quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Tristão e Isolda no folclore brasileiro

The Mouth of the Truth (A Boca da Verdade), de Lucas Cranach, o Velho. 

Pode parecer estranho o título acima, até por não existir na tradição oral brasileira nenhuma versão, mesmo resumida, da grande história de amor. Não foi tema dos cantadores e poetas de bancada nordestinos, que celebraram em versos o imperador francês Carlos Magno e os Doze Pares de França, até o aparecimento da minha versão em cordel, a ser publicada este ano com o selo da SESI-SP Editora, que tem o mérito de devolver a saga ao gênero no qual debutou: a poesia. A presença e permanência do mito está nos contos tradicionais maravilhosos e novelescos, que reproduzem, e até ampliam cenas vivenciadas por Tristão e sua amada Isolda, a Loura.

Um exemplo é a presença do episódio do juramento ambíguo na nossa tradição oral. Registrei, em Serra do Ramalho, na Bahia, um conto popular, A pedra-mármore, que traz, também, um triângulo amoroso. A jovem é levada pelo marido até a tal pedra onde será testada, por meio de um juramento, sua fidelidade. Alertada pela irmã do rapaz, que cumpre um papel similar ao da fiel serva Brangiene no mito de Tristão e Isolda, a moça finge desmaiar e o marido recorre a um pastor de ovelhas, cujo abraço poderá reanimá-la. Voltando a si ela jura que, além do marido, só tivera em seus braços o tal pastor (seu amante sob disfarce). A presença da pedra-mármore, como detector de mentiras infalível, evoca La Bocca della Verità (A Boca da Verdade) romana. A cena foi imortalizada numa pintura de Lucas Cranach, o Velho (1472-1553). Vem a ser o mesmo episódio da rainha Isolda, obrigada a prestar um juramento diante das relíquias da Santa Igreja e do venerando rei Artur, no vau do Mau Passo, depois de Tristão, disfarçado em leproso, ajudá-la a atravessar uma ponte estreita.

Outro episódio que figura em nossos contos de cariz maravilhoso é o do tributo do dragão (ATU 300). A literatura de cordel, por exemplo, imortalizou-o na História de Juvenal e o Dragão, de Leandro Gomes de Barros, em que o herói, depois de libertar uma princesa condenada a morrer devorada pelo monstro, precisa provar que ele foi o seu salvador. A moça, ameaçada pelo cocheiro que a levaria de volta ao seu reino, confirma a versão de que este é o matador do dragão, e o pai dela acaba por marcar o seu casamento com o falso herói. Juvenal, na véspera do casamento, vai até o palácio e prova, assim como Tristão, que desmascara o pérfido Aguiguerran, ter sido ele o responsável pela grande façanha. Recolhi um conto, José e Maria, com o mesmo motivo: descoberto, o falso herói se atira de uma grande altura e morre.

Também o pitoresco e comovente episódio da loucura de Tristão não é estranho a nossos contadores tradicionais, embora o herói esteja tão irreconhecível quanto no original. Geralmente, o conto tem como protagonista um jovem que viola um tabu imposto por um feiticeiro (ou um ogro), mergulhando o dedo num caldeirão ou abrindo um quarto interdito. A história do rapaz dos cabelos dourados escondidos sob uma bexiga de boi era a mais ouvida pelo célebre folclorista Luís da Câmara Cascudo durante a infância. O disfarce abjeto, aparece, no conto O careca, registrado por Sílvio Romero em 1885. O conto João Ferrugem, dos Irmãos Grimm, com um benfeitor sobrenatural, aponta na direção de um conto que recolhi, em Serra do Ramalho, O Príncipe-Pastor. O conto alemão traz episódios, como o do herói oculto sob um disfarce, lutando heroicamente e livrando todo um reino dos inimigos, que indicam parentesco com a lenda de Roberto do Diabo. No conto baiano, o herói Bu, que tinha todo o corpo dourado, troca as ricas roupas que levava pelos molambos de um pastor, e desta forma se apresenta a um rei, ao qual vai servir como copeiro. Sofrendo toda a sorte de ultrajes por parte dos genros do rei, termina por se vingar e, ao final, casa com a filha caçula, herdando, ainda, o trono. O moço dourado, sob disfarce, é Tristão a fingir-se de louco, de cabeça raspada e coberto de fuligem e vitupérios, para estar perto de Isolda, podendo ainda significar o sol em seu ocaso, já que Tristão foi, desde sempre, como matador de um dragão, identificado aos heróis solares.


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