Republico este perfil que escrevi há alguns anos, homenageando nosso mais destacado folclorista que, no penúltimo dia do ano, completa 120 anos de nascimento.
Perfil biográfico
No Brasil, à margem da cultura
livresca, dos modelos de comportamento e de conduta importados, dos salões
opulentos, da nobreza caricata, vicejou opulenta, portentosa, espantosa
literatura oral, fazendo, muitas vezes, pela boca de uma única pessoa se manifestarem
conhecimentos que remetem a civilizações há muito defuntas. Pode-se argumentar
que apenas um retalho, ou, menos ainda, um fiapo das antigas tradições chega
até nós. Mas não é pouco. Na contística popular do Nordeste brasileiro, por
exemplo, é possível se escutar uma história que, em essência, é a mesma que os
povos estabelecidos à margem do Nilo, no Egito, repetem há mais de 3.000 anos.
As nossas orações aos santos, ligeiramente modificadas, em tempos de antanho,
devem ter acalmado a fúria e comprado o obséquio de muitos deuses de
incontáveis panteões. Dessa literatura oral a arte de um país que se pretende
sério será sempre a maior tributária. E, para a sorte do Brasil, as tradições
populares, além das vozes anônimas que a perpetuaram, tiveram um zeloso
guardião. Seu nome? Luís da Câmara Cascudo.
Nascido em Natal, Rio Grande do
Norte, no dia 30 de dezembro de 1898, filho de Francisco Cascudo, militar que,
no final da vida, dedicou-se ao comércio, e de Ana Maria da Câmara Pimenta, o
futuro folclorista e historiador veio ao mundo pelas mãos habilidosas da
parteira Bernardina Nery. Segundo depoimento de sua filha, Ana Maria Cascudo
Barreto, “Luís tinha sido um sobrevivente das moléstias que acometeram
seus irmãos. Maria Octávia e Antonio Haroldo faleceram em Caicó, onde o genitor
era Delegado Militar. Já em Natal, Maria Severina, que trazia os olhos azuis
paternos, morreu em 1903, com um ano e três meses. Todos sucumbiram da mesma
enfermidade, crupe ou difteria”. O nome, que homenageia Luís IX, São Luís, rei
de França, deve-se à promessa materna.
Apesar das restrições paternas
que visavam resguardá-lo das moléstias que levaram seus irmãos, Cascudinho,
como também ficou ternamente conhecido, do seu quarto, imaginava-se envolvido
em muitas peraltices, como tomar banho frio e pescar no rio Potengi, que banha
a cidade em que nasceu. Cursou Medicina em Salvador e no Rio de Janeiro, mas
não concluiu o curso. Concluiu em 1928, o curso de Direito em Recife e o de
Etnografia, na Faculdade de Filosofia do Rio Grande do Norte. Em 1929, casou-se
com Dhália Freire, companheira de toda a vida. Desta união nasceram seus dois
filhos: Fernando Luís e Ana Maria. Em 1921, publicou seu primeiro livro, Alma
patrícia, um resumo biográfico sobre personagens de seu estado natal. A
primeira grande contribuição aos estudos da Etnografia veio com a publicação,
em 1939, de Vaqueiros e cantadores, verdadeiro inventário da poesia
popular do Nordeste do Brasil, abrangendo desde a poesia tradicional de origem
ibérica ao manancial de histórias trágicas e cômicas da rapsódia nordestina.
No campo da contística popular,
sua obra mais famosa é Contos tradicionais do Brasil (1946),
compêndio que reúne histórias ouvidas na infância junto à ama analfabeta, mas
de inteligência vivaz, Luísa Freire, ou recolhidas junto aos tipos populares de
seu estado. Não se opôs ao sistema de catalogação Aarne-Thompson, mas sugeriu
uma nova divisão que contemplasse melhor sua recolha. O livro tem incontáveis
edições no Brasil. Outra obra de destaque, Geografia dos mitos
brasileiros (1948) reúne o vasto bestiário nacional e as assombrações,
de origem variada, mostrando sua área de abrangência, as ocorrências em obras
clássicas de todas as épocas, amparadas por uma inigualada erudição. Câmara
Cascudo escreveu centenas de livros, além de artigos espalhados por revistas e
jornais, cobrindo diversas áreas do conhecimento humano. Organizou, em 1954, um
monumental Dicionário do Folclore Brasileiro, talvez sua obra mais
importante, obrigatório para todos os que se debruçam sobre o que ele
denominava “Ciência da psicologia coletiva”.
Luís da Câmara Cascudo nos deixou
em 30 de julho de 1986, aos 87 anos. Sua obra continua a ser reeditada pela
Global Editora e segue sendo estudada e difundida no Brasil e em outros países.
Estudioso também da religião e dos costumes, foi alçado à condição de santo em
2007, no Simpósio Internacional dos Contadores de Histórias, ocorrido no Rio de
Janeiro. A função a ele atribuída não poderia ser mais apropriada: São Cascudo,
Padroeiro da Tradição.
Marco Haurélio
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