializavam livros didáticos e participavam ativamente de licitações públicas; quando as livrarias ainda eram, de fato, as grandes representantes do mercado editorial.

Ao longo dos anos, atravessamos uma crise atrás de outra e o número de livrarias veio diminuindo em cada uma delas. Sobressaíram somente redes maiores que, durante o período do último governo democrático, por exemplo, conseguiram financiamentos a juros justos via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES); ao mesmo tempo em que foram beneficiadas pelo próprio mercado editorial com condições comerciais diferenciadas e atrativas por parte das grandes editoras. Algumas poucas livrarias conseguiram aproveitar muito bem esses benefícios, enquanto outras naufragaram.


Omissão

 

Diante de todos os acontecimentos catastróficos ao mercado livreiro, as entidades mais representativas do livro foram omissas ao problema que as livrarias independentes estavam enfrentando. Muitos de nós, os livreiros em particular, sentimos um total desprezo em relação ao desmoronamento dos diversos pontos de vendas espalhadas por nosso país. E o resultado da falta de vontade e atitude das entidades mais representativas do livro nos trouxe como herança o enfraquecimento e o desaparecimento das livrarias de rua. Deixamos, assim, cada vez mais, a população totalmente desabastecida e com menor acesso a informação.

Não podemos deixar de levar em conta que esta realidade contribui com o aumento do abismo social que vivemos em nossa sociedade, aonde os livros considerados bons por sua qualidade literária, a cada dia, se torna produto para os privilegiados; fica para a plebe o que é literalmente despejado nos tradicionais saldões que imperavam em todas as bienais e feiras do livro. Aliás, abrindo um parêntesis, não podemos nos enganar: livros de saldões não são bons porque são economicamente acessíveis. Salvo raríssimas exceções, esses produtos não formam leitores. Nas ocasiões de certas feiras, ficávamos com a falsa impressão de que havíamos vendido muitos exemplaras e que aquele evento tinha sido um sucesso. Mas a formação do leitor que, mais tarde, seria o consumidor qualitativo dos livros, foi deixada de lado. O livro comprado por meio dos saldos, na maioria das vezes, é lido até a segunda página, de tão ruim que é. E o leitor merece livros de qualidade!

Mas voltando a questão da omissão das entidades representativas do livro, um problema em nosso ver gravíssimo é a falta de unidade dentro da própria cadeia criativa e produtiva. É visível, para nós que respiramos este mercado que cada entidade, ao buscar cuidar de um nicho, peca em visualizar e pensar soluções para o todo. Na Câmara Brasileira do Livro (CBL), por exemplo, a impressão que fica, e que talvez nem mesmo a entidade tenha a consciência disto, é que ela foca no mercado de editoras paulistas; o Sindicado Nacional de Editores e Livreiros (SNEL) está localizado no mercado carioca; a Associação Brasileira de Difusão do Livro ABDL, se restringe ao mercado porta a porta; a ABRELIVROS nos livros didáticos.

Entendemos que o foco num país gigante como o Brasil é importante, mas precisamos aprender a ver o todo, pois não somos ilhas isoladas, fazemos parte de um mercado que é um todo. O conceito de “agir localmente, mas pensar globalmente”, nunca fez tanto sentido.

Temos nesse cenário, as demais câmaras e entidades regionais que buscam, isoladamente, desenvolver ações e políticas dentro de seus próprios estados e regiões. Mas uma visão menos global, mais regional, nos traz um egocentrismo e desarmonia institucional que deveria enxergar exatamente os pequenos empreendimentos editoriais, mas que, ao mesmo tempo, não reflete nas pequenas e médias livrarias locais, que são juntamente o elo mais frágil do setor.

 

É um cenário de contradições!

 

Todo esse cenário, de cada um por si, infelizmente, contribui para que os pequenos e médios negócios, tão importantes para a nossa bibliodiverdidade literária, não consigam resistir a tanta confusão mercadológica. Uma prova dessa realidade foi a última Bienal do Livro de Alagoas, realizada em 2019, por sinal, muito bem organizada pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), mas aonde não havia nenhum entidade do livro que apoiasse essa importante festa literária no Nordeste. Esse exemplo demonstra e é a prova de um verdadeiro descaso com alguns importantes eventos regionais.

Nessa grande batalha entre David contra Golias, não podemos deixar de reconhecer a disposição da Associação Nacional de Livraria (ANL), e outras entidades consideradas pequenas, mas com um alcance sem igual, pelos esforços em tornar o mercado minimamente ético ou, pelo menos, mais harmonioso.

Para além das várias tentativas de entendimento do mercado editorial, as últimas atitudes que podemos destacar da ANL foi o encaminhamento da lei do preço fixo no senado (PL 49 de 2015[3]). Um projeto belíssimo, totalmente pensado dentro dos limites da constitucionalidade e do livre mercado, que pretendia instituir uma política para a regulação que iria refletir não só nos preços dos livros, mas, na verdade, na sustentabilidade desse mercado por meio do rateio democrático dos descontos.

Mas em vez de apoiar um projeto que iria fortalecer o nosso negócio criando uma reserva comercial dentro de um cenário de concorrência global, por meio da discussão saudável, e da melhoria do plano de lei, algumas entidades, como a Associação Brasileira de Difusão do Livro (ABDL ) e a própria ABRELIVROS, foram explicitamente contra o projeto; algumas delas, muitas vezes, sem fazer a lição de casa de buscar compreender que, diante das transformações tecnológicas e mercadológicas globais, estava claro que as livrarias não sobreviveriam.

Sentimos como se estivéssemos fazendo o trabalho de formiguinhas, mas que, ao mesmo tempo, o formigueiro estivesse desabando. A ANL tentou, em sua convenção anual de 2016, instituir um “Manual de boas práticas do setor editorial e livreiro[4]”, um documento chancelado pela Associação Estadual de Livrarias do Rio de Janeiro (AEL), pela Associação Brasileira de Editoras Universitárias (ABEU), pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ ), pela Liga Brasileira de Editores (LIBRE) e CBL. Ou seja, o tempo todo nós estávamos tentando criar uma unidade mínima visível para o mercado editorial e livreiro.

Mas no mercado editorial brasileiro é fácil unir ideias, difícil é unir pessoas. E, diante de toda dissonância institucional, se instalou em nosso país uma terra de ninguém, onde manda quem pode, obedece quem tem juízo. Livrarias concorrendo com os próprios fornecedores, além de uma concentração de mercado nunca existente em nossa história desde quando Monteiro Lobato começou a vender livros em farmácias.


Um verdadeiro canibalismo contra os pequenos e médios negócios livreiros

Esse texto não é um desabafo, nem uma bronca. É o testemunho de quem respira os livros. Nas últimas duas décadas, nós erramos, nós erramos feio. E por essa razão as livrarias morreram. Apostamos que os grandes grupos editorias iriam fortalecer o mercado livreiro. Apostamos que, ao concentrar as nossas vendas nas grandes redes de livrarias, pudéssemos concorrer com a Amazon, antes dela com a Fnac, e nos esquecemos totalmente das pequenas e médias livrarias.

Se quiséssemos ter em suas prateleiras os mais vendidos e as novidades dos grandes grupos editoriais, nós as pequenas livrarias que procurássemos por um distribuidor que estivesse sensível à causa. Distribuidor que, por sua vez, passou também a fornecer diretamente para escolas, universidades e, principalmente, bibliotecas públicas. Restou para o livreiro local somente o papel de vitrine barata para best-sellers lá de fora.

Nós, os livreiros que tanto apostamos na bibliodiversidade que vinha de todas as pequenas, médias e grandes casas editoriais brasileiras; nós, que historicamente ajudamos a erguer as grandes casas editoriais, fomos obrigados a encurtar o nosso alcance literário tornando-o medíocre. Quantas vezes nós avisamos. Estava na cara que uma hora a corda da concorrência predatória praticada, de tanto esticada, ia estourar.

Juntemos a tudo isso a pandemia instalada na Saúde Pública, o pandemônio na presidência da República que não demonstra o mínimo interesse para com a Educação, muito menos para com a Cultura. Infelizmente chegamos ao fundo do poço. Às livrarias que ainda resistem a esse duro, cruel e desigual mundo do livro no Brasil, não restarão alternativas a não ser reinventarem seus negócios até com a venda de outros produtos que tenham uma concorrência, pelo menos dentro, dos limites da ética. É uma triste e tenebrosa realidade, mas é a deplorável situação que se encontra o mercado do livro no Brasil.

Um país se faz com homens e livros!” é um verdadeiro mantra para quem vive do livro; serve até de inspiração e fonte de energia para continuar gerindo os nossos negócios. Mas sejamos honestos, os livros, lá do final da frase, nós já temos, mas tentativas paliativas de reerguer o mercado não vai resolver a questão em nosso país. Agora, mais que nunca, o que precisamos é de homens de coragem. Coragem para criar um novo mercado, reestruturado por meio de uma nova política ética para todos os personagens do negócio do livro.

Mas, coragem, nós já sabemos, o mercado editorial já provou que não tem!



[1] Ednilson Xavier é livreiro e consultor literário. Ex-presidente da Associação Nacional de Livrarias (entre 2011 a 2015).

[2] Ednei Procópio é escritor e editor especialista em livros digitais, atualmente editora na Editora Dufaux.