Por: PAULA IVONY LARANJEIRA
Sempre que falamos em literatura infantil, pensamos logo em um monte de livros cheios de “Era uma vez”, “Num pais distante”, e “Viveram felizes para sempre”, com ilustrações coloridas, muitas vezes tão detalhistas que “até” impedem a criança de ela mesma criar seu mundo encantado. Por tal, este texto mais do que pressupostos teóricos apresenta o universo literário oral, muitas vezes, ignorado, mas não desconhecido de muitos não-intelectuais.
Quando sentados com alguns grupos, nas recordações dos tempos de meninice, é comum que façamos um tur pela infância em busca de livros infantis que tenhamos lido. Conheço gente que leu muitos livros e outros que leram poucos, conheço gente que podia comprar e outros nem ousavam pensar nesta possibilidade – na qual me encaixo –, conheço gente que fazia de tudo para ler um livro e outros que faziam de tudo para não ler, mas também conheço gente que mesmo sem ler nas páginas coloridas ou sem cores, páginas com cheiro de novo ou cheiro de mofo de um livro, não foram privadas da literatura infantil. Como?
Vou falar de uma gente do sertão, que na infância ouvida muitos causos. Aqui, e imagino que o mesmo se dê em outros lugares, é preciso bons escutadores para que os causos comecem a se desenrolar, igual a novelo infinito, pois um causo puxa outro. Sim, porque se o sertão amadurece precocemente muitas crianças pelo sofrimento, ele também serve como pano de fundo e matéria prima para muitos contos infantis que embalam por vezes o sono, os sonhos e a construção identitária das muitas crianças que ali nutrem suas alegrias e um infinito de possibilidades imaginárias.
Quando criança, não tive muito acesso aos livros. Mas nunca faltaram histórias a povoar meu imaginário, pois se livros eram coisa para quem tinha dinheiro, mãe ou avó contadora de histórias era para todo mundo. Assim acontece com muitos que não tendo livros tem avós, pais, irmãos e amigos narradores. E isso nos permite o contato com os contos populares, adaptados, muitas vezes, às necessidades do adulto para com a criança. As mães e avós quase sempre nos reservam contos de encantamento, moralizantes e/ou religiosos; os pais e avôs se encarregam dos contos moralizantes e terror; os irmão ou amigos ficam com os de terror e os humorísticos. Sem contar as sagas de família que também integram a colcha de retalhos da literatura infantil via expressão oral. Nesse sentido, Capek corrobora,
"Um verdadeiro conto de fadas popular não se origina no momento em que o estudioso de folclore o colige, mas ao ser contado por uma avó para seus netos (...) Um verdadeiro conto de fadas, um conto de fadas dentro de sua verdadeira função, existe dentro de um círculo de ouvintes "( apud RADINO, 2001, P.75).
E é justamente este sertão e sua literatura, cheio de cantos, contos e encantos, que permitiu ao poeta e folclorista Marco Haurélio, exemplo frutífero de ouvinte e contador de causo, que seguisse os passos dos Irmãos Grimm, bem como os do Câmara Cascudo, recolhendo um infinito de riquezas guardados e repassados pela gente da terra aos pequenos, e agora eternizados em Contos Folclóricos Brasileiros. Neste livro encontramos uma variedade de contos que se espalham pelo sertão através das correntes orais, em sua maioria, representada por mães, que sem ter outra forma mais didática de educar os filhos, lhes contam histórias para que inspirados nelas e através das ações das personagens e do desfecho, escolham suas ações no decorrer da vida.
Como Haurélio enfatiza, aqueles textos não saíram de sua imaginação criadora, muitos daqueles contos ouviu ainda na infância de sua avó, de seu pai e de sua tia, outros ouviu de sábios narradores, a quem creditou todos os contos mesmo sabendo que não são autores, isto porque a autoria já se perdeu no tempo, fator necessário, como afiançar Câmara Cascudo, para o popular:
"É preciso que o conto seja velho na memória do povo, anônimo em sua autoria, divulgado em seu conhecimento e persistente nos repertórios orais. Que seja omisso nos nomes próprios, localizações geográficas e datas fixadoras do caso no tempo. "(2004, p.13 apud LOYOLA, 2008, P. 23).
"É preciso que o conto seja velho na memória do povo, anônimo em sua autoria, divulgado em seu conhecimento e persistente nos repertórios orais. Que seja omisso nos nomes próprios, localizações geográficas e datas fixadoras do caso no tempo. "(2004, p.13 apud LOYOLA, 2008, P. 23).
É interessante observar que neste livro, Haurélio possibilita ao leitor compreender que estas histórias, perpassadas pelos narradores do sertão da Bahia via oralidade às crianças/adultos, quase sempre tem a mesma raiz de contos de fadas de Perroult, Andersen, Irmãos Grimm, entre outros. Contos estes que foram se modificando, sofrendo alterações. Isto porque não havia nas camadas populares o registro escrito, pois a transmissão se dava via oralidade, fazendo com que as histórias sofressem adaptações que muitas vezes, as deixavam menores, maiores, com a junção de dois enredos num mesmo causo ou se dividindo, gerando dois causos.
Além disso, é possível perceber nos contos maravilhosos de autores tradicionais que as histórias se passavam num ambiente diferente dos nossos, já nos contos populares, a semelhança com o meio é o grande atrativo, pois há sempre a inserção de elementos comuns ao grupo transmissor na história narrada. Eis o grande diferencial.
Na tentativa de entender mais a relação e/ou disparidade entre a literatura infantil e o conto popular, foi necessário percorrer o caminho trilhado pela literatura infantil, no qual encontramos duas formas corpóreas: a literatura “culta”, baseada na escrita; e a literatura popular, com base na oralidade. Porém, estes corpos distintos, aparentemente, se valem um do outro para manter certo equilíbrio, pois um bebe na fonte do outro. Nesse sentido, há uma interdependência entre eles. O que não se entende é por que há um sentimento de menosprezo para como a literatura popular, especificamente a oral.
Consta que antes do século XVII, existiam poucos livros, e as histórias eram todas guardadas na memória e contadas para grupos de pessoas das mais variadas etnias e culturas. Mas motivados pelo interesse das crianças e por necessidades didáticas, alguns pesquisadores, como é o caso do Irmãos Grimm no século XIX, recolheram os contos da oralidade e registraram através da escrita em livros. Portanto, torna-se necessário salientar que os contos maravilhosos que conhecemos hoje têm início no século XVII com a “invenção” da infância. Antes disso, os contos pertenciam à cultura popular e eram compartilhados entre adultos via narrativa oral. Porém, com a criação da imprensa e a crescente valorização da escrita, houve um crescente apego às histórias escritas, tida como sinônimo de erudição. O que não era registrado através da escrita, mas transmitido via narrativas orais passava a se referir a algo popular, e, por tal, sem prestígio.
Assim sendo, percebe-se que mesmo não tendo acesso aos livros, esses não-leitores não eram privados do contato com o mundo encantado do faz de conta contido na Literatura Infantil, pois sempre havia/há um narrador experiente para este oficio. Pode ser um narrador sedentário ou viajante, como caracteriza Walter Benjamim no texto em que fala de Lescov. Sempre há sempre uma situação ou momento propício para que uma história-conto-causo nasça, basta um narrador, uma criança e/ou um grupo de crianças ou até mesmo adultos, para que se descortine para o leitor-ouvinte um mundo maravilhoso, pois quem não gosta de ouvir alguém contar uma história jurando que é/aconteceu de verdade?
Agradeço ao Marciano Vasques que ao me convidar para escrever para a revista , sempre me permite novos desafios, novos temas e muitas reflexões. Amigos passem na Palavra Fiandeira e confiram outros textos e outras temáticas.
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