domingo, 3 de junho de 2012

A maior mentira de Chicó

Ilustração de Luciano Tasso para a obra Meus romances de cordel. 

Protagonista do Auto da Compadecida, a imortal criação de Ariano Suassuna, Chicó é bem mais que um mentiroso, um contador de lorotas, um hábil criador de patranhas. É um personagem arquetípico e, sem exagero, podemos rastrear vestígios seus no guerreiro Ulisses, outro grande mentiroso, no marinheiro Simbad, no Barão de Munchausen e em personagens da fábula e também da vida cotidiana, que enfeitam a existência com uma realidade alternativa às vezes engraçada, outras tantas encantada. O herói burlesco deriva do herói mítico.

No cinema, o personagem foi vivido pelos atores Antônio Fagundes, Dedé Santana e Selton Mello. Este último dividiu a cena com Matheus Nachtergaele, que interpretou João Grilo, na mais bem elaborada versão do clássico de Suassuna, dirigida por Guel Arraes em 2000.

Selton Melo: atuação impagável.

Em 2005, levei o personagem ao cordel, no folheto Os apuros de Chicó e a astúcia de João Grilo. Em 2008, a obra, consideravelmente ampliada, rebatizada como Presepadas de Chicó e astúcias deJoão Grilo foi relançada pela editora Luzeiro. A grande novidade foi a ampliação da presença de Chicó, que conta uma mentira do tamanho do Padre-nosso, como a sabedoria popular classifica as grandes patranhas. No trecho abaixo reproduzido, costurei situações de contos catalogados em vários países, alinhavados de forma a parecer uma coisa só.

Chicó contava vantagem,
Mas o povo não ligava,
Toda noite para ouvi-lo
A multidão se ajuntava,
Porém não tinha sequer
Um que nele acreditava.

João Grilo dizia sempre:
— Chicó, tenha mais cuidado,
Pois a sua língua grande
Pode deixá-lo enrascado
Se um dia se deparar
Com algum cabra malvado.

Chicó dizia: — Qual nada!
Nunca me meto em engano:
Já irriguei o deserto
Com as águas do oceano,
Mandei fazer uma ponte
Ligando Marte a Urano!

Já matei onça de tapa
E leão com pontapés,
Já tirei água de pedra,
Como um dia fez Moisés,
Em casa tenho uma árvore
Que produz contos de réis!

João Grilo disse: Chicó,
Nem mesmo lá em Pequim
Um pé-de-pau dá dinheiro
Ou a água do mar tem fim.
Chicó respondeu: - Não sei;
Eu só sei que foi assim...

Porém, meu amigo João,
Agora vou lhe contar
Uma história verdadeira,
Dessas de se admirar,
Que mesmo o cabra incrédulo
É forçado a acreditar:

No sertão do Ceará
Vi três matutos correndo
Atrás de uma tartaruga –
Parece que inda estou vendo –
Mas vou descrever os três
Pra você ficar sabendo.

Cada um deles levava
Consigo uma carrapeta.
Mas o primeiro era mudo
O segundo era perneta;
Já o terceiro era cego,
O quarto surdo e maneta.

E foi o cego quem viu
A tartaruga matreira.
O mudo falou pra ele:
— Acabou-se a brincadeira!
Depois gritou o perneta,
Que se danou na carreira.

Mas quem pegou a bichinha
Foi o sujeito cotó,
Vendeu-a para um mendigo,
Ficou mais rico que Jó.
É a mais pura verdade,
Quem lhe garante é Chicó.

Mas isso, João, não é nada,
Já fiz coisa mais incrível
Que, se lhe contar, você
Pensará ser impossível.
Pra você pode até ser,
Mas não pra alguém do meu nível.

Eu tenho um grande criame
De abelhas no meu quintal.
Tentei contar as colmeias –
Confesso que passei mal –
Pois nem em quinhentos anos
Descobriria o total.

Porém contei as abelhas,
Que passavam de um trilhão!
Vendo que faltava uma,
Quase perdi a razão
Mas para minha alegria,
Vi o seu rastro... no chão.

Entrei mata adentro e vi
Minha abelhinha caída,
Com duas raposas velhas
Numa batalha renhida.
Saquei de grande peixeira,
Pra defender minha vida.

Rumei a peixeira nelas,
Que saíram em disparada;
A peixeira se perdeu
Dentro da mata fechada.
Então, matutei um jeito
De sair desta embrulhada.

Logo peguei o meu binga,
Fogo na mata botei,
E desta forma, as raposas
Pra bem longe afugentei.
Quando o fogo se apagou,
Minha peixeira encontrei.

Porém sobrou só o cabo,
O ferro foi derretido.
Corri até o ferreiro,
Contei o acontecido:
E pedi que refizesse
O ferro, que foi perdido.

Mas ele se confundiu
Por ter cabeça de vento
E me fez um anzol reto
Pra eu pescar ao relento.
Joguei o danado n’água,
Puxei e veio... um jumento!

Veio com bruaca e tudo,
Então nele me montei.
Os quartos da abelhinha
Fujona, avante encontrei.
Quando espremi, dez mil litros
De mel bem puro tirei!

Porém não tinha os barris.
E estando no mato só,
Resolvi armazenar
Todo o mel no fiofó
Do meu jeguinho, contudo,
Confesso: fiquei com dó.

Passado algum tempo houve
No sertão grande secura;
Nas costas do meu jumento
Cresceu grande matadura,
De tanto carregar peso
Em sua jornada dura.

O jumento carregava
Bastante mercadoria
E, para minha surpresa,
Presenciei, certo dia,
Germinando em suas costas
Feijão, milho e melancia.       

Então, peguei o machado
E dei um golpe no centro
Da melancia, porém
O machado caiu dentro.
Olhei o buraco e disse:
— É aqui mesmo que eu entro!

Lá dentro da melancia
Avistei em disparada
Um vaqueiro procurando
A sua enorme boiada.
Pedi seu adjutório:
Ele me deu uma escada.

Para subir os degraus
Foi terrível o escarcéu,
Pois saí da melancia
E fui bater lá no céu.
Lá Maria Madalena
Me ocultou em seu véu.

Acabei voltando à Terra
Cavalgando num corisco,
Que caiu em Xique-xique,
Nas bandas do São Francisco,
Mas aprendi a lição –
Hoje sou um cabra arisco.

Pedro Monteiro, caboclo arguto do Piauí, costurou também algumas situações inusitadas em seu folheto de estreia: Chicó, o menino das cem mentiras (Luzeiro). Na mesma linha, ainda encontramos, publicado pela editora Luzeiro, o candidato a clássico O contador de mentira, escrito pelo paulistano Hélio Cavenaghi (1924-1984).

Folheto da Luzeiro com capa de Arievaldo Viana.

O folheto Presepadas de Chicó... depois foi incluído na antologia Meus romances de cordel, publicada pela Global Editora.


Performance de Marlene Borges no evento Bodega do Brasil.

Nordeste - terra de bravos


O velho cordel Nordeste - terra de bravos, escrito em 1993 e arrolado na antologia de poemas Até onde nós iremos?, foi publicado pela editora  Luzeiro em 2006. Pois bem, neste momento, o folheto está no topo da lista dos mais vendidos do site Magazine Gibi, coordenado por Wanderson Nicoló, entre os livretos de 16 páginas. Na lista geral, ocupa o quarto lugar. 

O segundo da lista é Os apuros de Chicó e a astúcia de João Grilo,  embrião do Presepadas de Chicó e astúcias de João Grilo. No caso do primeiro, o texto é de um autor em formação (o que continuarei sendo até o dia em que fechar os olhos). 

Eis o início do folheto Nordeste - terra de bravos com a métrica mais ajustada:


Nesse  poema eu abordo
Nossa região Nordeste,
Onde a seca se abateu,
Onde predomina a peste,
Onde clamam todo o dia
Por uma ajuda celeste.

Onde o Sol lança na terra
Os seus reflexos de ouro,
Onde as grandes tradições
São magnífico tesouro,
E a poesia do povo
É um dom imorredouro.

Onde o povo ainda crê
Nos poderes do Destino,
E os caminhos são traçados
Pelas mãos do Rei Divino,
Onde em tempos mais difíceis
Reinava Antônio Silvino.

Onde com fé e esperança,
Sempre uma multidão,
Em Juazeiro do Norte,
Em busca de redenção,
Venera a figura imensa
Do padre Cícero Romão.

Onde em Bom Jesus da Lapa,
Guiados por uma luz,
A cada ano, os romeiros,
Carregando imensa cruz,
Buscando dias melhores,
Rezam para o Bom Jesus.

Nordeste dos peregrinos
Do sertão do Canindé,
Dos que superam distâncias
Com o combustível da fé,
Rogando a intercessão
Da Virgem de Nazaré.

Onde as vozes mais ilustres
Cantam a degradação,
Para nós são como lustres
Iluminando a amplidão:
A poética de Cabral,
O canto de Gonzagão.

Onde os filhos de Zumbi
Semearam consciência,
E ainda seguem lutando
Em prol da independência,
Contrapondo à tirania
A heroica resistência.

Nordeste — terra de bravos —
Que presenciou um dia
Leandro Gomes de Barros
Semeando poesia,
Cego Aderaldo empunhando
O cetro da cantoria.

Onde os engenhos morreram
Sufocados pela usina,
Onde os vaqueiros valentes,
Sem temer a dura sina,
São guiados pela luz
Do raio da silibrina.

Nordeste, que viu nascer
Inácio da Catingueira,
Gulino do Sabugi
E Romano do Teixeira,
Nordeste do Cariri,
Da gente forte e altaneira.

Terra que assistiu ao voo
Do Pavão Misterioso,
Ao canto da Asa Branca,
À saga do Boi Barroso,
À marcha de Carlos Prestes
Do esquadrão revoltoso.

Nordeste dos coronéis
Cretinos, vis, ordinários,
Dos políticos corruptos,
Patifes e salafrários,
Vereadores pelegos,
Que se vendem por salários.

Onde beleza e injustiça
Convivem no mesmo chão,
Onde um dia foi temido
O rifle de Lampião,
Que foi, depois de Silvino,
Governandor do sertão.

Onde ainda existem marcas
Da vingança de Corisco,
Onde os ribeirinhos temem
O Compadre d’Água arisco,
Que chora ao ver degradado
Nosso rio São Francisco.

Onde a família Batista
Na poesia é imortal,
Eternizando a disputa
De Pinto com Lourival.
Onde, nas encruzilhadas,
Duelam o bem e o mal.

Gigantesca região
De lendas e contos mil,
Terra de vultos ilustres
Na História do Brasil,
Perseguida pela fome
E pela miséria vil.

Lugar onde “o sertanejo
É, antes de tudo, um forte”,
Já disse Euclides da Cunha,
Elogiando o porte
De um povo que só se curva
À face horrível da morte.

No Nordeste, as terras férteis
São motivo de disputa,
O latifúndio domina
Como força absoluta;
Não há a reforma agrária,
Gerando desigual luta.

Nas regiões produtivas,
Como no sul da Bahia,
É o labor da gente humilde
Usado com tirania —
Trabalham como escravos
Por uma ínfima quantia.

Contudo, há outras áreas
Com o chão estorricado,
Onde o povo pobre carpe
O seu fadário pesado —
Sem abandonar a fé,
Mas por ela abandonado.

Porque aqueles que moram
No desprezado sertão
Esperam que a chuva venha
Pra cultivar o seu chão —
E só na última instância
Abandonam seu torrão.

A terra vermelha em brasa
É uma mórbida paisagem,
E caveiras de animais
São o símbolo da coragem
Dos que sonham com um futuro
Com mais bonita paisagem.

(...)