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No tempo dos encantos: capa e ilustrações de Luciano Tasso |
E eis que, enfim, podemos divulgar No tempo dos encantos (Florear Livros), reunião de narrativas tradicionais recolhidas por mim e por Rogério Soares, professor da Universidade do Estado da Bahia. O título do livro, conforme explicado no texto abaixo, extraído no Prefácio, foi "fornecido" por um dos narradores. Como acaso não existe, Rogério e eu resolvemos juntar as forças, chegamos à conclusão de que a expressão, mais do que um título, era a síntese perfeita da arte de contar histórias e de sua imaterialidade e atemporalidade.
"As
velhas narrativas, contadas desde os tempos imemoriais, são definidas por
literatos, folcloristas, etnógrafos e antropólogos como contos de fadas, contos
populares, contos tradicionais ou contos folclóricos. Charles Perrault, em
1697, intitulou a pequena, mas valiosa coleção que legou à posteridade Histoires
ou Contes du Temps Passé, avec des Moralités (História do tempo
passado com moralidades). Essas denominações, contudo, são invenções de
estudiosos ou literatos. O povo, que detém e preserva essas histórias, as
designa de modos variados, mas quase nunca da maneira que aparecem estampadas
nas capas dos livros. As formas mais comuns de se referir a elas, segundo os
narradores que entrevistamos são: histórias do tempo em que os animais
falavam (para os contos de animais), conversa comprida, história
pra boi dormir, histórias da boca da noite ou histórias
de velhos, contos da Carochinha ou histórias de
Trancoso, este último o designativo preferido de Mestre Aldenir do Reisado.
O folclorista estadunidense Stith Thompson (The folktale, 1946, p, 272),
afirma que um termo usado com frequência para se referir, na Grécia Antiga e em
Roma, às narrativas de fadas e monstros, era: “histórias de velhinhas”.
Confirma assim o que outros folcloristas também observaram: os mais velhos e
entre eles as mulheres são as maiores e melhores narradoras de contos
tradicionais.
Os
termos consagrados pela tradição coincidem ora com os espaços geográficos do
maravilhoso, ora com os tipos comuns de narradores detentores dos saberes
tradicionais, ora com a extensão da história, ora estão associados aos
ambientes em que essas narrativas fluem, ou ainda com o horário propício para a
performance. “Noventa por cento das estórias”, escreveu Luís da Câmara Cascudo,
“são narradas durante as primeiras horas da noite. Não apenas se explicará a
escolha desse horário pelo final da tarefa diária, como igualmente por ser
indispensável a atmosfera de tranquilidade e de sossego espiritual para a
evocação e atenção do auditório” (2006, p. 249). Os narradores presentes nesta
recolha reiteram as palavras do mestre potiguar.
Atentos
aos termos populares, tomamos de uma expressão dita no prólogo do conto O
filho do pescador o título de nosso livro. “Essa história se passou no
tempo dos encantos”, pontuou Clóvis Barbosa Bomfim, recuperando a dimensão
mítica subjacente ao conto maravilhoso e resumida na expressão latina in
illo tempore (naquele tempo). O modo com o qual ele inicia as
narrativas equivale às formas consagradas pela tradição de introdução dos
contos nos moldes do “era uma vez”.
Ao
final do livro, elaboramos notas que indicam contos equivalentes em outras
coletâneas ou mesmo reminiscências míticas. São esses intertextos, esses
entrelaces, que justificam o título No tempo dos encantos,
expressão que ouvimos da boca do senhor Clóvis, como preâmbulo ao conto O
filho do pescador, um dos mais belos exemplares desta coletânea. Encanto,
aqui, não é sinônimo de fascínio, mas de encantamento, maravilha (mirabilia),
e sobre esse tempo, em tom lamentoso, escreveu Voltaire, em 1763, ao final do
poema Ce Qui Plaît Aux Dames:
Feliz aquele tempo fabuloso
Dos bons demônios e dos deuses lares,
Dos trasgos e duendes familiares!
Esses contos ouvíamos com gozo,
Em casa, à noite, junto do fogão:
O pai, o tio, o avô, a mãe, a filha,
Os vizinhos e os membros da família,
Davam ouvidos ao mestre capelão,
Que relatava histórias encantadas...
Banimos o demônio, como as fadas,
Sob a razão, as graças abafadas
Enchem-nos de fastio. O pensador
Em si mesmo acredita tristemente:
Em busca da verdade corre a gente...
O erro, pensando bem, tem seu valor.
Os seres mágicos não foram banidos, como imaginava
Voltaire; o Século das Luzes os eclipsou, mas, na centúria seguinte, saíram de
seus esconderijos ou foram deles içados pela onda que varreu a Europa
primeiramente, a partir da aventura dos Irmãos Grimm, alcançando depois outras
paragens, como Itália, França, Romênia, Portugal, Inglaterra e Brasil, onde
Sílvio Romero lançou as bases para o edifício da coleta folclórica, ainda que
movido pelos preconceitos ditados pelo espírito de seu tempo.
Optamos, no tocante à organização do trabalho, pela
divisão em seções, seguindo a classificação proposta por Antti Aarne e
aprimorada, em épocas distintas, por Stith Thompson e Han Jorg Uther. Assim
sendo os contos estampados neste livros estão divididos em:
CONTOS
DE ANIMAIS – Equivalentes às antigas fábulas
(Esopo, Panchatantra, Calila e Dimna, Fedro) e às
“modernas” (Florian, La Fontaine), engloba ciclos
prestigiados, como de Renart (ou Reynard), o Raposo. Animal tales.
No Brasil, o grande impulso pioneiro se deu com a publicação em inglês de Amazonian
tortoise myths (Mitos amazônicos da tartaruga), por Charles Frederick
Hartt, geólogo canadense, no Rio de Janeiro, em 1875. Além da presença
indígena, e africana criadora ou modificadora, os contos desta seção provém da
Antiguidade, viajando por desertos e savanas, estepes e florestas densas,
encontrando acolhida em todos os quadrantes. O chacal ou a hiena dos contos
africanos é a onça na contraparte brasileira (Tío Tigre, rival do Tío Conejo
nos países de fala espanhola das Américas). O coelho, animal comum a todos os
ecossistemas, variando as espécies, ao lado do macaco, e, eventualmente do
jabuti do ensaio de Hartt, é o trickster do reino animal,
invencível graças à astúcia.
CONTOS
MARAVILHOSOS – São os Mäarchen germânicos, Tales
of Magic, contos de encantamento, os quais Teófilo Braga, sob influxo da
Escola Mitológica de Folclore, com Max Müller à frente, classificava como Contos
míticos da Aurora, do Sol e da Noite. Abarca os contos de fadas, os temas
originários do Oriente; as histórias envolvem adversários sobrenaturais,
auxiliares mágicos, príncipes e princesas encantadas, jornadas ao Reinos dos
Confins, na acepção de Vladimir Propp, a própria jornada heroica, do esquema
criado por Joseph Campbell, calcada em ritos iniciáticos de muitos povos e
quadrantes.
CONTOS
RELIGIOSOS – Religious tales, narrativas
pias, lendas douradas, contos etiológicos; difere do conto maravilhoso, entre
muitos motivos, pela presença de personagens divinas caminhando entre os
humanos, recompensando e punindo, explicando a origens de instituições,
costumes e características animais e botânicas.
CONTOS
NOVELESCOS – Realistic tales (contos realistas), aparentados das novelas
italianas medievais, engloba, ainda, conto com reminiscência mitológicas,
aproximando-se, às vezes, dos contos maravilhosos, especialmente em suas duas
primeiras subdivisões dedicadas às conquistas matrimoniais de príncipes e
princesas, e aos contos de destino e profecias funestas, cumpridas ou evitadas.
CONTO DO OGRO (ou DIABO) ESTÚPIDO – Não há conto brasileiro que nomeie ogro (ou ogre) o
adversário sobrenatural do herói ladino (Pedro Malazarte, no Brasil e em
Portugal, variando em Malasartes), sendo este substituído por um rei ou, mais
comumente por um fazendeiro, e, raramente, por um gigante. Ecoando antigos
pactos entre homens e entidades, deuses menores ou subterrâneos, traz o ogro e
o Diabo como adversários que devem ser, ao final, fatalmente, derrotados.
FACÉCIAS E ANEDOTAS – Anedoctes and jokes, contos humorísticos abrangendo: religiosos
glutões ou devassos, intrigas de casais, toleirões e sabichões, burlas e
patranhas, enfim, todos os tipos alcançáveis pelo chicote da sátira.
CONTOS DE FÓRMULA – Seção que abrange os Cumulative
tales (contos acumulativos), além de outros tipos menos específicos.
NARRATIVAS LENDÁRIAS – Seção não alcançada pelo Sistema ATU, criada para
enquadrar narrativas com arcabouço mítico-lendário, a despeito de,
ocasionalmente, se aproximarem do causo.
***
Marie-Louise
von Franz escreveu, certa vez, que os “contos de fadas são a expressão mais
pura dos processos psíquicos do inconsciente coletivo”. Por espelharem as
estruturas básicas da psique, segundo ela, os contos, mais do que os mitos e as
lendas, servem para compreendermo-nos melhor “com base em nossa própria
experiência psicológica e a partir de estudos comparativos, trazendo à luz toda
a rede de associação às quais as imagens arquetípicas estão interligadas
exatamente como aparecem”.
De
nossa parte, desejamos apenas, e isso já será muito, que esses contos, ouvidos,
colhidos da boca do povo, à boca da noite algumas vezes, possam, materializados
em um livro, chegar às estantes, às escolas, às feiras literárias, às rodas de
contadores, e continuem vivos no processo dinâmico que dá sentido ao ditado 'quem conta um conto aumenta um ponto'."
Para adquirir a obra, vá ao site da Florear Livros ou à Amazon.
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