segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

JOÃO GRILO: DA TRADIÇÃO ORAL AO CINEMA

 

 Chicó (Selton Mello) e João Grilo (Matheus Nachtergaele) no set
de O Auto da Compadecida (2000)

Em janeiro de 1999, quando a rede Globo levou ao ar a primeira versão televisiva da peça Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, adaptada numa minissérie em quatro capítulos, creio que nem o criativo diretor Guel Arraes esperava o sucesso retumbante da obra. Com roteiro de Adriana Falcão e João Falcão, a adaptação reaproveitava, ainda, elementos de outras peças de Suassuna, O Santo e a Porca e Torturas de um Coração. Com um elenco estelar, encabeçado por Matheus Nachtergaele e Selton Mello, nos papéis de João Grilo e Chicó, a minissérie, editada e com uma hora a menos de duração, foi exibida nos cinemas, também com enorme sucesso. Esta, surpreendentemente, era a terceira versão cinematográfica da peça: outras duas foram produzidas em 1969 (com Armando Bógus e Antônio Fagundes) e 1987 (com os Trapalhões).

Aclamada pelo público e pela crítica, era improvável uma continuação por dois motivos: Ariano Suassuna, o criador da peça, faleceu em 2014 e, até onde se sabe, não deu sequência à história dos dois simpáticos embusteiros. 25 anos depois, os atores do original já chegaram à maturidade, o que poderia interferir na dinâmica da história, amparada não apenas em diálogos ágeis, mas também em movimentos calculados, desenvoltos, como se estivéssemos (e a peça ratifica isso) num circo. Bem, os rumores se converteram em certeza quando os envolvidos com a produção original anunciaram uma continuação. O roteiro traz, além do diretor Guel Arraes, a assinatura de João Falcão, Adriana Falcão e Jorge Furtado. Guel teve, atrás das câmeras, a companhia de Flávia Lacerda. No papel da Compadecida, Thaís Araújo substitui Fernanda Montenegro. Do enredo em si sabemos bem pouco, mas elementos da Farsa da Boa Preguiça, outra peça de sucesso de Suassuna, devem ser reaproveitados nesta nova versão cuja estreia foi anunciada para 25 de dezembro, portanto, no Natal. 

Do cordel para o teatro

João Grilo encarna o arquétipo do anti-herói nordestino, a exemplo de Pedro Malasartes, Camões e Bocage, sobrevivendo à base manhas e truques, e ludibriando os poderosos (representados pelo clero e pelos coronéis) na obra imortal de Ariano Suassuna. A peça, tinha por base três folhetos de cordel:

Folheto O cavalo que defecava dinheiro (Tupynanquim). Capa: Klévisson Viana

O cavalo que defecava dinheiro, de autoria de Leandro Gomes de Barros, que traz a história de um espertalhão morador da cidade de Macaé, que ludibria um duque avarento e desumano. Deste folheto, Suassuna extraiu os episódios do gato que “descome” dinheiro e do instrumento musical que, supostamente, ressuscita os mortos.

Folheto O dinheiro (Rouxinol do Rinaré Edições)
Capa: Eduardo Azevedo. 

O dinheiro ou O testamento do cachorro, também de Leandro Gomes de Barros, no qual Suassuna se inspirou para compor a cena do testamento da cachorra do padeiro. O mote da história vem de um conto popular, com versões divulgadas em muitos países, inclusive num fabliau francês.

O castigo da soberba (versão digital). Capa: Jô Oliveira

O castigo da soberba, de Silvino Pirauá de Lima, no qual aparece o auto propriamente dito, com o motivo do julgamento celeste, em que Jesus, Nossa Senhora e o Diabo atuam como num tribunal, com funções bem delimitadas.

Os três folhetos foram enfeixados na antologia Violeiros do Norte (1925), do folclorista cearense Leonardo Mota. Foi nesta obra que Suassuna se baseou para compor sua obra-prima, reproduzindo até os versos de invocação de Nossa Senhora, pela alma de João Grilo, que Mota atribui ao cantador baiano Canário Pardo. 

Proezas de João Grilo, editado por João Martins de Athayde.
Provável capa de Eliezer Athayde. 

Em nenhuma dessas obras, João Grilo aparece “de cara limpa”. Sua estreia no cordel deu-se em 1932, no folheto Palhaçadas de João Grilo, do poeta e astrólogo João Ferreira de Lima. Ampliado depois, com a inclusão de muitos episódios de contos distintos, a mando do editor João Martins de Athayde, foi rebatizado como Proezas de João Grilo, tornando-se uma das mais célebres criações da literatura de cordel brasileira.

O texto do cordel reúne, pelo menos, seis episódios distintos, além de motivos difusos, costurados para parecer uma história homogênea. e várias páginas de perguntas e respostas, feitas por João Grilo a um professor e outras, dirigidas ao herói por um sultão, ao gosto da tradição oriental. Uma destas perguntas, formulada pelo sultão Bartolomeu, por sinal, revive o enigma que, há cerca de três milênios, assombrava os habitantes da Tebas grega:

 

Perguntou: Qual o animal

que mostra mais rapidez

que anda de quatro pés

de manhã por sua vez

ao meio-dia com dois

passando disto depois

à tarde anda com três?

 

O Grilo disse: é o homem

que se arrasta pelo chão

no tempo que engatinha

depois toma posição

anda em pé bem seguro

mas quando fica maduro

faz três pés com o bastão.

 

Fica claro que se trata do enigma da Esfinge, proposto a Édipo, às portas de Tebas, o qual, desvendado pelo herói, decreta a derrota e leva à morte o monstro lendário, híbrido de mulher e leão.

Folhetos sobre João Grilo. 

Mas, e se eu disser que o personagem João Grilo, tão identificado ao Nordeste graças ao cordel e à peça de Suassuna, não é nordestino e muito menos brasileiro? Acredito que você perguntaria: e de onde ele veio, afinal?

Nas tradição oral luso-brasileira

Para começar a responder, devemos passar antes por Portugal, onde João Grilo, desde o século XIX, figura nos contos populares “João Ratão (ou Grilo)” (1883) e “História de João Grilo” (1910), recolhidos por Teófilo Braga e Consiglieri Pedroso, respectivamente. No exemplar da antologia Contos populares do povo português, de Braga, um carvoeiro passa-se por adivinhão na corte, propondo-se a desvendar um roubo. Pede três jantares ao rei e, a cada noite, menciona o dia que está por findar-se, confundindo os servos reais, que imaginam terem sido descobertos pelo falso adivinho e confessando o crime. João Ratão conquista a confiança do rei, que lhe oferece, para testá-lo uma vez mais, um copo com mijo de porca. Depois de bebê-lo, aparvalhado ante a pergunta do rei, responde: “ Aqui é que a porca torce o rabo!”, sendo aclamado pelo monarca, que lhe concede a mão de sua filha.

No folheto Proezas de João Grilo, a setilha a seguir traz a resposta dada ao rei acerca do objeto oculto em um alçapão:


João lhe disse: — Esse objeto

não é manso, nem é brabo,

nem é grande, nem pequeno,

nem é santo, nem é diabo —

bem que mamãe me dizia

que eu ainda caía

onde a porca torce o rabo.

 

No Brasil, a história aparece, por vezes, com outro protagonista, caso de “Advinha, adivinhão”, da recolha de Luís da Câmara Cascudo. Doralice Alcoforado e Maria Suárez Albán recolheram, na Bahia, “Amigo Grilo” e “Dão Grilo”, em que o nosso simpático (anti-)herói ainda se porta como um fingido adivinhão ajudado pela sorte. 

Ilustração de Klévisson Viana para o livro
Traquinagens de João Grilo, de Marco Haurélio.

Nas pegadas de João Grilo

Para uma parcela importante dos leitores, trabalhadores rurais da zona da mata pernambucana, cinco décadas atrás, prevalecia o João Grilo vingador, reflexo de sua situação precária. Adivinho, decifrador de enigmas e burlador de poderosos no cordel, com tantas facetas distintas, João Grilo acabou por constituir-se, ele mesmo, um enigma.

Angelo de Gubernatis (1840-1913). 

É hora, pois, de conhecermos suas encarnações anteriores para compreendermos suas aparentes contradições. O etnólogo italiano Angelo de Gubernatis, em sua Mitologia zoológica, explica a associação do grilo (inseto) ao adivinho e a possível ligação com o personagem folclórico:

“Em italiano, grillo também significa capricho, e especialmente capricho amoroso, e médico grillo é aplicado a um médico tolo; E, no entanto, o grilo deveria ser o adivinho por excelência. Na Itália, quando propomos um enigma, costumamos terminá-lo com as palavras “indovinala, grillo”; (adivinhe, grilo); esta expressão talvez se refira ao suposto tolo da história popular, que quase sempre acaba se mostrando sábio”.

Opera nuova..., uma das mais antigas referências 
literárias ao Mestre Grillo (protótipo de João Grilo).

Uma célebre referência ao adivinhão se encontra nas folhas volantes italianas da Opera nuova piacevole, e da ridere, de un villano lavoratore nomato Grillo, che volse doventar medico (Nova obra agradável e para rir de um camponês chamado Grilo, que quis se tornar médico), datada do século XVI, circulando, com grande sucesso, em Bolonha. A esta obra se refere Giambattista Basile, na introdução à primeira jornada do Conto dos contos (1634-36). Pietro Fanfani (1815-1879), autor de um Vocabolario dell'uso toscano, afirma haver existido, de fato, em Bolonha, no século XII, um Doutor Grillo. Fanfani, por sua vez, menciona um certo Barotti, de quem reproduz o trecho a seguir, extraído de uma nota a uma obra sobre o burlão Bertoldo: 

“O nome do Doutor Grillo é famoso por algumas oitavas populares de um antigo autor, nas quais é retratado um camponês tolo que alcançou reputação como um excelente médico por meio de erros e extravagâncias que, felizmente, para sua sorte, deram certo. [...] Foi Grillo, um médico bolonhês muito talentoso e um dos primeiros a colocar em prática a medicina simpática; com tal arte, que a muitos parecia, e ainda parece, extravagante e ridícula, ele operou várias curas maravilhosas para males muito desesperadores que lhe renderam muito crédito entre príncipes e grandes senhores: mas a inveja despertou muitos adversários, que o caluniaram e o ridicularizaram, e as oitavas mencionadas acima talvez tenham se originado daqui”.

Barotti refere, ainda, uma inscrição em latim gravada em pedra na igreja de Santo Stefano, em Bologna, em memória de Nonacrina, filha do médico, que morrera antes do pai: “Hic Nonacrina jacet medicant filia Grilli...” (Aqui jaz Nonacrina, filha de Grillo...).

David Gentilcore, professor da Universidade de Veneza, estudando o charlatanismo médico no início da Itália moderna, alude a este enigmático personagem: 

“Há a história do camponês Grillo (literalmente Cricket) que se torna médico. Consegue satirizar tanto as pretensões dos camponeses quanto a atmosfera e os aprendizados dos médicos”. 

Gentilcore menciona uma incursão de Grillo pelo teatro popular italiano, como um “bufão mítico”, documentada pelo escritor Tommaso Garzoni (1549-1589) no tratado La piazza universale di tutte le professioni del mondo (A praça universal de todas as profissões do mundo), publicado em 1585.

Grillo nessa perspectiva, conecta-se ao “homem da cobra”, figura fácil nas feiras populares do Brasil até bem poucos anos. Era chamado, por vezes, de “doutor-raiz”, com suas ervas e unguentos “miraculosos”. Um desses personagens pitorescos, curiosamente apelidado pelo povo como Doutor Grilo, podia ser visto nas feiras de Aparecida e de outras cidades, no sertão paraibano, há cerca de cinquenta anos, conforme depoimento do cineasta José França de Oliveira, que se recorda dele “vendendo pomada, banha de peixe-boi, óleos etc. 

E se Doutor Grillo deixou de ser um nome próprio e passou a expressão proverbial para designar médicos tolos, nosso João Grilo, no cordel, teatro e cinema, comprova que, por vias tortas, às vezes, o que prevalece é a poética justiça do tempo.

REFERÊNCIAS:

ALCOFORADO, Doralice; ALBAN, MarIa del Rosário Suarez. Contos populares brasileiros: Bahia. Recife: Massangana, 2001. 

BRAGA, Teófilo. Contos tradicionais do povo português. Lisboa: Edições Dom Quixote, 2002b. v. 1.

FANFANI, Pietro. Vocabolario dell'uso toscano. Florença: G. Barbera Editore, 1863. 

GENTILCORE, David. Medical charlatanism in early modern Italy. Oxford: Oxford University Press, 2006.

GUBERNATIS, Angelo de. Zoological mythology or Legends of animals. Londres: Trübner & Co., 1872. v. 2.

LIMA, João Ferreira de. Proezas de João Grilo. Juazeiro do Norte: Tipografia São Francisco, 1951.

Clique na imagem para adquirir o livro Traquinagens de João Grilo.




 


quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Patativa do Assaré e a Literatura de Cordel


Foto: Antônio Vicelmo.

Em uma postagem em minha página no Facebook, fiz uma pergunta retórica sobre Antônio Gonçalves da Silva (1908-2002), rebatizado, em poesia, como Patativa do Assaré. O rebatismo, aliás, ocorreu, provavelmente em 1928, quando o jornalista José Carvalho de Brito, autor de O Matuto Cearense e o Caboclo do Pará, em matéria para o Correio do Ceará, comparou o estro do poeta ao canto da dita ave. Daí até a publicação da compilação de poemas Inspiração nordestina (1956), passando pela gravação, pelo rei do baião, Luiz Gonzaga, da canção “A Triste Partida” (1964), publicada originalmente em folheto sob o título Pau de Arara do Norte, foi um longo caminho em que pôde burilar seu talento e se reafirmar em vários campos da poesia.

A pergunta em questão – Patativa era ou não cordelista? – tem a ver com a inquietação de muitos de seus leitores, incluindo estudiosos da poesia rotulada como popular. Dos 44 comentários até ontem ( de dezembro), apenas seis pessoas responderam negativamente. E isso num tom respeitoso, apesar das discordâncias pontuais. Mas nem todos afirmaram categoricamente se o poeta de “Ispinho e fulô” era cordelista. Ele próprio, segundo Gerardo Pardal, que afirma ter escutado do mestre, não se reconhecia como tal. Essa informação é corroborada por outras fontes. Carlos Drummond de Andrade escreveu um cordel, “Estória de João-Joana”, inspirado no romance da Donzela Guerreira. Ferreira Gullar escreveu João Boa-Morte, Cabra Marcado para Morrer, Quem matou Aparecida e outros folhetos, por vezes mesclando modalidades distintas, folhetos publicados em 1962 e depois reunidos em uma antologia, Romances de Cordel, em 2010. Até Glauber Rocha ousou escrever um cordel, com métrica e ritmo tatibitates, musicado por Sergio Ricardo, tema de sua obra-prima Deus e o Diabo na Terra do Sol. Isso faz deles cordelistas? Ouso dizer que não. 

O mesmo raciocínio, então, vale para Patativa? Vale. Ocorre que Patativa não escreveu apenas um ou dois cordéis, que passam despercebidos numa obra monumental, como a de Drummond, ou movido talvez por inclinações políticas em um momento de encruzilhada, no caso de Gullar. Patativa tem pelo menos duas dezenas de cordéis publicados, alguns de fôlego, caso de O Padre Henrique e o Dragão da Maldade, denúncia pungente de um assassinato político, na qual não perde a verve matuta, expressa já nos primeiros versos:

Sou um poeta do mato
vivo afastado dos meios
minha rude lira canta
casos bonitos e feios
eu canto meus sentimentos
e os sentimentos alheios.

Sou caboclo nordestino
tenho mão calosa e grossa,
a minha vida tem sido
da choupana para roça,
sou amigo da família
da mais humilde palhoça.

Outro poema de fôlego nesse gênero (ou subgênero) poético é História de Aladim e a Lâmpada Maravilhosa, romance baseado no conto das Mil e Uma Noites, publicado, como boa parte de sua obra, na tipografia São Francisco, de José Bernardo da Silva. Ainda na tradição romanesca, escreveu Abílio e seu Cachorro Jupi e Brosogó, Militão e o Diabo, este último uma adaptação do conto popular do “Diabo Advogado”, corrente em muitos países. Outras criações de Patativa neste campo são: Saudação a Juazeiro do Norte, ABC do Nordeste Flagelado (em décimas), As Façanhas de João Mole, Glosas sobre o Comunismo, além de um interessantíssimo Encontro de Patativa do Assaré com a Alma de Zé Limeira, o Poeta do Absurdo. Compilações de folhetos de sua autoria podem ser encontrados em coletâneas organizadas pelo saudoso professor Gilmar de Carvalho e por Sylvie Debs. 

Embora enveredasse eventualmente pelo cordel e tenha recusado o rótulo de cordelista, para não ser confundido com muitos versejadores que pululavam em seu tempo, Patativa não era um estranho no ninho, com o perdão do quase trocadilho. Verdade que, embora falte em alguns de seus cordéis a verve e a imaginação fulgurante de um José Camelo ou a capacidade imagética de um Delarme Monteiro, supera-os em técnica. Manoel D’Almeida Filho, por outro lado, em anotações encontradas em correspondências enviadas à Editora Luzeiro, considerava fraca sua versão de Aladim. Opinião respeitável, mas que não deslustra a contribuição de Patativa, poeta de altos voos, à poesia bárdica do Nordeste. 


terça-feira, 26 de novembro de 2024

"Eu vou contar a história de um Pavão Misterioso"

"Pavão misterioso". Xilogravura de Lucélia Borges.

Em novembro de 2023, proferi a conferência de abertura do I Congresso de Literatura de Cordel, realizado pela Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. O mote foi um dos capítulos da dissertação de mestrado, defendida este ano na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), enfocando os motivos constituintes da narrativa-modelo que culminaria no Romance do pavão misterioso, o mais famoso de todos os cordéis. Abaixo, o resumo do artigo, publicado na revista Memória e Informação, e um trecho da introdução.

Resumo

Este artigo revisita o mais famoso folheto da literatura de cordel brasileira, O romance do pavão misterioso, sob nova perspectiva. Em vez de debater questões ligadas à verdadeira autoria, discussão praticamente superada, propõe-se a fazer um levantamento dos principais motivos constituintes da história e, a partir daí, a enquadrá-la no catálogo internacional do conto popular – o sistema Aarne-Thompson-Uther (ATU) –, a partir de um estudo comparativo com versões e variantes do conto tipo The Prince’s Wings (ATU 575), classificação com a qual o texto está relacionado.

 Introdução

Em 2001, quando foi montada a expografia “100 Anos de Cordel” no Sesc Pompeia, em São Paulo, a imagem do evento era uma ilustração de autoria do artista plástico pernambucano Jô Oliveira representando uma passagem do célebre cordel O romance do pavão misterioso. A cena retratada mostrava um pavão mecânico sobrevoando o que parecia ser um país árabe, sendo pilotado por um homem com trajes nordestinos, o qual tinha ao lado uma mulher enleada em seus braços. Completava a homenagem, comprobatória da importância do texto, um poema em martelo agalopado, de Klévisson Viana, com o mote “O cordel completou um centenário / viajando nos braços do Pavão”.

Painel principal da mostra 100 anos de Cordel. Arte de Jô Oliveira. 

Em relação à efeméride “fundacional”, não existe consenso. No tocante a O romance do pavão misterioso, escrito por José Camelo de Melo Resende, presumivelmente em 1923, e levado ao prelo com muitas modificações por João Melchíades Ferreira, que assumiu a sua autoria, não resta dúvida: é o grande clássico da literatura de cordel brasileira e o seu maior símbolo.

O relevo da referida obra se confirma de vários modos, incluindo seu reaproveitamento em várias linguagens artísticas, sendo exemplos a música, com o cearense Ednardo, o teatro, o cinema, as artes plásticas e a literatura infantil. Essas e outras adaptações demonstram o vigor de seu inegável apelo emocional e rico arcabouço simbólico.

Do ponto de vista acadêmico, o enredo de O romance do pavão misterioso parece se desenvolver a partir de uma hábil combinação dos motivos integrantes de contos novelescos e maravilhosos, sendo essa a hipótese a ser aqui confirmada.

É nessa perspectiva que o presente artigo revisita este que é o mais famoso folheto da literatura de cordel brasileira, tendo como objetivo apresentar um levantamento dos principais motivos constituintes da história, com o fim de enquadrá-la no catálogo internacional do conto popular, o sistema Aarne-Thompson-Uther (ATU). Para tanto, efetua-se aqui um estudo comparativo entre a referida obra popular e versões e variantes do conto-tipo The Prince’s Wings (ATU 575), classificação com a qual o texto está relacionado.

Fonte: FARIAS, M. H. F. “Eu vou contar a história / De um pavão misterioso”. Memória e Informação, v. 7, n. 2, p. 87-104, 25 nov. 2024.

O pavão misterioso, publicado por Manoel Camilo
dos Santos. Acervo: Fonds Raymond Cantel (3927).
Capa: Xilogravura de Álvaro Barbosa (ABA). 

Para ler o texto na íntegra, clique AQUI


terça-feira, 23 de julho de 2024

10 anos sem Ariano Suassuna


Há 10 anos, a convite da revista Ponto (SESI-SP Editora), escrevi um artigo homenageando Ariano Suassuna, que nos deixou em 2014.É esse artigo, ilustrado pelo mestre da cultura brasileira, Jô Oliveira, que republico hoje. 

Ariano Suassuna e as vozes do povo




A biografia do grande brasileiro Ariano Suassuna, morto a 23 de julho de 2014, está suficientemente espalhada por vários sítios (se eu escrevesse site, ele ficaria bravo) da Internet. Sua obra está ao alcance de todos, em lojas físicas e virtuais. Portanto, nesse espaço, eu me dedicarei mais ao seu legado. Ariano é daqueles autores que não nascem dos convescotes, dos movimentos, dos manifestos que emulam outros manifestos, dos conchavos enfim. Ele é forjado e se forja da matéria viva. Apesar de retrabalhar os arquétipos, seu trabalho talvez diga mais da realidade que a produção pretensamente realista que vemos por aí. Tipos como o preguiçoso, o valentão, o mentiroso, o espertalhão, o padre desonesto, o coronel caricato são — ou eram — encontrados sem muita dificuldade no sertão de carne, pedra e osso.

Às vezes ele parecia deslocado no tempo, e assumia essa condição que, sem demérito, pode ser chamada anacrônica, porém, na verdade, sua obra revela uma impressionante intemporalidade, quando dialoga com Plauto, Boccaccio, Shakespeare, Gil Vicente, Calderón de La Barca, Cervantes, e mostra quão frágeis são as fronteiras estabelecidas da cultura. O episódio do julgamento celeste, ápice do Auto da Compadecida, sua mais celebrada criação, remete aos primórdios da catequese no Brasil, quando os jesuítas recorreram, para facilitar a conversão dos povos indígenas ao catolicismo, às encenações que, não raro, traziam os mesmos personagens da peça de Suassuna. A origem da crença, porém, nos leva mais longe no tempo e no espaço.

Os antigos egípcios acreditavam que, depois da morte, a alma era enviada a um tribunal presidido por Osíris, tendo o irmão e adversário deste, Set, como acusador e Ísis, como intercessora. Anúbis, o deus cinocéfalo, pesava, numa balança, o coração do morto. No catolicismo, essa atribuição caberá a são Miguel Arcanjo. Apesar do toque de mestre de Ariano, as situações e personagens por ele evocados, todos arquetípicos, navegam há milhares de anos nas águas do inconsciente coletivo.

O paraibano Ariano não se amofinou com a tragédia que marcou definitivamente sua vida — o assassinato do pai, João Suassuna, então governador do estado da Paraíba, no espocar da Revolução de 30. Sua família seguiu, então, para Taperoá, no Cariri paraibano, onde ele assistiria aos sete anos uma apresentação do teatro de mamulengos, que seria determinante para a sua futura carreira de dramaturgo. Conviveu ainda com os desafios de viola, na época em que a feiras do Nordeste, espaço de trocas reais e simbólicas, ainda exalavam um forte cheiro de Idade Média, com seus menestréis errantes, charlatães a prometer a cura de muitas moléstias e apresentações de artistas populares. Ele aproveitou, então, seu exílio no sertão para juntar os muitos retalhos da sabença caatingueira, ampliando depois com a contribuição de todas as sabenças, e de uma espantosa erudição que ele, humilde, dizia não possuir, e, disso tudo, fez a colcha com que nos envolveu. E já fixado no Recife, com providencial ajuda de Hermilo Borba Filho, dez anos mais velho, autor de teatro e estudioso das tradições populares, vestiu-se de sol e não mais se despiu nos oitenta e sete anos passados entre nós.


A literatura de cordel

Base de boa parte das peças e de sua mais ousada incursão pela prosa, o Romance da Pedra do Reino e o Sangue do Vai-e-Volta (1971), a literatura de cordel, que Ariano chamava Romanceiro Popular Nordestino, é herdeira direta da gesta medieval, mas suas raízes mais profundas estão na poesia épica de vários povos, com seus heróis e jornadas lendárias. À diferença de Portugal, país que serviu de fonte e ponte para a poesia popular que aportou no Brasil, a literatura de cordel que floresceu principalmente em meados do século XIX, é toda em verso. Na pátria de Camões, as produções podiam ser em prosa ou em verso, sendo, no último caso, preponderantes as quadras setissílabas. Tomemos como exemplo a História de Roberto do Diabo, personagem de uma antiga lenda normanda:

Na província da Normandia
O duque Alberto vivia,
Pelo seu nobre caráter
O povo muito lhe queria.

Precisava de casar-se
Por causa da sucessão
Com esse fim reuniu-se
A nobre corte em Ruão.

No Brasil, a mesma história foi publicada em sextilhas no início do século XX, em versão escrita ou divulgada por Leandro Gomes de Barros (1865-1918), poeta popular paraibano de grande engenho, e que exerceria sobre Ariano profícua influência. Roberto é o filho do duque da Normandia que nasce sob o signo da maldição, renega a origem nobre e passa a liderar um grupo de foras da lei, até o momento em que se redime e busca, a todo o custo, purificar-se. Serviu, no imaginário popular, de modelo para os cangaceiros do Nordeste, impelidos ao crime por fatores complexos que vão da desigualdade social às perseguições e intrigas familiares. Mas falemos de Leandro. São deste poeta alguns dos mais importantes títulos do nosso cordel. De espírito crítico, anticlerical, por vezes libertário, legou-nos várias páginas memoráveis. Um de seus livros mais célebres é a História de João da Cruz, que parece ter origem num romance em versos anônimo, por sua vez inspirado em algum auto religioso. É também um drama de queda e redenção, tingido com as cores do catolicismo popular. Há, no final, o episódio do julgamento celeste, com Jesus como juiz, o Diabo, promotor (ou acusador) e a Virgem Maria como advogada. E por que cito este romance? Por ter ele inspirado a segunda peça composta por Ariano, o Auto de João da Cruz (1949), que seguiu-se a Uma mulher vestida de sol, composta dois anos antes. Na parte final do romance, a alma de João da Cruz, sentindo iminente a condenação, apela para a Virgem Maria, na cena que será recorrente na dramaturgia de Ariano:

A alma vendo o demônio
Querer fazer-lhe penhora
E temendo que chegasse
Aquela maldita hora
Deu um pulo e foi cair
Nos pés de Nossa Senhora.

E disse: oh Virgem Maria
Esposa casta e fiel
Ide também ajudar
O arcanjo São Miguel
Para tirar o furor
Daquele dragão cruel.

Depois do embate verbal entre acusação e defesa, é feita a pesagem da alma por São Miguel, que a absolve. Vencido, o Diabo apela:

Saiu o Diabo aos berros
Com o maior desespero
Exclamando em vozes altas:
Miguel é alcoviteiro
Ah! Maria piedosa!
Ah! João da Cruz estradeiro!

Ariano, no artigo dedicado à presença do Romanceiro Popular do Nordeste na Compadecida, entrega a fonte do Auto de João da Cruz, que, segundo ele, é “inteiramente baseado em três folhetos nordestinos: História de João da CruzHistória do Príncipe do Barro Branco e a Princesa do Reino do Vai não Torna e O Príncipe João Sem Medo e a Princesa da Ilha dos Diamantes.[1] E, para reforçar o valor do gênero que era a base de seu trabalho, ratificava em artigo publicado em 1967 na revista Cultura:

"É todo um cortejo de vasta humanidade que desfila livremente por aí, na força da Literatura coletiva, enquanto a nossa Literatura de salão acadêmica, acanhada,sufocada de preconceitos e de bom gosto, se estiola, sem fôlego, no formalismo e no individualismo. Baste um pormenor para mostrar a diferença: quantas obras não já deixaram de ser escritas por causa da preocupação mesquinha, orgulhosa e estéril da criação individual? O Cantador nordestino não se detém absolutamente diante dessas considerações: apropria-se tranquilamente dos filmes, peças de teatro, notícias de jornal e mesmo dos folhetos dos outros. Que importa o começo se, no final, a obra é sua? Ele,depois de tudo, acrescentou duas ou três cenas, torceu o sentido de três ou quatro outras, de modo que a obra resultante é nova. Não era assim que procediam Molière, Shakespeare, Homero e Cervantes? (...) Os Cantadores procedem do mesmo jeito. Há, mesmo, uma palavra que, entre eles, indica o fato, o verbo versar, que significa colocar em verso a história em prosa do outro. Quando Shakespeare escreveu Romeu e Julieta não fez mais do que versar as crônicas italianas de Luigi da Porto e Bandello".

Sem o cordel, a cantoria, o mamulengo, o maracatu, não haveria as experiências inovadoras de Ariano e Hermilo Borba, e nem afloraria o Movimento Armorial que, na música popular, teve no Quinteto Armorial, e depois em Antônio Nóbrega, que integrava o grupo, a melhor tradução.

Um pícaro no céu


Do desfecho da História de João da Cruz, possivelmente, tenha vindo a inspiração para criação mais famosa de Ariano, o já citado Auto da Compadecida. Em 1952, Ariano escreveu O Castigo da Soberba, que traz o mesmo tema de João da Cruz. Tratava-se, segundo o autor, de um “Entremês popular em um só ato”, baseado no folheto de mesmo nome, escrito pelo cantador Silvino Pirauá de Lima (1848-1913).  

Mas foi num folheto de gracejo que ele encontrou o personagem-símbolo de sua dramaturgia. As Proezas de João Grilo (ver trecho abaixo), história escrita em 1932 por João Ferreira de Lima, trazia como protagonista o célebre amarelinho oriundo dos contos populares portugueses, que, no processo de aculturação, ganhou características idênticas às de outro famoso espertalhão de origem ibérica: Pedro Malazarte. Reaproveitado no Auto da Compadecida, protagonizará o filme produzido em 2000 por Guel Arraes, sendo interpretado por Mateus Nachtergaele e com Selton Melo na pele do farofeiro Chicó.

João Grilo foi um cristão
que nasceu antes do dia,
criou-se sem formosura
mas tinha sabedoria,
e morreu depois da hora
pelas artes que fazia.

(...)

Na noite que João nasceu,
houve um eclipse na lua,
e detonou um vulcão,
que ainda continua.
Naquela noite correu
um lobisomem na rua.

(...)

Entretanto, a Compadecida se baseia em três folhetos distintos, dois deles escritos por Leandro Gomes de Barros, autor recorrente na obra de Ariano. O primeiro é O cavalo que defecava dinheiro, que mostra como um finório consegue lograr um duque invejoso convencendo-o de que um cavalo é realmente capaz de obrar (sem trocadilho) o prodígio do título. Obviamente quem assistiu à peça ou a uma de suas versões para o cinema, sabe que o cavalo foi transmutado num gato, por motivos mais que compreensíveis. O outro poema de Leandro reaproveitado por Suassuna é O dinheiro (O testamento do cachorro), onde aparecem as figuras do padre e do bispo. Para ilustrar, um trecho do folheto, que trata da tentativa de um suborno feita por um inglês, instalado em Pernambuco, no início do século XX, por ocasião da construção da estrada de ferro Great Western, a um padre, para que este dê extrema-unção a um cachorro, além de um enterro decente. Leandro caricaturiza o inglês até na dificuldade deste em lidar com nossa língua:

— Mim que enterrar cachorro!
Disse o Vigário: — Ó inglês,
Você pensa que isto aqui
É o país de vocês?
Disse o inglês: — Com cachorro
Gasto tudo desta vez...

Ele, antes de morrer,
Um testamento aprontou,
Só quatro contos de réis
Para o Vigário deixou...
Antes do inglês findar,
O Vigário suspirou.

— Coitado — disse o Vigário —
De que morreu esse pobre?
Que animal inteligente
E que sentimento nobre!
Antes de partir do mundo,
Fez-me presente do cobre...

Na Compadecida, o inglês é substituído pelo padeiro, que ludibriado por João Grilo, insta com o padre para fazer o enterro. No início reticente, sabedor do testamento do cachorro, o padre muda de opinião muito rápido e, na sua fala, reproduz-se quase integralmente o trecho do folheto:

PADEIRO: — Só para o vigário deixou dez contos.

PADRE: — Que cachorro inteligente! Que sentimento nobre!


JOÃO GRILO: — E um cachorro desse ser comido pelos urubus! É a maior das injustiças.

A autoria de Leandro é inquestionável, embora a origem dos motivos que compõem a história seja mais difícil de rastrear. O próprio Ariano reconhece essa dificuldade quando afirma: — a história do testamento do cachorro, que aparece no Auto da Compadecida, é um conto popular de origem moura e passado, com os árabes, do Norte da África para a Península Ibérica, de onde emigrou para o Nordeste”.[2]

Além destes dois poemas de caráter marcadamente cômico, o Auto propriamente dito — a última parte — tem por base o folheto O Castigo da Soberba, citado anteriormente. A história tem a marcante presença do imaginário medieval que impregna a obra de Gil Vicente, outra evidente fonte de Suassuna. Maria (Nossa Senhora) é a advogada. Jesus o Juiz, e o Diabo o acusador. É a Nossa Senhora — a “advogada nossa” da oração Salve Rainha — que a alma recorre, em vista da iminente condenação. Evocada em nome de seu bendito filho, ela responde à súplica da alma. No final, após ouvir acusação e defesa, Jesus — no folheto também chamado Manuel — decide pela salvação da alma. O Diabo (Cão), vencido, chama os seus comandados. A estrofe abaixo reproduzida, com a última fala do tinhoso, está bem próxima do desfecho do Auto da Compadecida:

Vamos todos nós embora
Que o causo não é o primeiro,
E o pior é que também
Não será o derradeiro...
Home que a mulher domina
Não pode ser justiceiro.

Os três folhetos, diga-se de passagem, foram coligidos por Leonardo Mota no livro Violeiros do Norte.[3] É nesta obra também que aparece o poema farsesco que João Grilo recita no céu, abaixo reproduzido na íntegra:

Valha-me Nossa Senhora,
Mãe de Deus de Nazaré!
A vaca mansa dá leite,
A braba dá quando qué:
A mansa dá sossegada,
A braba levanta o pé...
Já fui barco, fui navio
E hoje sou escale...
Já fui linha de meada,
Hoje sou de carreté...
Já fui menino, sou home,
Só me falta ser muié...
Valha-me Nossa Senhora,
Mãe de Deus de Nazaré!

O autor, segundo Mota, é o cantador baiano Canário Pardo, que foi assassinado por um rival em conquistas amorosas. Indiretamente, este pesquisador cearense, ao reunir as três obras em seu precioso estudo, apontou o caminho que Ariano Suassuna deveria seguir, mesmo apoiando-se em outras tradições populares — especialmente o Bumba-meu-boi, onde os personagens Mateus e Bastião cumprem um papel semelhante ao de João Grilo e Chicó na Compadecida.

Cordel canta Ariano



Os poetas do povo, amigos de Ariano desde sempre, sentiram a sua partida. Klévisson Viana, cearense de Quixeramobim, autor de O pescador arrependido aos pés da Compadecida, romance que evoca a peça de Ariano em suas origens medievais, assim se manifestou:


Ariano Suassuna
Viverá eternamente.
Seu corpo físico perece,
Mas sua obra contundente
Servirá sempre de norte
Para orientar a gente.
 
O mesmo Klévisson, em parceria com o grande poeta baiano Bule-Bule, escreveu e publicou, um dia depois de confirmada a morte do escritor, um folheto que dialoga com a obra do dramaturgo. No enredo de A chegada de Ariano Suassuna no Céu, Jesus precisa escrever uma peça e envia a Morte à Terra para buscar Ariano, mas ela, atrapalhada, vai ao Rio de Janeiro e, por engano, leva o escritor baiano João Ubaldo Ribeiro.

A morte veio ao País
Como turista estrangeiro,
Achando que o Brasil
Era só Rio de Janeiro.
No rastro de Suassuna,
Sobrou pra Ubaldo Ribeiro.

Depois de muitas confusões, a Morte prepara uma homenagem ao escritor, estendendo, à frente dele, uma faixa:

A morte colonizada,
Pensando em lhe agradar,
Uma faixa com uma frase
Ela mandou preparar,
Dizendo: “Welcome Ariano”,
Mas ele não quis entrar.

Vendo a tal faixa, Ariano
Ficou muito revoltado.
Começou a passar mal,
Pediu pra ser internado
E a morte foi lhe seguindo
Para ver o resultado.

Eu não sei se Ariano
Morreu de raiva ou de medo.
Que era contra estrangeirismos,
Isso nunca foi segredo.
Certo é que a morte o matou
Sem lhe tocar com um dedo.

Pedro Monteiro, piauiense, que vive em São Paulo, autor de João Grilo um presepeiro no palácio e de Chicó, o menino das cem mentiras, dedicou ao mestre essa setilha:

A cultura popular
Tem hoje grande lacuna,
A morte sempre inclemente
É uma perversa gatuna,
Fila cristãos e ateus,
Desta vez levou pra Deus
Ariano Suassuna.
 
Paulo de Tarso, cearense de Tauá, mais solene, noticia:

A cultura brasileira
Muito entristecida está.
Faleceu nosso Ariano,
melhor que ele não há.
Por aqui os sentimentos 
Do poeta de Tauá.

O autor deste artigo, Marco Haurélio, dedicou-lhe esta trova:

Ariano não morreu,
Anote no seu caderno.
Jamais morre quem nasceu
Com o dom de ser eterno.

De Calderón de La Barca (1600-1681), poeta e dramaturgo espanhol de grande importância na obra de Ariano, pincei esta décima da peça A vida é sonho, que Ariano, sempre que podia, declamava, estabelecendo a ponte da tradição “culta” ibérica com a poesia “popular” do Nordeste:

Eu sonho que estou aqui
de correntes carregado
e sonhei que noutro estado
mais lisonjeiro me vi.
Que é a vida? Um frenesi.
Que é a vida? Uma ilusão,
uma sombra, uma ficção;
o maior bem é tristonho,
porque toda a vida é sonho
e os sonhos, sonhos são.
 (Tradução: Renata Pallotini)





























E para encerrar com poesia, dediquei-lhe mais uma trova:

Senhora Compadecida,
De incomensurável brilho,
Findo o sonho que é a vida,
Recebei o vosso filho.

A Morte, que Ariano chamava Caetana, referência à onça que também é a Moça Caetana, personagem fantástica que aparece com destaque na História d’O rei degolado nas caatingas do sertão, saiu, aparentemente, vitoriosa do último encontro. Basta, porém, uma olhada na repercussão da notícia que invadiu as redações e as manifestações de pesar, carinho e gratidão para que pensemos ao contrário. Viva Ariano!

Marco Haurélio[4]

Referências bibliográficas

CASCUDO, Luís da Câmara Cascudo. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de janeiro, INL- MEC, 1962.

HAURÉLIO, Marco. Breve história da literatura de cordel. São Paulo: Claridade, 2010.

MOTA, Leonardo. Violeiros do Norte. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1962.

NASCIMENTO. Catálogo do conto popular brasileiro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, IBECC, UNESCO, 2005.

SUASSUNA, Ariano.  Compadecida e o Romanceiro Nordestino. In: Literatura popular em verso: estudos. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986.

_____________. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 1976.

_____________. Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, Rio de Janeiro, José Olympio, 5.ª edição, 2004



[1] Compadecida e o Romanceiro Nordestino. In: Literatura popular em verso: estudos. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986.

[2] Idem, ibidem. A origem árabe e a difusão via Península Ibérica, de que fala Ariano, devem ser vistas com ressalvas. Segundo José Joaquim Dias Marques, da Universidade do Algarve, Portugal, este conto existe em muitos outros países, nomeadamente da Europa, e, por isso é arriscado pressupor que ele chegou à Península Ibérica através dos árabes. Ele está inclusive documentado já num fabliau francês do século XIII. E, embora haja versões por toda a Europa, não parecer ter sido registrado em Portugal. No Catálogo Internacional do Conto Popular, o Sistema ATU (sigla que homenageia os formuladores do catálogo, Anti Aarne, Stith Thompson e Hans-Jörg Uther), a história aparece sob o número 1842 (The testament of the dog).

[3] Ver “No reino da picardia”, capítulo do livro Breve história da Literatura de Cordel, em que se baseia esta seção.

[4] Baiano de Riacho de Santana, poeta (cordelista), ensaísta e pesquisador da cultura popular brasileira. Autor de Presepadas de Chicó e astúcias de João Grilo (Luzeiro), Meus romances de cordel (Global), Contos e fábulas do Brasil (Nova Alexandria) e A lenda do Batatão (SESI-SP Editora)