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Os martírios de Genoveva em edição da Luzeiro. |
A lenda de Genoveva de Brabante foi reaproveitada
pela literatura de cordel em Portugal e no Brasil. Devemos a Baltazar Dias o Auto
de Santa Genoveva, publicada em 1758 em Lisboa, com métrica variada e
reduzido número de personagens. Esposa
do conde Siegfried de Trèves, caluniada pelo mordomo Golo, homem de confiança
de seu esposo, sentenciada à morte e poupada pelos carrascos na hora da
execução, Genoveva é, de todas as heroínas, a que melhor serve à hagiografia,
confundida com outra santa, de mesmo nome, Genoveva de Paris, contemporânea de
Átila, rei dos hunos.
À diferença de outras mulheres do ciclo da esposa caluniada, Genoveva
de Brabante concebe um filho de seu esposo — que partira para a guerra contra
os sarracenos — e com ele dividirá o exílio, os martírios e, depois, as
bem-aventuranças. A corça que nutre o filho da heroína, na caverna transformada
em refúgio, representa o retorno ao estado natural, simbolizado no conto de Crescência (e na História da Imperatriz Porcina) pela aquisição da erva mágica; a sobrevivência da piedosa condessa, nas
condições mais inóspitas, é o verdadeiro milagre denunciador de sua inocência
ultrajada. A mesma corça, durante uma caçada, acuada pelos cães da tropa do
conde, conduzirá Siegfried à cova da infeliz.
CatherineVelay-Vallantin, estudando a lenda, divulgada em redações em latim dos
séculos XV e XVI, menciona quatro textos, os quais, à falta de uma versão
“original”, ajudam a compreender a evolução da história. Memorabile
gestum de prodigiosa instauratione capelaae in Frawuen Kichen in honorem
gloriossimem dei genetricis Virginis Mariae, escrito em 1472, um pouco antes da Páscoa pelo Matthias Emyich, único
manuscrito conservado, segundo a autora, na Biblioteca de Trèves, é a primeira
das quatro redações em latim. Explicava a construção da capela em honra da
Virgem no local em que Genoveva, banida, viveu com o filho pequeno e uma corça.
A lenda foi nutrida
ainda pela propaganda em torno da peregrinação a um santuário beneditino, onde,
acreditava-se, estava enterrada a virtuosa heroína: “Um
milagre da Virgem na Renânia interessava a todas as comunidades religiosas da
região, em particular ao grande convento beneditino de Laach, onde os copistas
asseguraram a reprodução do manuscrito que relata a lenda.” (Velay-Vallantin,
1992, p. 189). Mas foi o romance L’innocence raconuue (A
inocência reconhecida), do padre Cériziers, publicado em 1634, em uma língua
moderna, nesse caso, o francês, que ajudou a popularizar a história, que
conhecerá várias reimpressões na Bibliothèque bleue. O sucesso
explica-se pela tendência moralizante, em voga na França de então, mas também
pela mescla de elementos do heroico e do maravilhoso hagiográfico, que transformaram uma lenda monacal num
romance piedoso (Cf. Velay-Vallantin, 1992, p. 190).
Além da França e dos
países vizinhos, a Alemanha conhece uma edição em língua materna ainda em 1660,
e abraça a história, que alcança notável popularidade em peças de cunho
moralista e no teatro de marionetes. Não surpreende, portanto, o fato de a
lenda haver sido reescrita pelo cônego Cristoph von Schmid (1768-1854),
precursor da literatura infantil em seu país, em romance publicado em 1825 e traduzido
para vários idiomas, incluindo o castelhano e o português. Foi a partir da
edição de Genoveva
de Brabant, de
Schmid, publicada pela editora Garnier, que José Galdino da Silva Duda
escreveu, no princípio do século XX, o clássico cordel Os
martírios de Genoveva.
Pouco lembrado hoje, o cônego Schmid foi o nome mais traduzido pela Garnier
entre os séculos XIX e XX.
O cordel segue de perto
o texto de Schmid e, quando imprime sua marca, José Duda reforça as antinomias
herdadas do imaginário medieval, como realçado no prólogo:
Nesta história se vê
A virtude progredir,
A verdade triunfar,
O mal se submergir,
A honra salientar-se,
A falsidade cair.
Já as estrofes seguintes
buscam, na medida do possível, um alinhamento ao texto de Schmid, inclusive no
tocante à ideologia. Se no original ficamos sabendo que “a religião cristã já
havia dissipado as trevas do paganismo na Alemanha, e, com a sua salutar
ascendência, tinha melhorado muito os costumes de seus belicosos habitantes”,
no cordel, a informação ganha mais relevância:
Neste tempo, na Alemanha
A luz do cristianismo
Tinha melhorado tudo,
Não tinha mais despotismo,
Já tinham se dissipado
As trevas do paganismo.
Logo que chegou a luz
Da santa religião,
Nova lei, novos costumes
Tomaram força e ação;
Os homens se industriaram,
Tudo teve aumentação.
Essa fidelidade não impede a eliminação
de passagens que tornariam a trama arrastada, principalmente aquelas em que a
ação cede espaço às prédicas da heroína durante o exílio ou à instrução de seu
filho, e acelere o ritmo à medida que a história se aproxima do final.
Ao expor as diferenças
flagrantes entre o cordel português e aquele publicado no Brasil, tema
central de sua tese de doutorado, a professora Márcia Abreu,
se apoia em uma passagem de Os martírios de Genoveva, atribuído por ela,
erroneamente, a Leandro Gomes de Barros, como exemplo de história em que as
relações entre dominantes e dominados ganham, no Nordeste, uma nova feição:
A convivência harmoniosa — presente no cordel português — entre dominantes e dominados dá lugar à tematização de conflitos
oriundos do desnível social. Esta questão é tão presente nos folhetos que se
imiscui até mesmo em histórias tradicionais que se passam em meio à nobreza.
Por exemplo, na versão nordestina da história de D. Genoveva, a comemoração de
seu casamento é entremeada de preocupações sociais...
Pediu depois ao marido
que aumentasse o ordenado
de todos os súbditos (sic)
até do menor criado
e diminuísse o imposto
que estava demasiado.
Pediu com lágrimas nos olhos
que amparasse os desvalidos
remisse os atribulados
consolasse os oprimidos
para que ele mais ela,
fossem de Deus escolhidos.
A tematização destas questões carreia consigo
elementos da realidade nordestina, que são matéria privilegiada dos
"folhetos de época", como o problema dos baixos salários ou dos
impostos (Abreu, 1993, p. 261).
O trecho reproduzido poderia, sim, refletir as “preocupações
sociais” do Nordeste, mas, em momento algum, isso fica evidente. É mais
plausível que a imagem da rainha generosa, espelho terreno da Virgem Maria,
reflita fielmente o ideário medieval da salvação alcançável mediante a virtude
cristã da caridade. Ademais, José Duda, na prática, apenas versou, isto
é, adaptou para o cordel, o seguinte trecho da obra de Schmid:
Dirigiu
a palavra aos velhos com respeito, com bondade perguntou às mães de família a
idade dos filhos e deu a todos um bonito presente. Ficaram todos encantados por
ela e cheios de reconhecimento e dedicação. Quando, porém, ela anunciou que
naquele ano os soldados e os criados teriam soldo duplo, que os vassalos não
pagariam contribuições, que se faria aos pobres uma grande distribuição de
lenha e de cereais, então o entusiasmo chegou ao seu cúmulo; de todos os lados
romperam aclamações de regozijo. “Feliz, exclamaram os súditos do conde, feliz
o homem que tem uma esposa assim! Feliz o país que tem chefes tão bons!” (Schmid,
[19--?], p. 10).
O entusiasmo dos súditos também foi lembrado pelo
poeta que fala por si próprio e não pelo povo nordestino, heterogêneo, como
qualquer povo, e cujas questões sociais não se esgotam no protesto
contra a tributação injusta nem se resumem ao assistencialismo:
Seus
súditos exclamavam:
Feliz
a nação que tem
Chefes
assim como esses
Que
transformam o mal em bem!
Velho
desejou ser moço
Para
ajudá-los também.
Baseada numa edição traduzida do francês, a reelaboração
de José Duda conserva quase sempre os nomes dos personagens: Sigifroi (Sigefroi
no romance) em vez de Siegfried, além dos carrascos de Genoveva, Conrado,
mantido no cordel, e Roger, mudado para Roberto, talvez para aproveitamento
numa rima. O filho da heroína, Benoni, no cordel e na edição da Garnier, alude
à sua condição degradada, e foi inventado pelo padre Cériziers, seguindo a
tradição medieval de justificar por meio da etimologia o destino do personagem:
Ela
[Genoveva] dedica seus momentos de lazer à educação de seu filho a quem
Cériziers, um tanto hebraizante, foi o primeiro a dar o nome de Bénoni.
"Genoveva, chame seu filho de Benoni ou Tristão; ele deve levar o nome da
madrinha, já que Deus é seu padrinho. " (Benoni é o nome que Raquel,
mulher abandonada em benefício da irmã, dá ao seu filho (Gênesis, 35-18)
(Velay-Vallantin, 1992, p. 188).
Na mesma versão, o esposo de Genoveva, que saíra à
caça, a confunde com um urso. Conduzida imediatamente ao castelo, não há
consagração da clareira à Virgem, como nas versões latina e alemã. Sua morte e
sepultamento, em Cériziers, ocorre na gruta, mas não se menciona a construção
de uma capela. Há, no entanto, a presença de um anjo, disfarçado em eremita, a
consolar o conde. A morte da corça sob o túmulo de Genoveva, narrada por
Schmid, passa despercebida no cordel, ao contrário do destino de Golo, que
morre de desgosto na prisão; José Duda omite, porém, que a pena de morte
decretada pelo conde fora comutada em prisão perpétua a pedido de Genoveva.
Supressões desta ordem são, até certo ponto, aceitáveis, contudo, cenas de
grande impacto dramático tendem a ser mantidas, especialmente no desfecho.
No Catálogo tipolóxico do conto galego de
tradición oral, organizado por Camiño Noia Campos (2010), aparece com o
título “Santa Xenoveva”, ratificando a sua canonização, mesmo que ao nível da
lenda, e uma possível influência da cantiga V de Santa Maria no imaginário em
torno do conto. Campos menciona ainda, em nota, duas versões recolhidas e
fixadas por Agustin Durán, no Romancero general, no século XIX: “La
peregrina doctora” e “Santa Genoveva, princesa de Brabante”, sendo a primeira o
tipo clássico desde os tempos dos Miracle de la Vierge.
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Folheto português, em prosa, do século XIX.
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Para além das versões orais e escritas, a lenda de
Genoveva de Brabante inspirou, em 1850, uma ópera em quatro atos de Robert
Schumann, baseada em libreto do compositor Robert Reinick. No cinema, foi
recontada algumas vezes, como, por exemplo, em um filme mudo franco-holandês de
1907, na produção hispano-italiana, dirigida, em 1964, por José Luis Monter.
Outra produção italiana de 1947, dirigida por Primo Zeglio, atesta a
popularidade da lenda. No cordel, há uma segunda versão, da década de 1950,
assinada por Manoel Pereira Sobrinho, sem o mesmo alcance do poema de José
Duda.
Referências
ABREU, Márcia Azevedo de.
Cordel português / folhetos nordestinos: confrontos um estudo
histórico-comparativo. Tese (Doutorado em Teoria Literária) – Instituto de
Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 1993. DOI:
10.47749/T/UNICAMP.1993.65335.
CAMPOS,
Camiño Noia. Catálogo tipolóxico do conto galego de tradición oral. Vigo:
Servizo de Publicacións da Universidade de Vigo, 2010.
DUDA, José Galdino da Silva. Os martírios de
Genoveva. São Paulo: Luzeiro, 1988.
SCHMID, Chistoph von. Genoveva de Brabant.
Rio de Janeiro: Garnier, [19--?].
VELAY-VALLANTIN, Catherine. L'histoire des contes. Paris: Fayard,1992.
Nota: O texto acima foi adaptado de um trecho da
dissertação de mestrado de Marco Haurélio (O fio da meada: classificação
tipológica e uma história cultural da literatura de cordel, defendida em 2024
na Universidade de Campinas).
Para acessar o texto na íntegra, clique AQUI.