terça-feira, 2 de agosto de 2011

Relembrando o Rei do Baião


2 de agosto. Há exatos 22 anos partia deste mundo Luiz Gonzaga do Nascimento, o Rei do Baião, gigante da nossa cultura. Para lembrar a data e homenagear o Rei Luiz, republico, com algumas atualizações, o artigo originalmente publicado na revista eletrônica Music News:


Asa Branca: Horrores e Louvores

O jornalista Assis Ângelo resolveu inovar em vários aspectos quando da preparação do seu Dicionário Gonzagueano, de A a Z. Além de reunir o maior número de informações acerca das músicas originalmente gravadas por Luiz Gonzaga, o Dicionário é apresentado por um poeta popular, o consagrado cantador pernambucano Oliveira Francisco de Melo, ou Oliveira de Panelas – como a Arte o rebatizou. Estão reunidos numa única estrofe em martelo agalopado (dez versos de dez sílabas) informações sobre o local e a data de nascimento, a trajetória musical e a partida, a dois de agosto de 1989, do Rei do Baião. Que biógrafo, por mais abalizado, manteria tal poder de síntese?

Vejamos:

Na fazenda Caiçara ele nasceu
Dia 13, dezembro o ano doze
Superar seu reinado ninguém ouse
Pois aos gênios o mundo se rendeu
Dezenove, oito nove, faleceu
Dia dois de agosto, triste dia!
A sanfona calou a melodia
O Baião não tem mais substituto
o Nordeste gemeu e botou luto
Pela falta de sua companhia.

Hoje é consenso entre os poetas populares reconhecer a importância de Luiz Gonzaga e render louvores ao seu incomparável legado musical. Mas nem sempre foi assim. No velho folheto Os horrores que a Asa Branca traz, o pernambucano, de Limoeiro, Vicente Vitorino de Melo atribui muitas catástrofes naturais, inclusive as ocorridas fora do Nordeste, ao fato de muita gente entoar o hino gonzagueano. Na visão do poeta, terra que arde “qual fogueira de São João” só pode ser o inferno.
Pode?!

Ele afirma ter ouvido do próprio Frei Damião, numa prédica em Sobral, CE, as severas advertências, e exorta o povo a abandonar a “moda”, para evitar piores conseqüências. Os versos “Que braseiro, que fornalha/ Nenhum pé de plantação” interpretados erroneamente ensejam ao poeta associá-los à árvore primordial do conhecimento e da ciência:

Quando diz que na fornalha
tem um pé de plantação
será da árvore maldita
do fruto da maldição
deste fruto que se colhe
o sabor da perdição.

Mais adiante, através dos versos toscos do poeta, o frade italiano solta mais uma imprecação:

Será da parte do cão
quem uma moda desta inventa
quem canta ela se alegra
sua alma chora e lamenta
de seu corpo condená-la
o satanás se contenta.

Vôte!!!

Agora o outro lado: Klévisson Viana, um dos timoneiros da nova geração de vates populares, é quem, sem querer, responde ao conservador Vicente Vitorino. No folheto Lua do Sertão, a história de um Rei, o encontro de Gonzaga com o parceiro Humberto Teixeira é atribuído à Providência Divina:

Pois foi Deus quem colocou
Humberto no seu destino:
Criaram muitos sucessos
Cada qual mais genuíno
Inclusive a Asa Branca
Que no Nordeste é um hino.

Curiosamente, o que aproxima os dois poetas é a visão determinista que pontua suas obras, com ressonância em quase todos os grandes autores de cordel, que veem o Destino como uma divindade intangível. Herança pré-cristã que santo Agostinho fez questão de preservar.

 
Folheto comemorativo com capa assinada por Jô Oliveira


O fato é, dia 3 de março de 2007, a toada Asa Branca completou 60 anos de gravação por Luiz Gonzaga. Um folheto comemorativo foi lançado para marcar a data histórica, e em suas páginas poetas de bancada e repentistas de nomeada desenvolveram glosas a partir do mote decassílabo: “Foi Voando nas Asas da Asa Branca/ Que Gonzaga escreveu a sua História”, nascido da cachola do autor destas linhas. O poeta cearense Moreira de Acopiara contribuiu com duas belas estrofes em martelo. Mas o mote rendeu mais estes versos, publicados na revista De Repente, do Piauí:

Hoje em dia a sanfona de Luiz
Deve estar recheada de poeira.
Asa Branca marcou sua carreira,
E por onde cantou pediram bis.
Com orgulho alegrou o seu país,
Foi espécie de carta precatória,
Deixou nome, sucesso, fama e glória,
Seu talento de Rei ninguém desbanca.
Foi voando nas asas da Asa Branca
Que Gonzaga escreveu a sua história.

As estrofes de abertura, de minha autoria, descerraram as cortinas da coletânea:

Nos meus versos de cunho popular
Busco n’alma divina inspiração,
Porque é de Luiz, Rei do Baião
Que agora os poetas vão falar,
E o Brasil sertanejo vai mostrar
Que não é desprovido de memória,
Relembrando a incrível trajetória
De um mito que o tempo não desbanca –
Foi voando nas asas da Asa Branca
Que Gonzaga escreveu a sua história.


Dos acordes de um grande brasileiro,
Um intérprete da alma de seu povo,
Sai um canto que sempre será novo,
Amoroso, sincero, alvissareiro.
Entre os hinos do seu cancioneiro,
O que fala duma ave migratória
Conferiu a Luiz eterna glória
Para além desta vida que se estanca.
Foi voando nas asas da Asa Branca
 
Que Gonzaga escreveu a sua história.


Eu também levo o fardo do migrante
Carregando amor com melancolia,
Que abastecem a minha poesia,
Semeada em terra tão distante.
E se a vida me fez um retirante,
Não me rendo à tão cruel escória,
Antes canto a verve meritória
Que ao gênio, lhe serve de alavanca.
Foi voando nas asas da Asa Branca
Que Gonzaga escreveu a sua história.


Ilustração de Arievaldo Viana

Arievaldo Viana, em A trajetória de Luiz, Rei do Baião, reafirma o valor de Asa Branca como hino do Nordeste:

Querendo consolidar
A sua bela carreira
Nosso Gonzaga encontrou
O grande Humberto Teixeira
E com este advogado
Um cearense danado
Poeta de alma franca
Desenvolveu o baião
E mostrou para o sertão
O nosso hino ASA BRANCA.

Tenha ou não Frei Damião vociferado contra a “moda da Asa Branca” e seu divulgador, a verdade é que Luiz Gonzaga gravou, em 1974, o xote Frei Damião, de Janduhy Finizola, numa interpretação em que deu o melhor de sua voz e de sua alma cabocla e devota, louvando o frade italiano, que no Nordeste se fez missionário:

Pecador, te ajoelha
Quem em Deus que se espelha
Só pode ter de frei Damião
Sua proteção.

Bom cristão, Gonzaga também lamentava “os desmantelos do mundo”, mas sempre com bom humor, mantendo-se a anos luz da aridez dos versos de Vicente Vitorino. E a dolorosa atualidade de Asa Branca ratifica a sua condição de hino de um Nordeste que ainda clama por justiça social, tão escassa quanto as “águas da chuva”.

Nota: Em 2009, tive a honra de editar, pela Nova Alexandria, o livro O jovem Luiz Gonzaga, de Roniwalter Jatobá

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