por: Marco Haurélio
Entre abril e maio de 2001, uma mostra no SESC Pompeia, em São Paulo, com curadoria do escritor Audálio Dantas, celebrou os cem anos da Literatura de Cordel brasileira. Poetas, ilustradores, editores e repentistas se revezaram em apresentações, exposições e oficinas. Tudo certo, não fosse um detalhe: a literatura de cordel brasileira, em 2001, certamente já havia ultrapassado um século de existência. O que, evidentemente, não ofuscou o brilho do evento, nem diminuiu a importância da iniciativa. A dificuldade em se apontar o marco inicial se deve em parte à escassez de referência bibliográfica do período. Sílvio Romero, pioneiro dos estudos etnográficos e historiador literário, já fazia uso do termo “literatura de cordel" em Estudos sobre a poesia popular, de 1885. Por outro lado, Romero não destaca nenhum poeta em particular, o que leva a crer que estas publicações incipientes ainda não haviam atingido o padrão que imortalizaria o gênero na memória popular e na cultura brasileira.
O grande pioneiro
A travessia fatalmente seria feita. E, num Nordeste com forte cheiro de Idade Média, dominado pelo misticismo e por crenças impregnadas do atavismo da gesta carolíngia, o povo teve em Leandro Gomes de Barros, paraibano radicado no velho Recife, seu grande menestrel. Leandro começou a escrever por volta de 1893, e não parou mais. São dele alguns dos maiores clássicos do gênero: Juvenal e o dragão, O Cachorro dos Mortos, História da Donzela Teodora etc. A partir da gesta de Carlos Magno e dos Doze Pares de França, Leandro escreveu A Batalha de Oliveiros com Ferrabrás e A Prisão de Oliveiros. Obras que já ultrapassaram com folga a casa dos milhões de exemplares vendidos, e são reeditadas há mais de cem anos, ininterruptamente.
Alicerçada na tradição oral, a História do Boi Misterioso, de Leandro Gomes de Barros, é um dos romances fundadores da literatura de cordel brasileira. |
Mário de Andrade se inspirou em um cordel satírico de Leandro, A Vida de Cancão de Fogo e o seu Testamento, na estruturação da personagem compósita Macunaíma, que batiza uma das obras basilares da literatura brasileira. A esse respeito depõe o criador de Pauliceia Desvairada:
Um Leandro, um Athayde nordestinos, compram no primeiro sebo uma gramática, uma geografia, ou um jornal do dia, compõem com isso um jornal de sabença, ou um romance trágico de amor, vivido no Recife. Isso é o Macunaíma e esses sou eu.
O Athayde a quem se refere Mário de Andrade é o poeta e editor João Martins de Athayde, autor de História do Valente Vilela, romance sobre um cangaceiro perverso que um dia deixa a vida de crimes para se dedicar à ascese purificadora, tornando-se um místico. A história traz elementos da tenebrosa lenda medieval de Roberto do Diabo. O cangaceiro Vilela, personagem sem autenticação da história, arquétipo cristão de culpa e redenção, reaparecerá transfigurado em A Hora e a Vez de Augusto Matraga, um dos contos antológicos de Sagarana, de Guimarães Rosa.
Clássicos do cordel
Com Leandro Gomes de Barros surgiu, também, a figura do editor de cordel que escrevia, publicava e distribuía a sua produção. Com a morte de Leandro, Athayde adquiriu junto à viúva do grande poeta, D. Venustiniana, os direitos de publicação de boa parte de sua obra. Essa iniciativa foi em parte benéfica para o cordel, porque Athayde, a partir do Recife, profissionalizou a distribuição dos folhetos, adquiriu outras obras e, indiretamente, gerou dezenas de empregos, através dos muitos revendedores e agentes espalhados por feiras, mercados e pontos estratégicos, como estações de trem e portas de igrejas. Por outro lado, o editor Athayde simplesmente ignorava a autoria dos folhetos de cordel de sua propriedade e assinava todos em seu nome, inclusive os de Leandro. Essa atitude questionável dificultou a futuros pesquisadores a identificação da autoria de vários poetas.
No rastro de Athayde e Leandro surgiram outros poetas, como Francisco Sales Areda (1916-1995), autor de O Homem da Vaca e o Poder da Fortuna, folheto de grande sucesso que chamou a atenção do teatrólogo Ariano Suassuna, que o adaptou para o teatro. Areda é autor, ainda, d’O romance de João Besta e a Jia da Lagoa. Neste folheto, o autor definiu o papel do poeta popular, dando a entender que ele é, também, garimpeiro do inconsciente coletivo:
O poeta é um repórter
Das ocultas tradições, Revelador de segredos,
Guiado por gênios bons,
Pintor dos dramas poéticos
Em todas composições.
Contudo, foi num folheto de gracejo que Suassuna encontrou o personagem-símbolo de sua dramaturgia. As Proezas de João Grilo (ver trecho abaixo), estória escrita em 1932 por João Ferreira de Lima, trazia como protagonista o célebre amarelinho oriundo dos contos populares portugueses, que, no processo de aculturação, ganhou características idênticas às de outro famoso espertalhão de origem ibérica: Pedro Malazarte. Esse mesmo João Grilo será reaproveitado no Auto da Compadecida, transformado em filme em 2000 por Guel Arraes, com Mateus Nachtergaele (João Grilo) e Selton Melo (Chicó) nos papéis principais.
João Grilo foi um cristão
que nasceu antes do dia, criou-se sem formosura
mas tinha sabedoria,
e morreu depois da hora
pelas artes que fazia.
(...)
Na noite que João nasceu,
houve um eclipse na lua,
e detonou um vulcão,
que ainda continua.
Naquela noite correu
um lobisomem na rua.
(...)
Entretanto, a Compadecida se baseia em três folhetos distintos, dois deles escritos por Leandro. O primeiro é O Cavalo que Defecava Dinheiro, que mostra como um finório consegue lograr um duque invejoso convencendo-o de que um cavalo é realmente capaz de obrar (sem trocadilho) o prodígio do título. Obviamente quem assistiu à peça ou à uma de suas versões para o cinema, sabe que o cavalo foi transmutado num gato, por motivos mais que compreensíveis. O outro poema de Leandro reaproveitado por Suassuna é O Dinheiro (O Testamento do Cachorro), onde aparecem as figuras do padre e do bispo. A autoria de Leandro é inquestionável, embora a origem dos motivos que compõem a estória seja mais difícil de rastrear. O próprio Ariano reconhece essa dificuldade quando afirma: “- a história do testamento do cachorro, que aparece no Auto da Compadecida, é um conto popular de origem moura e passado, com os árabes, do Norte da África para a Península Ibérica, de onde emigrou para o Nordeste”.
Além destes dois poemas de caráter marcadamente cômico, o Auto propriamente dito – a última parte – tem por base o folheto O Castigo da Soberba, de autoria desconhecida. A estória tem a marcante presença do imaginário medieval que impregna a obra de Gil Vicente, outra evidente fonte de Suassuna. Maria (Nossa Senhora) é a advogada. Jesus o Juiz, e o Diabo o acusador. É a Nossa Senhora – a “advogada nossa” da oração Salve Rainha – que a alma recorre, em vista da iminente condenação. Evocada em nome de seu bendito filho, ela responde à súplica da alma. No final, após ouvir acusação e defesa, Jesus – no folheto também chamado Manuel – decide pela salvação da alma. O Diabo (Cão), vencido, chama os seus comandados. A estrofe abaixo reproduzida, com a última fala do tinhoso, está bem próxima do desfecho do Auto da Compadecida:
Vamos todos nós embora
Que o causo não é o primeiro, E o pior é que também
Não será o derradeiro...
Home que a mulher domina
Não pode ser justiceiro.
Os três folhetos, diga-se de passagem, foram coligidos por Leonardo Mota no livro Violeiros do Norte. Indiretamente, este pesquisador cearense, ao reunir as três obras em seu precioso estudo, apontou o caminho que Ariano Suassuna deveria seguir, mesmo apoiando-se em outras tradições populares – especialmente o Bumba-meu-boi, onde os personagens Mateus e Bastião cumprem um papel semelhante ao de João Grilo e Chicó na Compadecida.
João Grilo marcou presença em outros folhetos de cordel, com destaque para O Professor Sabe-Tudo e as Respostas de João Grilo (de Klévisson Viana), A Professora Indecente e as Respostas de João Grilo (de Arievaldo Viana) e Presepadas de Chicó e Astúcias de João Grilo (de Marco Haurélio). O sucesso do Auto da Compadecida no cinema parece ter motivado o diretor Moacyr Góes a filmar O Homem que desafiou o Diabo (2007), baseado no livro As Pelejas de Ojuara, de Nei Leandro de Castro, que, por sua vez, parte de folhetos de cordel do ciclo do Demônio Logrado.
Ilustre precursor
Na época em que Antônio de Castro Alves (1847-1871) pontificava, a poesia popular efervescia nos sertões. A dicotomia erudito/popular, ensina-nos Edilene Matos, da PUC – São Paulo, “foi forjada, a rigor, em plena modernidade”. Na obra do poeta baiano, arauto maior do nosso romantismo, é possível vislumbrar elementos das cantigas sertanejas, ora dolentes, ora jocosas, mas sempre saborosas. “A Canção do Violeiro”, que traz como mote os dois últimos versos, lembra os lampejos geniais dos repentistas de prestígio do Nordeste. O estilo pouco lembra a grandiloqüência de poemas como “O Navio Negreiro” ou “O Século”. O final, que revela a realidade do violeiro, remete ao cancioneiro caipira, também originário da mesma matriz da Literatura de Cordel.
Não quero mais esta vida,
Não quero mais esta terra. Vou procurá-la bem longe, Lá para as bandas da serra. Ai! triste que eu sou escravo! Que vale ter coração? Chora, chora na viola, Violeiro do sertão.
Com esquema rímico diferente do utilizado pelos cordelistas, Castro Alves compôs algumas das mais belas sextilhas da língua portuguesa. Para comprovar basta a introdução de “Virgem dos Últimos Amores”, semelhante às quadras populares que começam com o mote “por detrás daquela serra”.
A morte espera a manhã!
É a morte do guerreiro,
Do bravo que não recua!...
Geme ao longe a mãe-da-lua,
Responde perto a cauã...
Pois bem, com a introdução da sextilha heptassílaba na cantoria, por Silvino Pirauá de Lima (1848-1913), a poesia da última fase do romantismo – em que se destacou também o sergipano Tobias Barreto – forneceu sobejos motivos ao cordel e à cantoria. Outros gêneros poéticos, como a décima, também eram utilizados, às vezes, como paródia. Francisco das Chagas Batista, outro representante do cordel em seus primórdios, partindo do poema “O Livro e a América”, escreveu O Ébrio em homenagem ao seu confrade Leandro Gomes de Barros, um grande amigo do copo:
Talhado p’ras bacanais,
Pra beber, tombar, cair, O embriagado, no crânio,
Sente a razão se extinguir...
Empresário das orgias –
Cansado de outras folias,
O beberrão disse já:
Vai, caixeiro, abre a torneira
Da pipa mais sobranceira,
E tira vinho de lá.
O ano de publicação do referido folheto, 1910, chama a atenção. Sem dúvida, traz no bojo ideias que se tornariam lugar comum com o movimento modernista, a partir de 1922, como o reaproveitamento, por Oswald de Andrade, a guisa de paródias, de textos fundamentais da brasilidade, como a Carta de Caminha e a “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias. Assim, justifica-se a admiração que Mário de Andrade, um dos cabeças do movimento, nutria pelos “rapsodos” nordestinos. Jorge de Lima, nome maiúsculo de nossas letras, não se fez de rogado e registrou, em sextilhas de cordel, o legado do vate baiano. O folheto Castro Alves – Vidinha é de 1952.
Senhores, peço licença
Para agora recordar Um poeta e sua vida
E seu modo de lutar,
E seu amor infeliz
E sua glória sem par.
Com mais propriedade, o poeta popular José Camelo de Melo Resende deixou esta invocação, um dos pontos altos de sua obra:
Levantai-vos, Castro Alves
Do túmulo onde dormis, Vinde já nesse momento,
Com vossa lira feliz,
Permutar as Vozes d’África
Pelas de vosso país.
Nas asas do Pavão Misterioso
O Romance do Pavão Misterioso, escrito por José Camelo de Melo Rezende, em 1923, é o mais famoso folheto de cordel de todos os tempos. Conta uma história aparentemente despretensiosa, mas de grande apelo popular. Tem raízes nos contos das Mil e uma Noites. A história inspirou a canção-tema da novela Saramandaia, composta por Ednardo. A novela, escrita por Alfredo Dias Gomes e exibida pela rede Globo em 1977, alavancou as vendas do folheto. A editora de cordéis Luzeiro, de São Paulo, que publica o Pavão Misterioso desde 1970, vendeu mais de 50 mil exemplares desta obra, no ano em que Saramandaia foi ao ar.
Eu vou contar uma história
De um pavão misterioso Que levantou vôo na Grécia
Com um rapaz corajoso,
Raptando uma condessa
Filha de um conde orgulhoso.
(...)
Dias Gomes também se valeu da popularidade alcançada pelo cordel nas camadas populares em outras obras. Na premiada peça O Pagador de Promessas, o personagem Dedé Cospe-Rimas foi inspirado em Cuíca de Santo Amaro – José Gomes –, cordelista famoso tanto pelos versos ruins que criava quanto pelas encrencas em que se metia, quando vendia seus folhetos pelas ruas de Salvador. Cuíca chamou a atenção de outros escritores, como o conterrâneo Jorge Amado e Orígenes Lessa, estudioso do tema e autor de um dos estudos mais consistentes sobre a poesia popular, Getúlio Vargas na Literatura de Cordel. Foi Lessa quem classificou Cuíca como o “Macunaíma da poesia popular”, referindo-se à prática do poeta de escrever folhetos escandalosos para depois tentar arrancar algum dinheiro do “biografado”. Cuíca fustigou a corrupta elite política soteropolitana de sua época. Trajado de fraque, cartola e com um megafone na mão, tornou-se figura folclórica. Embora discutíveis do ponto de vista ético, suas atitudes não passaram despercebidas e, passados mais de 40 anos de sua morte, ainda suscita discussões e pesquisas no meio acadêmico.
Desdobramentos
Outros autores recorreram à poesia popular: Ferreira Gullar, em João Boa-Morte Cabra Marcado para Morrer; João Cabral de Melo Neto, especialmente no auto Morte e Vida Severina; Cecília Meireles (Romanceiro da Inconfidência), etc. Nas artes plásticas, xilogravuristas como Samico e Ciro Fernandes lançam um olhar erudito sobre a arte popular, como preconizava o Movimento Armorial, idealizado por Ariano Suassuna. O mesmo fizeram artistas da música popular como Antônio Nóbrega, Siba, Gilberto Gil, Tom Zé, Ednardo, Luiz Gonzaga, João do Vale, Raul Seixas, Xangai, Alceu Valença, Elomar, Vital Farias e Lirinha (Cordel do Fogo Encantado), Zé Ramalho e Morais Moreira. Sem esquecer Paulo Vanzolini, compositor de "Ronda" e "Volta por Cima", que, à maneira dos desafios poéticos do Nordeste, compôs esta sextilha jocosa registrada pelo jornalista Assis Ângelo:
Eu sou Paulo Vanzolini
Animal de muita fama Eu tanto corro no seco
Como na vargem de lama
Mas quando o marido chega
Me escondo embaixo da cama.
Beatos e cangaceiros
Glauber Rocha foi outro nome que buscou uma na gesta sertaneja uma linguagem próxima ao cordel para retratar, em imagens contundentes, o Nordeste místico e sangrento. Principalmente em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969), o cineasta baiano pôde apresentar sua visão incomum da arte e da vida. Inspirado nos versos populares, compôs o cordel temático, que ganhou música de Sérgio Ricardo. Os personagens do filme são baseados em figuras reais, mas com forte carga simbólica, como o santo Sebastião, calcado em Antônio Conselheiro. Corisco, personagem de Othon Bastos, é, ao mesmo tempo, o cangaceiro lendário do bando de Lampião e a personificação do bem e do mal, o ideal de justiça da “terra do sol”.
Lampião, Antônio Conselheiro, Padre Cícero e Frei Damião são outros personagens da mitologia nordestina que mereceram inúmeras biografias em cordel. Os Cabras de Lampião, de Manoel D’Almeida Filho, é considerada a melhor biografia em versos do famoso bandoleiro das caatingas. Do mesmo autor, outro best-seller dos sertões é Padre Cícero, o Santo do Juazeiro, sobre o famoso taumaturgo cearense. Antônio Conselheiro, o Guerreiro de Canudos, de Rodolfo Coelho Cavalcante, transporta para o cordel a epopeia da “Troia de taipa”, que foi magistralmente retratada por Euclides da Cunha na obra-prima Os Sertões. Todos os exemplos citados partem dos fatos relacionados à vida controversa destas figuras históricas. Não é o caso de folhetos como A Chegada de Lampião no Inferno, de José Pacheco, que retrata o cangaceiro aplicando um corretivo nos anjos caídos, após a sua morte na emboscada de Angicos, Sergipe, em 1938. Glauber se serviu dos versos de Pacheco (veja abaixo as estrofes iniciais) para ilustrar O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro.
Um cabra de Lampião,
Por nome Pilão-Deitado, Que morreu numa trincheira
Um certo tempo passado,
Agora pelo sertão
Anda correndo visão,
Fazendo mal assombrado.
E foi quem trouxe a notícia
Que viu Lampião chegar.
O Inferno, nesse dia,
Faltou pouco pra virar –
Incendiou-se o mercado,
Morreu tanto cão queimado,
Que faz pena até contar!
O poeta cearense Moreira de Acopiara, coordenador do já tradicional Cordel na Cortez – evento que acontece em agosto na Livraria Cortez, em Perdizes – reuniu Lampião e Padre Cícero num Debate Inteligente, num folheto revisionista. Mas na “Divina Comédia do Cordel” há ainda outras obras de fôlego e tradição: A Chegada Lampião no Céu (de Rodolfo Coelho), e A Chegada de Lampião no Purgatório (de Luiz Gonzaga de Lima). Varneci Nascimento, poeta baiano da nova geração, promoveu O Encontro de Lampião com Frei Damião no Céu.
Do popular ao erudito, e vice versa
Carlos Drummond de Andrade era um grande entusiasta do cordel e admirador confesso de Leandro Gomes de Barros, a quem considerava “rei da poesia do sertão e do Brasil em estado puro”... Drummond também experimentou os versos ágeis do cordel nordestino no insosso poema A Estória de João-Joana, musicado pelo especialista Sérgio Ricardo. O mesmo motivo – a moça que se traveste de homem – serviu ao poeta popular Manoel d’Almeida Filho em O Vaqueiro que Virou Mulher e deu à Luz. A inspiração de ambos parece ser o romance da Donzela Guerreira, motivo universalmente difundido, base para a composição de Diadorim, personagem de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa.
Ora, se os autores eruditos bebem na fonte popular, o inverso também ocorre, e em escala bem maior. João Martins de Athayde verteu para o cordel clássicos da literatura como Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco, O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, recriado com o título Romance de um Sentenciado.
José Camelo de Melo Resende utilizou o arcabouço dramático de El Cid para compor Entre o Amor e a Espada. Rodolfo Coelho recriou Tereza Batista Cansada de Guerra com um enfoque moralista, diferente do romance de Jorge Amado. Mais fiel ao original foi Manoel D’Almeida Filho ao adaptar Gabriela Cravo e Canela, que mescla o romance à telenovela estrelada por Sônia Braga em 1976. Mais recentemente, Zé Maria de Fortaleza cordelizou Capitães de Areia, em versão resumida.
Cordel na estante
Depois da Biblioteca de Cordel da editora Hedra, outras iniciativas do meio editorial mostram que o cordel no século XXI, revigorado, alça novos vôos. Costa Senna, músico e poeta cearense, recontou seus passos na vida e na arte na antologia Caminhos Diversos: Sob os Signos do Cordel (Global, 2008). Valdeck de Garanhuns, poeta e mamulengueiro, recontou os Mitos e Lendas Brasileiros em Prosa e Verso (Moderna, 2007). Arievaldo Viana, cearense criador do projeto Acorda Cordel na Sala de Aula, em parceria com o ilustrador Jô Oliveira, lançou pela Cortez A Ambição de Macbeth e A Maldade Feminina, impressionante versão do drama de William Shakespeare. Klévisson Viana, seu irmão, trouxe para o cordel o Dom Quixote, de Cervantes, em edição luxuosa mas que mantém a essência da poesia popular. Diretor da Tupynaquim, editora de Fortaleza, Klévisson é também autor de uma memorável adaptação de Os Miseráveis, de Victor Hugo, lançado pela editora paulistana Nova Alexandria, como volume inaugural da Coleção Clássicos em Cordel. O Corcunda de Notre-Dame, outro clássico de Hugo, ganhou uma versão nordestina em recriação do poeta João Gomes de Sá, que transformou o célebre Quasímodo em Quasimudo, destacando a dificuldade de comunicação do protagonista. Para a mesma coleção foram adaptados dois clássicos de Machado de Assis: O Alienista (de Rouxinol do Rinaré) e Memórias Póstumas de Brás Cubas (de Varneci Nascimento). Homenagem inusitada que marcou o centenário de morte do grande escritor.
Marco Haurélio, baiano de Riacho de Santana, é poeta popular e folclorista. Formado em Letras pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), é autor de Presepadas de Chicó e Astúcias de João Grilo, História da Moura Torta, Os Três Conselhos Sagrados, O Príncipe que Via Defeito em Tudo e A Megera Domada. É autor, também, de Contos Folclóricos Brasileiros. Profere palestras e ministra oficinas temáticas sobre cordel e folclore.
Nota: este artigo foi publicado, com um outro título, na revista Discutindo Literatura, n. 19, edição de agosto de 2008 (capa).
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