O verdadeiro romance do herói João de Calais em edição da Luzeiro. |
Por Marco Haurélio
A história de João de Calais gira em torno do tema do morto agradecido (ATU 505),
episódio que figura em muitos contos populares. A
redação do romance é da francesa Magdeleine Angèlique Poisson (1684-1770),
tornada Madame de Gómez após contratar núpcias com um fidalgo espanhol, Dom
Gabriel de Gómez, o qual, ela descobriria depois, “possuía apenas a voz bonita
e de patrimônio coisa alguma”.[1] Para
sustentar-se, dedicou-se à literatura, dando preferência a temas apreciados
pelo povo. Sua bibliografia é extensa, mas nenhuma obra alcançou o público e a
longevidade do João de Calais. A
história, publicada em uma coleção de novelas, Jounées amusantes, ganhou independência e passou a integrar, com
redação modificada, acrescida de episódios estranhos ao conto de Madame de
Gómez, a Biblioteca Azul. Esta versão é atribuída por Câmara Cascudo a Jean de
Castillon.
A história narra como João de Calais, filho de um negociante abastado do
norte das Gálias, limpa os mares de “um enxame de piratas” e, ao retornar à
pátria, vê seu navio ser arrastado por uma tempestade a uma ilha desconhecida,
a Orimânia, cuja capital era a Palmânia. Lá, uma cena chama-lhe a atenção: um
cadáver, exposto em praça pública, estava sendo dilacerado por cães. João,
horrorizado, interroga o porquê de tal impiedade e descobre que o homem morreu
sem saldar suas dívidas, merecendo, assim, aquele castigo. Reúne os credores,
salda as dívidas e dá sepultura ao cadáver. Depois, vê um navio ancorado e, condoído,
compra de um corsário duas belas moças, Constança e Isabel, que este disse
serem escravas. Já em Albion, casa-se com uma delas, Constança, sem saber que
se trata da filha do rei de Portugal. No retorno, apresenta a esposa ao pai,
mas este desaprova o casamento. O casal tem um filho. João parte num navio com
destino a Portugal, onde o rei, admirado da beleza da embarcação, vai
conhecê-la, deparando, na câmara do capitão, um quadro com os retratos de
Constança, Isabel e o filho do casal. Chamado ao palácio para explicar-se,
conta toda a história, e fica sabendo que Constança é filha do rei e Isabel é
herdeira do Duque de Messina. Na viagem de retorno a Calais, o herói tem a
companhia do príncipe D. João, sobrinho do rei, que, tempos antes declarara
amor a Constança, pois almejava o trono português. Quando chegam, o pai de
João, sabedor da história, pede perdão ao filho. A armada retorna à Sicília,
com a princesa, e, durante uma tempestade, D. João, traiçoeiramente, empurra
João de Calais do navio, e este é dado como morto. Em Portugal, a tristeza não
impede que o traidor, passado um tempo e aproveitando-se de uma vitória militar
na qual se destacou entre os seus comandados, peça a mão de Constança. Contra a
vontade desta, o casamento é marcado.
O infeliz João não morre, mas, vencendo a fúria dos elementos, vai ter a
uma ilha. Depois de algum tempo, vê caminhando em sua direção um home que lhe
põe a par de todo o ocorrido, até mesmo do casamento marcado de Constança com o
homem que o atraiçoara. Promete ainda levá-lo ao local do casamento, caso ele
consinta em dar-lhe metade daquilo que mais estima. João, depois de consentir,
adormece e acorda em Portugal, onde, apesar de sua deplorável aparência, é
reconhecido por Isabel. Descoberta a traição, o príncipe D. João é condenado à
morte. O homem que o salvara aparece e pede-lhe a metade de seu filho. João,
mesmo notando o desespero de Constança, oferece o menino para que o
desconhecido faça a partilha. Este, então, revela-se: era um enviado do
Altíssimo, aquele mesmo homem da Palmânia, que recebera, pela generosidade de
João, sepultura cristã. Após a revelação desaparece, causando em todos grande
admiração. João manda erigir um mausoléu para o fantasma, que previra muitas
felicidades para ele.
Este é um resumo do famoso conto. A tradução portuguesa mudou alguns
detalhes da história. O reino de Portugal tornou-se o reino da Sicília, o
príncipe D. João foi rebatizado como Florimundo e as qualidades de João de
Calais ganharam mais relevância.
A literatura oral do Brasil e de Portugal traz muitos contos do ciclo do
“morto agradecido”. Silvio Romero, nos Contos
populares do Brasil, traz A raposinha.
Aluísio de Almeida, apresenta uma versão com o título João de Calais, reproduzida na obra 50 contos populares de São Paulo. Recolhi, em Brumado, Bahia, uma
interessante versão, O príncipe e o
mestre-sala, narrado por D. Maria Rosa Fróes, então com 89 anos, que
desconhecia o conto João de Calais. A
obra integra o livro Contos folclóricos
brasileiros.
Em Portugal, circulou um folheto de cordel, Nova história de João de Calais, em quadras. Câmara Cascudo diz
desconhecer versão poética da história no Brasil. Há, no entanto, muitas, com
resultados distintos. Talvez a mais antiga seja a anônima publicada pela
editora Guajarina. A História completa do Herói João de Calais, atribuída ao folheteiro Manoel Tranquilino Pereira,
vulgo Baraúna, é de 1945. Outras mais recentes são de autoria de Damásio
Paulo, Antônio Teodoro dos Santos, Manoel Pereira Sobrinho, José Costa Leite e
Severino Borges Silva. Este último, com O
verdadeiro romance do herói João de Calais, fez a melhor versão da clássica
história, e, por isso, tem merecido sucessivas reimpressões. As duas primeiras
e as duas últimas estrofes, com o acróstico BORGES, dão ideia da feliz
releitura do poeta pernambucano:
Vinde musas que habitam
As regiões divinais
Banhar-me nas santas águas
Das fontes celestiais
Que vou contar o romance
Do herói João de Calais.
Lá nos recônditos das Gálias
Havia um homem abastado,
O qual tinha um filho único
Que por João era chamado.
Foi um herói que deixou
Seu nome imortalizado.
Florismundo desgraçou-se,
Mas João ficou em paz
Com sua esposa querida
Amando-a de mais a mais.
Aqui termina o romance
Do herói João de Calais.
Bem feliz João ficou,
O rei mui regozijado
Regendo aquela nação
Geralmente apreciado
E a prima de Constança
Sempre viveu a seu lado.
Relativamente recente é a versão resumida de Arievaldo Viana, História completa do navegador João de
Calais, publicada em Fortaleza e em Mossoró. Foi reeditada como história em
quadrinhos, em parceria com o grande cartunista pernambucano Jô Oliveira, com o
título História do navegador João de
Calais e de sua amada Constança.
O tema do “morto agradecido” aparece ainda no Romance de João sem direção, de Natanael de Lima. O herói João, um
tanto desajeitado, paga as dívidas de um morto e, no cumprimento de ordens de
um rei, é auxiliado por um macaco que, ao cabo, revela ser a alma do falecido.
Há o episódio da promessa da metade do filho em troca dos favores prestados e o
bom fado a sorrir para o bondoso João:
Sou um ser do invisível
Que no espaço figura.
João, eu não sou um macaco —
Sou aquela criatura
Que tu pagaste as dívidas
E deste-me a sepultura.
No livro bíblico de Tobias (século II a.C.), a história do velho Tobit,
cegado pelo excremento de pardais e curado pelo filho Tobias, com o auxílio do
anjo Rafael (modelo do morto agradecido, já que representa as almas dos mortos
a quem o velho deu sepultura durante o exílio judeu na Assíria), que lhe aplica
nos olhos o fel de um peixe. Tradicionalizado em Portugal, a História do Tobias consta dos contos
tradicionais do Catálogo Português
organizado por Paulo Correia e Isabel Cardigos. Nas Piacevoli
notti, de Straparolla, [XI, 2], o tema aparece num conto muito semelhante
ao do romance de Madame de Gómez, embora o protagonista seja um toleirão.
Hans Christian Andersen registrou O
companheiro de jornada, em que o protagonista Johannes paga as dívidas de
um defunto, que encontra em uma igreja, e depois será auxiliado por este na
conquista da mão de uma princesa. Nos Contos
populares espanhóis[2],
figura o Juan de Calaís, com o episódio do resgate da dívida do morto, da
traição do primo da esposa do herói, e do tributo dispensado pela gratidão do
fantasma.
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