segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Cordel Atemporal entrevista: Antônio Barreto


Uma conversa puxa outra e um bate-papo disfarçado de entrevista traz à tona um pouco da alma sensível do poeta, que é também professor. Por vezes lírico, outras tantas satírico, esotérico ainda, Antônio Barreto desponta como uma das grandes vozes do cordel em Salvador, na Bahia. Natural de Santa Bárbara, o poeta faz questão de destacar a origem sertaneja, talvez para explicar a simbiose de sua poesia ao mesmo tempo cósmica e telúrica.Com vocês, Antônio Barreto:

Quem é Antônio Barreto, natural de Santa Bárbara, que tem dado tanto o que falar na literatura de cordel?

“Se quiser me conhecer
Nem precisa perguntar
Eu sou Antonio Barreto
Santa Bárbara é meu lugar
Sou substantivo, próprio
Masculino, singular...”

Marco Haurélio, meu nobre poeta, que bom ser entrevistado por você! Veja, essa primeira pergunta não deixa de ser desafiante, digo isso porque um sertanejo vindo da zona rural, nascido sob o signo de câncer, homem dotado de sensibilidade e simplicidade jamais conseguiria se auto-definir. Até porque há uma janela aberta no meu coração com uma seta verde apontando-me o vale da reencarnação. A vida é puro mistério. O universo às vezes nos empurra, nos impõe – apenas obedecemos. Chego a pensar que estou cumprindo uma missão pré-estabelecida de algumas eras. E assim eu vou me aperfeiçoando para um dia, quem sabe, compreender melhor essa misteriosa odisséia aqui no Planeta Azul. Por enquanto, vou dizendo:

Sou do seio das caatingas
Lá das bandas do sertão
Carrego na veia a essência
Dos acordes do azulão...
Do assum preto, o sustenido
Da cigarra, o alarido
Da coruja, a solidão.

Sou o Pajé lá da floresta
O Xamã buscando a cura
De toda ferida aberta
Da mais profunda loucura
Sonho eterno de menino
Eu sou o badalar do sino 
E o doce da rapadura.

Eu sou o arrebol primeiro
Com a corneta da alegria
Convocando a passarada
A mais uma sinfonia
Sou também o entardecer
E o escarlate-morrer
Vestido de poesia.

Santa Bárbara, berço do poeta

Como o cordel entrou em sua vida?

Não sei precisar. Recordo-me que, ainda menino, vivendo na Fazenda Boa Vista, eu já me interessava pela palavra dita com encantamento, seja através do improviso de um repentista, de uma declamação de um folheto de cordel, das letras das músicas de Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga, dos poemas escutados e comentados na sala de aula. Enfim, a palavra dita de forma não convencional sempre foi me seduzindo até que cheguei a Salvador em 1975 e essa sedução foi tomando uma dimensão maior. Comecei a comprar livros do gênero em questão, entrei em contato com pessoas afins e, de repente, passei a obedecer (através das mãos!) o que a minha alma me pedia para rabiscar. Acrescento também a felicidade de ter sido aluno da professora Edilene Matos, na UCSAL, na minha licenciatura de Letras Vernáculas. Uma professora que, no início da década de 80, nos estimulava à pesquisa do cordel. Daí os caminhos foram sendo abertos... As sementes plantadas e agora estou, com humildade, colhendo bons frutos nesse “estradar” de incertezas e mistérios.

Você conheceu Rodolfo Coelho Cavalcante. Poderia descrever esse que foi, sem dúvida, o maior líder do cordelismo brasileiro?

Rodolfo Coelho Cavalcante: líder maior do cordelismo
Conheci o Rodolfo, sim, mas não cheguei a ter amizade com ele. Na época a minha timidez não permitia que eu me aproximasse de um vate popular tão brilhante quanto ele!  Eu costumava passar na banca dos Trovadores (OBPLC), em frente ao Mercado Modelo, para comprar folhetos de cordel e jamais me esquecerei daquele folheto intitulado “A moça que bateu na mãe e virou cachorra”!  
O que mais me encantava era o seu dinamismo em prol do cordel – ademais o rigor dos seus versos que eram bem rimados, metrificados e oracionados. Rodolfo, além de grande poeta, era um líder, um homem agregador que, incansavelmente, defendeu e popularizou a nossa arte popular. Seguramente, a partir dele, o cordel baiano passou a ter maior visibilidade. Então, pelos seus feitos, acabou sendo merecedor do grande livro A presença de Rodolfo Coelho Cavalcante na Moderna Literatura de Cordel, de autoria do pesquisador americano Dr. Mark J. Curran, que é leitura indispensável para quem gosta do cordel e de Rodolfo.

Como você descreveria a cena cordelística baiana?

Para responder a essa pergunta, preciso tecer alguns comentários, valendo-me de uma breve retrospectiva.  O cordel baiano me parece não ser tão observado e aproveitado como em outros estados do nordeste brasileiro - não sei se pelo fato de o soteropolitano ser mais intenso em outros aspectos culturais – a exemplo do axé, da MPB, dos valores africanos e do delírio massificante do nosso carnaval.  Mas, para o nosso bem, os vates populares oriundos de cidades do sertão baiano acabaram colorindo o nosso universo popular com grandeza e resistência, a exemplo de alguns já falecidos: Antonio Teodoro (Jaguarari). Francisco Minelvino (Mundo Novo); Erotildes Miranda (Feira de Santana); José Aras (Euclides da Cunha).

Minelvino: cordelista lendário

Claro que Cuíca de Santo Amaro com o seu cordel urbano, mesmo com as suas limitações, acabou influenciando a verve crítica dos que vieram depois. Ele era soteropolitano, mas falava a língua do povo simples e interagia como ninguém nas feiras livres. Quero lembrar também Antonio Vieira, que era santamarense, mas tinha um pé ficado na cultura sertaneja. 

Ademais, temos atualmente, Bule-Bule (Antonio Cardoso), Antonio Alves (Feira de Santana), Franklin Maxado (Feira de Santana), Caboquinho e João Ramos (Feira de Santana), Leandro Tranquilino (Candeal); Antonio Queiroz (Serrinha); Jotacê Freitas ( Senhor do Bonfim), Dalmo Sergio (Vitória da Conquista), que vive no interior de São Paulo; José Walter Pires (Brumado); Osmar Machado (Eunápolis); José Olívio (Alagoinhas); João Augusto (Gentio do Ouro); Gustavo Dourado (Ibititá), que vive em Brasília  e você, Marco Haurélio, juntamente com Varneci  Nascimento (Banzaê) que são, os dois maiores responsáveis por essa conexão e divulgação do cordel baiano aí em Sampa. Claro que estou me referindo aos cordelistas que permanecem produzindo e atuando intensamente.

Existe também uma nova geração de cordelistas (homens e mulheres) que está produzindo com afinco. E as promessas são boas! Creio que dessa turma sairão grandes nomes, mas não vou citá-los agora porque são muitos (em torno de 30) e posso incorrer no erro da exclusão. Mais adiante, num momento oportuno, falarei de todos eles, que são amigos e amigas de lutas em prol do cordel.

Seu trabalho é mais voltado para a educação, mas também para temas do cotidiano. Mas, de vez em quando, você mira alguns figurões da mídia, como Caetano Veloso e Pedro Bial. É Barreto um poeta polêmico ou simplesmente uma pessoa antenado com o seu tempo?


Meu trabalho realmente tem como foco principal a educação, já que exerço o oficio de professor da rede pública há 20 anos, e isso não deixa de ser o catalisador da minha verve crítica. Sendo educador de pessoas simples, vejo o Brasil de dentro para fora e de fora para dentro. “A Pedagogia do Oprimido”, de Paulo Freire, me fez enxergar Caetano Veloso, Pedro Bial e tantos outros através de uma luneta especial, aquela luneta da consciência que detecta a arrogância, a prepotência, a vaidade e a falta de grandeza espiritual desses formadores de opinião que perderam as suas raízes.

Sou, sim, antenado. E polêmico! Principalmente diante das injustiças e comportamentos inadequados de figuras públicas pobres de alma.! Essa é uma herança bendita ( risos) que vem desde os tempos do barroco, com Gregório de Matos, prossegue no Romantismo, com Castro Alves e chega até Cuíca de Santo Amaro, que não foi um grande cordelista, mas dentro das suas limitações contribuiu com a sua crítica destemida em prol das massas.

Quando vejo o Pedro Bial chamar os seus pupilos de heróis, fico indignado, então o que me resta é cordelizar assim: 

Curtir o Pedro Bial
E sentir tanta alegria
É sinal de que você
O mau-gosto aprecia
Dá valor ao que é banal
É preguiçoso mental
E adora baixaria.

Há muito tempo não vejo
Um programa tão ‘fuleiro’
Produzido pela Globo
Visando Ibope e dinheiro
Que além de alienar
Vai por certo atrofiar
A mente do brasileiro.

Me refiro ao brasileiro
Que está em formação
E precisa evoluir
Através da Educação
Mas se torna um refém
Iletrado, ‘zé-ninguém’
Um escravo da ilusão.

Em frente à televisão
Lá está toda a família
Longe da realidade
Onde a bobagem fervilha
Não sabendo essa gente
Desprovida e inocente
Desta enorme ‘armadilha’.

Cuidado, Pedro Bial
Chega de esculhambação
Respeite o trabalhador
Dessa sofrida Nação
Deixe de chamar de heróis
Essas girls e esses boys
Que têm cara de bundão.
[...]

Você adaptou recentemente, para a coleção Clássicos em Cordel, da Editora Nova Alexandria, O conto A cartomante, de Machado de Assis. Fale um pouco dessa experiência.

Ainda não havia me dado conta da importância de escrever um cordel mais garboso, de peso, até então eu continuava escrevendo folhetos simples de 8 páginas – formato tradicional - de repente, lá naquele encontro internacional de poesia em Assunção, do qual participamos, levando a nossa literatura de cordel para aquele país, você me lançou o desafio de adaptar algo da literatura canônica para a coleção de Clássicos em Cordel, para a editora Nova Alexandria. Me senti desafiado, daí o desejo de chegar até Machado de Assis – olha que ousadia! Então, dentro das minhas limitações e humildade, fui avante e acabei concluindo o referido cordel. Agora tem uma coisa: depois dessa façanha, descobri que o querido cordelista cearense Marcos Mairton já havia escrito a “Cartomante” em versos de cordel!  De modo que aproveito a oportunidade para prestar esse esclarecimento ao nobre colega.

Barreto uniu Raul Seixas e Zé Limeira
num folheto memorável

Muitos falam, e até esbravejam, que o cordel precisa aparecer mais na mídia. Mas  o cordel não é, também, uma mídia?

Bem, eu não tenho reclamado isso. Na verdade ele vem sendo até muito prestigiado pela mídia. Inclusive devemos aproveitar esse fantástico processo planetário de comunicação, que é a Internet, para então darmos mais evidência a nossa produção. Não podemos ser anacrônicos. Para a sobrevivência do cordel, a mídia tem que ser a nossa aliada número um!  Há pouco tempo o sul do Brasil quase que não sabia o que era cordel, mas agora eu recebo e-mail de outros países referenciando o cordel. Isso não é bom?!
O cordel hoje passeia livremente pela mídia: rádio, jornal, revistas, Internet e agora pela televisão.  Mas, por ser um sertanejo desconfiado, fico a pensar num desdobramento fora do tom. Digo isso porque muitas pessoas, inclusive os meus alunos, estão fazendo uma confusão danada a respeito do cordel em função dessa novela que a Globo proclama de Cordel Encantado. Tudo bem, o cordel ganhou mais vida, notoriedade, enfim está em voga. Mas existem elementos destoantes na referida novela que acabam descaracterizando o cordel enquanto poesia popular. A verdadeira essência do cordel não vem sendo mostrada, em detrimento ao esforço desmedido da referida emissora em ganhar ibope. Mas tenho certeza de que a Globo ainda fará esse reparo.

Matriz de Santa Bárbara

A hora do adeus. Diga algo que ficará gravado para sempre na memória dos poucos que lerão esta entrevista.

Tenho a sensação de que o nosso “estar” no planeta Terra não passa de um sonho! É um sentimento que vai além da inquietação aristotélica. Me pergunto sempre: para onde vou?  Para que serve um ego exacerbado?  Para que serve o apego a pessoas e coisas materiais?  Para que serve muito dinheiro? E a tirania da OTAN, da gente, de Tio Sam? Por que tanta dor diante dos olhos de Deus?  Será que somos realmente humanos? Como chegaremos à paz com tantas armas? Será que estamos sós? O que é mesmo esse assombro chamado vida?

Por conta dessas indagações, estou sempre a pedir guarnição ao Pai Sol e à Mãe Lua – mas não tenho a certeza se realmente já mereço ser atendido...

Penso em fazer um cordel com o título: “Terra – Planeta Sonho”! Mas antes que chegue a hora, eu me despeço com essa décima:

Nas veredas do cordel
O que vale é a partilha
E vamos seguindo a trilha
Neste imenso carrossel.
Cada um sendo fiel
E de peito sempre erguido
Tornando o mundo florido
Tecendo o fio da amizade
No sertão e na cidade
Nos dez de queixo caído.