Somos um povo
que não se reconhece como povo. Achamos bonitas as manifestações da cultura
espontânea, mas não nos identificamos com elas. São bonitas à distância, com
seu colorido, seu pitoresco, sua “brasilidade”. Elas, no entanto, integram um
mundo à parte do meu. Têm uma única função: entreter turistas. E basta.
Dias atrás, num
consultório, à espera de atendimento, assisti, pela primeira vez, ao programa “Encontro”,
com Fátima Bernardes. Chico César estava por lá, ia ser feita uma homenagem a
Ariano Suassuna, por ocasião de seus noventa anos de nascimento, e seria apresentado
um trecho da peça O Auto do Reino do Sol, de autoria do parceiro Braulio
Tavares. Tudo ia bem até o momento em que os desenhos armoriais de Suassuna, baseados
na heráldica e na simbologia sertaneja, vieram à baila. Foi aí que a
apresentadora disse algo mais ou menos assim: “Estes desenhos lembram as
pinturas rupestres do Nordeste”.
Fiquei
estupefato. A arte rupestre existe em todos os quadrantes. O desenho de um
cavalo, animal desconhecido de nossos primeiros habitantes, foi o que ensejou o
comentário de Fátima, talvez mal amparada pela conceituação de Niède Guidón,
que chamou de Tradição Nordeste o conjunto muito peculiar de pinturas e gravuras
da Serra da Capivara, no Piauí. Em que pese a brutal ignorância no que que
concerne à arte pré-histórica ou ao movimento Armorial, o que chamou a atenção
foi mesmo a referência ao Nordeste, tratado, quase sempre, nos meios de comunicação,
como uma região descolada da realidade nacional, do Brasil “moderno”, produtivo,
industrializado. O próprio Ariano foi tratado, reiteradas vezes, pela
apresentadora como grande ícone da “cultura nordestina”. Ele que, inspirado por
Gil Vicente, Calderón de la Barca, Lope de Vega, Plauto e Shakespeare, talvez
seja – a opinião é muito pessoal – o mais universal de nossos dramaturgos.
A simples
suposição de que o homem primitivo do “Nordeste” – que, como região, só existe
há bem pouco tempo – tinha um estilo próprio oculta, de fato, um dos preconceitos
mais arraigados nos meios ditos pensantes deste país.
No campo da
literatura infantojuvenil, a coisa não é muito diferente. Em livros premiados,
já deparei informações estapafúrdias, que passam a impressão de um Nordeste
homogêneo, assolado pela seca, com um único bioma, a Caatinga, e povoado por
pessoas tristes. Nesse circo dos horrores, mandacaru tem miolo e a Zona da Mata e a
Caatinga parecem situar-se na mesma faixa geográfica.
Essa gente precisa
comer um bom cortado de palma. Que, se não cura todos os preconceitos, é uma
excelente receita contra a anemia.
Um comentário:
Bravo! Bravo, Marco Haurélio!
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