Chicó (Selton Mello) e João Grilo (Matheus Nachtergaele) no set de O Auto da Compadecida (2000) |
Em janeiro de 1999, quando a
rede Globo levou ao ar a primeira versão televisiva da peça Auto da
Compadecida, de Ariano Suassuna, adaptada numa minissérie em quatro
capítulos, creio que nem o criativo diretor Guel Arraes esperava o sucesso
retumbante da obra. Com roteiro de Adriana Falcão e João Falcão, a adaptação
reaproveitava, ainda, elementos de outras peças de Suassuna, O Santo e a
Porca e Torturas de um Coração. Com um elenco estelar, encabeçado
por Matheus Nachtergaele e Selton Mello, nos papéis de João Grilo e Chicó, a
minissérie, editada e com uma hora a menos de duração, foi exibida nos cinemas,
também com enorme sucesso. Esta, surpreendentemente, era a terceira versão cinematográfica da peça:
outras duas foram produzidas em 1969 (com Armando Bógus e Antônio Fagundes) e 1987
(com os Trapalhões).
Aclamada pelo público e pela crítica, era improvável uma continuação por dois motivos: Ariano Suassuna, o criador da peça, faleceu em 2014 e, até onde se sabe, não deu sequência à história dos dois simpáticos embusteiros. 25 anos depois, os atores do original já chegaram à maturidade, o que poderia interferir na dinâmica da história, amparada não apenas em diálogos ágeis, mas também em movimentos calculados, desenvoltos, como se estivéssemos (e a peça ratifica isso) num circo. Bem, os rumores se converteram em certeza quando os envolvidos com a produção original anunciaram uma continuação. O roteiro traz, além do diretor Guel Arraes, a assinatura de João Falcão, Adriana Falcão e Jorge Furtado. Guel teve, atrás das câmeras, a companhia de Flávia Lacerda. No papel da Compadecida, Thaís Araújo substitui Fernanda Montenegro. Do enredo em si sabemos bem pouco, mas elementos da Farsa da Boa Preguiça, outra peça de sucesso de Suassuna, devem ser reaproveitados nesta nova versão cuja estreia foi anunciada para 25 de dezembro, portanto, no Natal.
Do cordel para o teatro
João Grilo encarna o
arquétipo do anti-herói nordestino, a exemplo de Pedro Malasartes, Camões e Bocage, sobrevivendo à base manhas e truques, e
ludibriando os poderosos (representados pelo clero e pelos coronéis) na obra
imortal de Ariano Suassuna. A peça, tinha por base três folhetos de cordel:
Folheto O cavalo que defecava dinheiro (Tupynanquim). Capa: Klévisson Viana |
O cavalo que defecava
dinheiro, de autoria de Leandro Gomes de
Barros, que traz a história de um espertalhão morador da cidade de Macaé, que
ludibria um duque avarento e desumano. Deste folheto, Suassuna extraiu os
episódios do gato que “descome” dinheiro e do instrumento musical que,
supostamente, ressuscita os mortos.
Folheto O dinheiro (Rouxinol do Rinaré Edições) Capa: Eduardo Azevedo. |
O dinheiro ou O testamento
do cachorro, também de Leandro Gomes de
Barros, no qual Suassuna se inspirou para compor a cena do testamento da
cachorra do padeiro. O mote da história vem de um conto popular, com versões
divulgadas em muitos países, inclusive num fabliau francês.
O castigo da soberba (versão digital). Capa: Jô Oliveira |
O castigo da soberba, de Silvino Pirauá de Lima, no qual aparece o auto
propriamente dito, com o motivo do julgamento celeste, em que Jesus, Nossa
Senhora e o Diabo atuam como num tribunal, com funções bem delimitadas.
Os três folhetos foram enfeixados na antologia Violeiros do Norte (1925), do folclorista cearense Leonardo Mota. Foi nesta obra que Suassuna se baseou para compor sua obra-prima, reproduzindo até os versos de invocação de Nossa Senhora, pela alma de João Grilo, que Mota atribui ao cantador baiano Canário Pardo.
Proezas de João Grilo, editado por João Martins de Athayde. Provável capa de Eliezer Athayde. |
Em nenhuma dessas obras,
João Grilo aparece “de cara limpa”. Sua estreia no cordel deu-se em 1932, no
folheto Palhaçadas de João Grilo, do poeta e astrólogo João Ferreira de
Lima. Ampliado depois, com a inclusão de muitos episódios de contos distintos,
a mando do editor João Martins de Athayde, foi rebatizado como Proezas de João
Grilo, tornando-se uma das mais célebres criações da literatura de cordel
brasileira.
O texto do cordel reúne,
pelo menos, seis episódios distintos, além de motivos difusos, costurados para
parecer uma história homogênea. e várias páginas de perguntas e respostas,
feitas por João Grilo a um professor e outras, dirigidas ao herói por um sultão,
ao gosto da tradição oriental. Uma destas perguntas, formulada pelo sultão
Bartolomeu, por sinal, revive o enigma que, há cerca de três milênios,
assombrava os habitantes da Tebas grega:
Perguntou:
— Qual o animal
que
mostra mais rapidez
que
anda de quatro pés
de
manhã por sua vez
ao
meio-dia com dois
passando
disto depois
à
tarde anda com três?
O
Grilo disse: é o homem
que
se arrasta pelo chão
no
tempo que engatinha
depois
toma posição
anda
em pé bem seguro
mas
quando fica maduro
faz
três pés com o bastão.
Fica claro que se trata do
enigma da Esfinge, proposto a Édipo, às portas de Tebas, o qual, desvendado
pelo herói, decreta a derrota e leva à morte o monstro lendário, híbrido de
mulher e leão.
Folhetos sobre João Grilo. |
Mas, e se eu disser que o
personagem João Grilo, tão identificado ao Nordeste graças ao cordel e à peça
de Suassuna, não é nordestino e muito menos brasileiro? Acredito que você
perguntaria: e de onde ele veio, afinal?
Nas tradição oral luso-brasileira
Para começar a responder,
devemos passar antes por Portugal, onde João Grilo, desde o século XIX, figura
nos contos populares “João Ratão (ou Grilo)” (1883) e “História de João Grilo”
(1910), recolhidos por Teófilo Braga e Consiglieri Pedroso, respectivamente. No
exemplar da antologia Contos populares do povo português, de Braga, um
carvoeiro passa-se por adivinhão na corte, propondo-se a desvendar um roubo.
Pede três jantares ao rei e, a cada noite, menciona o dia que está por
findar-se, confundindo os servos reais, que imaginam terem sido descobertos
pelo falso adivinho e confessando o crime. João Ratão conquista a confiança do
rei, que lhe oferece, para testá-lo uma vez mais, um copo com mijo de porca.
Depois de bebê-lo, aparvalhado ante a pergunta do rei, responde: “— Aqui é que a porca torce o rabo!”, sendo
aclamado pelo monarca, que lhe concede a mão de sua filha.
No folheto Proezas de
João Grilo, a setilha a seguir traz a resposta dada ao rei acerca do objeto
oculto em um alçapão:
João
lhe disse: — Esse objeto
não
é manso, nem é brabo,
nem
é grande, nem pequeno,
nem
é santo, nem é diabo —
bem
que mamãe me dizia
que
eu ainda caía
onde
a porca torce o rabo.
No Brasil, a história aparece, por vezes, com outro protagonista, caso de “Advinha, adivinhão”, da recolha de Luís da Câmara Cascudo. Doralice Alcoforado e Maria Suárez Albán recolheram, na Bahia, “Amigo Grilo” e “Dão Grilo”, em que o nosso simpático (anti-)herói ainda se porta como um fingido adivinhão ajudado pela sorte.
Ilustração de Klévisson Viana para o livro Traquinagens de João Grilo, de Marco Haurélio. |
Nas pegadas de João Grilo
Para uma parcela importante
dos leitores, trabalhadores rurais da zona da mata pernambucana, cinco décadas
atrás, prevalecia o João Grilo vingador, reflexo de sua situação precária.
Adivinho, decifrador de enigmas e burlador de poderosos no cordel, com tantas
facetas distintas, João Grilo acabou por constituir-se, ele mesmo, um enigma.
Angelo de Gubernatis (1840-1913). |
É hora, pois, de conhecermos suas encarnações anteriores para compreendermos suas aparentes contradições. O etnólogo italiano Angelo de Gubernatis, em sua Mitologia zoológica, explica a associação do grilo (inseto) ao adivinho e a possível ligação com o personagem folclórico:
“Em italiano, grillo também significa capricho, e especialmente capricho amoroso, e médico grillo é aplicado a um médico tolo; E, no entanto, o grilo deveria ser o adivinho por excelência. Na Itália, quando propomos um enigma, costumamos terminá-lo com as palavras “indovinala, grillo”; (adivinhe, grilo); esta expressão talvez se refira ao suposto tolo da história popular, que quase sempre acaba se mostrando sábio”.
Opera nuova..., uma das mais antigas referências literárias ao Mestre Grillo (protótipo de João Grilo). |
Uma célebre referência ao adivinhão se encontra nas folhas volantes italianas da Opera nuova piacevole, e da ridere, de un villano lavoratore nomato Grillo, che volse doventar medico (Nova obra agradável e para rir de um camponês chamado Grilo, que quis se tornar médico), datada do século XVI, circulando, com grande sucesso, em Bolonha. A esta obra se refere Giambattista Basile, na introdução à primeira jornada do Conto dos contos (1634-36). Pietro Fanfani (1815-1879), autor de um Vocabolario dell'uso toscano, afirma haver existido, de fato, em Bolonha, no século XII, um Doutor Grillo. Fanfani, por sua vez, menciona um certo Barotti, de quem reproduz o trecho a seguir, extraído de uma nota a uma obra sobre o burlão Bertoldo:
“O nome do Doutor Grillo é famoso por algumas oitavas populares de um antigo
autor, nas quais é retratado um camponês tolo que alcançou reputação como um
excelente médico por meio de erros e extravagâncias que, felizmente, para sua
sorte, deram certo. [...] Foi Grillo, um médico bolonhês muito talentoso e um
dos primeiros a colocar em prática a medicina simpática; com tal arte, que a
muitos parecia, e ainda parece, extravagante e ridícula, ele operou várias
curas maravilhosas para males muito desesperadores que lhe renderam muito
crédito entre príncipes e grandes senhores: mas a inveja despertou muitos
adversários, que o caluniaram e o ridicularizaram, e as oitavas mencionadas
acima talvez tenham se originado daqui”.
Barotti
refere, ainda, uma inscrição em latim gravada em pedra na igreja de Santo
Stefano, em Bologna, em memória de Nonacrina, filha do médico, que morrera
antes do pai: “Hic Nonacrina jacet medicant filia Grilli...” (Aqui jaz
Nonacrina, filha de Grillo...).
David Gentilcore, professor da Universidade de Veneza, estudando o charlatanismo médico no início da Itália moderna, alude a este enigmático personagem:
“Há a história do camponês Grillo (literalmente Cricket) que se torna médico. Consegue satirizar tanto as pretensões dos camponeses quanto a atmosfera e os aprendizados dos médicos”.
Gentilcore menciona uma incursão de Grillo pelo teatro popular italiano, como
um “bufão mítico”, documentada pelo escritor Tommaso Garzoni (1549-1589) no
tratado La piazza universale di tutte le professioni del mondo (A praça
universal de todas as profissões do mundo), publicado em 1585.
Grillo nessa perspectiva,
conecta-se ao “homem da cobra”, figura fácil nas feiras populares do Brasil até
bem poucos anos. Era chamado, por vezes, de “doutor-raiz”, com suas ervas e
unguentos “miraculosos”. Um desses personagens pitorescos, curiosamente apelidado pelo povo
como Doutor Grilo, podia ser visto nas feiras de Aparecida e de outras cidades,
no sertão paraibano, há cerca de cinquenta anos, conforme depoimento do
cineasta José França de Oliveira, que se recorda dele “vendendo pomada, banha
de peixe-boi, óleos etc.
E se Doutor Grillo
deixou de ser um nome próprio e passou a expressão proverbial para designar
médicos tolos, nosso João Grilo, no cordel, teatro e cinema, comprova que, por
vias tortas, às vezes, o que prevalece é a poética justiça do tempo.
REFERÊNCIAS:
ALCOFORADO,
Doralice; ALBAN, MarIa del Rosário Suarez. Contos populares brasileiros:
Bahia. Recife: Massangana, 2001.
BRAGA, Teófilo.
Contos tradicionais do povo português. Lisboa: Edições Dom Quixote,
2002b. v. 1.
FANFANI,
Pietro. Vocabolario dell'uso toscano. Florença: G. Barbera Editore,
1863.
GENTILCORE, David.
Medical charlatanism in early modern Italy. Oxford: Oxford University
Press, 2006.
GUBERNATIS,
Angelo de. Zoological mythology or Legends of animals. Londres: Trübner
& Co., 1872. v. 2.
LIMA, João Ferreira de. Proezas de João Grilo. Juazeiro do Norte: Tipografia São Francisco, 1951.
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