quinta-feira, 3 de abril de 2025

Genoveva de Brabante

Os martírios de Genoveva em edição da Luzeiro.

A lenda de Genoveva de Brabante foi reaproveitada pela literatura de cordel em Portugal e no Brasil. Devemos a Baltazar Dias o Auto de Santa Genoveva, publicada em 1758 em Lisboa, com métrica variada e reduzido número de personagens.  Esposa do conde Siegfried de Trèves, caluniada pelo mordomo Golo, homem de confiança de seu esposo, sentenciada à morte e poupada pelos carrascos na hora da execução, Genoveva é, de todas as heroínas, a que melhor serve à hagiografia, confundida com outra santa, de mesmo nome, Genoveva de Paris, contemporânea de Átila, rei dos hunos.

À diferença de outras mulheres do ciclo da esposa caluniada, Genoveva de Brabante concebe um filho de seu esposo — que partira para a guerra contra os sarracenos — e com ele dividirá o exílio, os martírios e, depois, as bem-aventuranças. A corça que nutre o filho da heroína, na caverna transformada em refúgio, representa o retorno ao estado natural, simbolizado no conto de Crescência (e na História da Imperatriz Porcina) pela aquisição da erva mágica; a sobrevivência da piedosa condessa, nas condições mais inóspitas, é o verdadeiro milagre denunciador de sua inocência ultrajada. A mesma corça, durante uma caçada, acuada pelos cães da tropa do conde, conduzirá Siegfried à cova da infeliz.  

CatherineVelay-Vallantin, estudando a lenda, divulgada em redações em latim dos séculos XV e XVI, menciona quatro textos, os quais, à falta de uma versão “original”, ajudam a compreender a evolução da história.  Memorabile gestum de prodigiosa instauratione capelaae in Frawuen Kichen in honorem gloriossimem dei genetricis Virginis Mariae, escrito em 1472, um pouco antes da Páscoa pelo Matthias Emyich, único manuscrito conservado, segundo a autora, na Biblioteca de Trèves, é a primeira das quatro redações em latim. Explicava a construção da capela em honra da Virgem no local em que Genoveva, banida, viveu com o filho pequeno e uma corça.

A lenda foi nutrida ainda pela propaganda em torno da peregrinação a um santuário beneditino, onde, acreditava-se, estava enterrada a virtuosa heroína: “Um milagre da Virgem na Renânia interessava a todas as comunidades religiosas da região, em particular ao grande convento beneditino de Laach, onde os copistas asseguraram a reprodução do manuscrito que relata a lenda.” (Velay-Vallantin, 1992, p. 189). Mas foi o romance L’innocence raconuue (A inocência reconhecida), do padre Cériziers, publicado em 1634, em uma língua moderna, nesse caso, o francês, que ajudou a popularizar a história, que conhecerá várias reimpressões na Bibliothèque bleue. O sucesso explica-se pela tendência moralizante, em voga na França de então, mas também pela mescla de elementos do heroico e do maravilhoso hagiográfico, que transformaram uma lenda monacal num romance piedoso (Cf. Velay-Vallantin, 1992, p. 190).

Além da França e dos países vizinhos, a Alemanha conhece uma edição em língua materna ainda em 1660, e abraça a história, que alcança notável popularidade em peças de cunho moralista e no teatro de marionetes. Não surpreende, portanto, o fato de a lenda haver sido reescrita pelo cônego Cristoph von Schmid (1768-1854), precursor da literatura infantil em seu país, em romance publicado em 1825 e traduzido para vários idiomas, incluindo o castelhano e o português. Foi a partir da edição de Genoveva de Brabant, de Schmid, publicada pela editora Garnier, que José Galdino da Silva Duda escreveu, no princípio do século XX, o clássico cordel Os martírios de Genoveva. Pouco lembrado hoje, o cônego Schmid foi o nome mais traduzido pela Garnier entre os séculos XIX e XX.

O cordel segue de perto o texto de Schmid e, quando imprime sua marca, José Duda reforça as antinomias herdadas do imaginário medieval, como realçado no prólogo:

 

Nesta história se vê

A virtude progredir,

A verdade triunfar,

O mal se submergir,

A honra salientar-se,

A falsidade cair.

 

Já as estrofes seguintes buscam, na medida do possível, um alinhamento ao texto de Schmid, inclusive no tocante à ideologia. Se no original ficamos sabendo que “a religião cristã já havia dissipado as trevas do paganismo na Alemanha, e, com a sua salutar ascendência, tinha melhorado muito os costumes de seus belicosos habitantes”, no cordel, a informação ganha mais relevância:

 

Neste tempo, na Alemanha

A luz do cristianismo

Tinha melhorado tudo,

Não tinha mais despotismo,

Já tinham se dissipado

As trevas do paganismo.

 

Logo que chegou a luz

Da santa religião,

Nova lei, novos costumes

Tomaram força e ação;

Os homens se industriaram,

Tudo teve aumentação.

 

Essa fidelidade não impede a eliminação de passagens que tornariam a trama arrastada, principalmente aquelas em que a ação cede espaço às prédicas da heroína durante o exílio ou à instrução de seu filho, e acelere o ritmo à medida que a história se aproxima do final.

Ao expor as diferenças flagrantes entre o cordel português e aquele publicado no Brasil, tema central de sua tese de doutorado, a professora Márcia Abreu, se apoia em uma passagem de Os martírios de Genoveva, atribuído por ela, erroneamente, a Leandro Gomes de Barros, como exemplo de história em que as relações entre dominantes e dominados ganham, no Nordeste, uma nova feição:

 

A convivência harmoniosa — presente no cordel português — entre dominantes e dominados dá lugar à tematização de conflitos oriundos do desnível social. Esta questão é tão presente nos folhetos que se imiscui até mesmo em histórias tradicionais que se passam em meio à nobreza. Por exemplo, na versão nordestina da história de D. Genoveva, a comemoração de seu casamento é entremeada de preocupações sociais...

 

Pediu depois ao marido

que aumentasse o ordenado

de todos os súbditos (sic)

até do menor criado

e diminuísse o imposto

que estava demasiado.

 

Pediu com lágrimas nos olhos

que amparasse os desvalidos

remisse os atribulados

consolasse os oprimidos

para que ele mais ela,

fossem de Deus escolhidos.

 

A tematização destas questões carreia consigo elementos da realidade nordestina, que são matéria privilegiada dos "folhetos de época", como o problema dos baixos salários ou dos impostos (Abreu, 1993, p. 261).     

 

O trecho reproduzido poderia, sim, refletir as “preocupações sociais” do Nordeste, mas, em momento algum, isso fica evidente. É mais plausível que a imagem da rainha generosa, espelho terreno da Virgem Maria, reflita fielmente o ideário medieval da salvação alcançável mediante a virtude cristã da caridade. Ademais, José Duda, na prática, apenas versou, isto é, adaptou para o cordel, o seguinte trecho da obra de Schmid:

 

Dirigiu a palavra aos velhos com respeito, com bondade perguntou às mães de família a idade dos filhos e deu a todos um bonito presente. Ficaram todos encantados por ela e cheios de reconhecimento e dedicação. Quando, porém, ela anunciou que naquele ano os soldados e os criados teriam soldo duplo, que os vassalos não pagariam contribuições, que se faria aos pobres uma grande distribuição de lenha e de cereais, então o entusiasmo chegou ao seu cúmulo; de todos os lados romperam aclamações de regozijo. “Feliz, exclamaram os súditos do conde, feliz o homem que tem uma esposa assim! Feliz o país que tem chefes tão bons!” (Schmid, [19--?], p. 10).

 

O entusiasmo dos súditos também foi lembrado pelo poeta que fala por si próprio e não pelo povo nordestino, heterogêneo, como qualquer povo, e cujas questões sociais não se esgotam no protesto contra a tributação injusta nem se resumem ao assistencialismo:

 

Seus súditos exclamavam:

Feliz a nação que tem

Chefes assim como esses

Que transformam o mal em bem!

Velho desejou ser moço

Para ajudá-los também.

           

Baseada numa edição traduzida do francês, a reelaboração de José Duda conserva quase sempre os nomes dos personagens: Sigifroi (Sigefroi no romance) em vez de Siegfried, além dos carrascos de Genoveva, Conrado, mantido no cordel, e Roger, mudado para Roberto, talvez para aproveitamento numa rima. O filho da heroína, Benoni, no cordel e na edição da Garnier, alude à sua condição degradada, e foi inventado pelo padre Cériziers, seguindo a tradição medieval de justificar por meio da etimologia o destino do personagem:

 

Ela [Genoveva] dedica seus momentos de lazer à educação de seu filho a quem Cériziers, um tanto hebraizante, foi o primeiro a dar o nome de Bénoni. "Genoveva, chame seu filho de Benoni ou Tristão; ele deve levar o nome da madrinha, já que Deus é seu padrinho. " (Benoni é o nome que Raquel, mulher abandonada em benefício da irmã, dá ao seu filho (Gênesis, 35-18) (Velay-Vallantin, 1992, p. 188).

 

Na mesma versão, o esposo de Genoveva, que saíra à caça, a confunde com um urso. Conduzida imediatamente ao castelo, não há consagração da clareira à Virgem, como nas versões latina e alemã. Sua morte e sepultamento, em Cériziers, ocorre na gruta, mas não se menciona a construção de uma capela. Há, no entanto, a presença de um anjo, disfarçado em eremita, a consolar o conde. A morte da corça sob o túmulo de Genoveva, narrada por Schmid, passa despercebida no cordel, ao contrário do destino de Golo, que morre de desgosto na prisão; José Duda omite, porém, que a pena de morte decretada pelo conde fora comutada em prisão perpétua a pedido de Genoveva. Supressões desta ordem são, até certo ponto, aceitáveis, contudo, cenas de grande impacto dramático tendem a ser mantidas, especialmente no desfecho.

No Catálogo tipolóxico do conto galego de tradición oral, organizado por Camiño Noia Campos (2010), aparece com o título “Santa Xenoveva”, ratificando a sua canonização, mesmo que ao nível da lenda, e uma possível influência da cantiga V de Santa Maria no imaginário em torno do conto. Campos menciona ainda, em nota, duas versões recolhidas e fixadas por Agustin Durán, no Romancero general, no século XIX: “La peregrina doctora” e “Santa Genoveva, princesa de Brabante”, sendo a primeira o tipo clássico desde os tempos dos Miracle de la Vierge.

Folheto português, em prosa, do século XIX.

Edição espanhola, datada de 1836.

Para além das versões orais e escritas, a lenda de Genoveva de Brabante inspirou, em 1850, uma ópera em quatro atos de Robert Schumann, baseada em libreto do compositor Robert Reinick. No cinema, foi recontada algumas vezes, como, por exemplo, em um filme mudo franco-holandês de 1907, na produção hispano-italiana, dirigida, em 1964, por José Luis Monter. Outra produção italiana de 1947, dirigida por Primo Zeglio, atesta a popularidade da lenda. No cordel, há uma segunda versão, da década de 1950, assinada por Manoel Pereira Sobrinho, sem o mesmo alcance do poema de José Duda.

 

Referências

ABREU, Márcia Azevedo de. Cordel português / folhetos nordestinos: confrontos um estudo histórico-comparativo. Tese (Doutorado em Teoria Literária) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 1993. DOI: 10.47749/T/UNICAMP.1993.65335. 

CAMPOS, Camiño Noia. Catálogo tipolóxico do conto galego de tradición oral. Vigo: Servizo de Publicacións da Universidade de Vigo, 2010.

DUDA, José Galdino da Silva. Os martírios de Genoveva. São Paulo: Luzeiro, 1988.

SCHMID, Chistoph von. Genoveva de Brabant. Rio de Janeiro: Garnier, [19--?].

VELAY-VALLANTIN, Catherine. L'histoire des contes. Paris: Fayard,1992.

Nota: O texto acima foi adaptado de um trecho da dissertação de mestrado de Marco Haurélio (O fio da meada: classificação tipológica e uma história cultural da literatura de cordel, defendida em 2024 na Universidade de Campinas).

Para acessar o texto na íntegra, clique AQUI.


sexta-feira, 28 de março de 2025

Mostra Vidas em Cordel faz história no Museu da Língua Portuguesa

 Vidas em Cordel, uma exposição para a história

Por: Lucélia Borges no blogue Xilo-Mulher

Foto: Guilherme Sai.

A exposição Vidas em Cordel é, sem dúvidas, um marco na história da poesia popular e em minha caminhada, como produtora cultural e xilogravadora. Idealizada pelo Museu da Pessoa, em celebração aos 30 anos deste importante repositório da memória nacional, reúne depoimentos colhidos ao longo de 30 anos adaptados para o cordel. 

Jonas Samaúma. Acervo: Museu da Pessoa.

Os primeiros folhetos foram escritos por Jonas Samaúma, cocurador da exposição, com xilogravuras de Artur Soar; depois, Marco Haurélio e eu fomos convidados para a criação de textos e imagens que abarcassem o universo do cordel em consonância com a história dos entrevistados. 

Nomes como Ailton Krenak, Gilberto Dimenstein e Roberta Estrela Dalva aparecem ao lado de outros não tão conhecidos do grande público, mas igualmente importantes, afinal, como diz o lema do Museu da Pessoa, toda história importa. E toda vida dá um cordel.

A exposição percorreu cidades da Bahia, incluindo o Museu Afro, em Salvador, Pernambuco e Minas, até desembarcar, em 2 de novembro, no Museu da Língua Portuguesa, convertendo-se num evento de grande sucesso. Tanto que ganhou mais dois meses, dada a grande procura do público que, além da exposição, pode levar para a casa folhetos de cordel narrando as biografias das pessoas mencionadas acima, incluindo três figuras lendárias do entorno do Parque da Luz, onde se localiza o Museu da Língua Portuguesa, todas já falecidas: MC Kawex, Cleone dos Santos e Idibal Pivetta (César Vieira).

Marco Haurélio lê folheto que narra a história do Museu da Língua Portuguesa.
Foto: Acervo Museu da Pessoa.

Além de Jonas e Marco Haurélio, a coleção conta com versos de José Santos, Mestre Bule-Bule, Rouxinol do Rinaré, Maria Celma, Gigio Paiva, Nilza Dias e Klévisson Viana. E com xilogravuras de Regina Drozina, Maercio Siqueira, Jefferson Campos, além de mim e de Artur Soar.

Lucélia Borges. Foto: Bel Santos Mayer.

E neste sábado, 29 de março, a partir das 11 da manhã, ministrarei uma oficina de xilogravura e isogravura, encerrando as atividades formativas da exposição. 

Quem tiver interesse, pode se inscrever no link:https://pt.surveymonkey.com/r/MRNVKSG

Para conhecer a exposiçãovirtual, basta acessar o site do Museu da Pessoa.

Clique aqui para assistir a uma matéria do Jornal da Cultura na abertura da exposição. 

Mais fotos:

Folheto de autoria de José Santos em homenagem ao falecido jogador Dário Alegria.

Teresa e Lucas Lara, do Museu da Pessoa, ao lado de Lucélia Borges.

 



quarta-feira, 26 de março de 2025

As virtudes da mentira


Chicó, o menino das cem mentiras
folheto de Pedro Monteiro.

Na literatura de cordel, Diferente do que ocorre no conto popular, as patranhas são mais raras, embora encontremos, aqui e ali, versões de tais histórias, a mais divulgada delas, O contador de mentira, de Hélio Cavenaghi (1927-1984), inspirada nas Aventuras do Barão de Münchhausen. À diferença das narrativas de tolos ou sabichões, que quase sempre começam de forma realista, a presente história é absurda desde o prólogo:

Esta nossa personagem

É o primeiro sem segundo.

Nasceu em Pilão sem Boca,

Perto de Prato sem Fundo –

Com piadas e anedotas,

Ele agrada a todo mundo.

 

Atrai toda a vizinhança

Até alta madrugada.

Tem gente que se ri tanto

Que sai de barriga inchada;

Outros passam dez minutos

Com a boca escancarada.

 

É Pedro Conta-Mentira,

Filho de Joaquim Teimoso

E Maria Língua Solta,

Neto do velho Trancoso,

Que se notabilizou

Como o maior mentiroso.  (CAVENAGHI, 1978, p. 3-4)

O sujeito começa a desfiar seu rosário de mentiras: ao fugir de uma onça, percebeu que esta ia, aos poucos e na carreira, comendo o seu jegue. Por fim, o comeu inteiro, ficando ele montado na onça arreada. Em outra ocasião, em uma caçada, tendo esquecido em casa a espingarda, amarra um toucinho à linha de pesca, engolida por uma marreca.

Logo veio uma marreca,

E o toucinho ela papou;

Do papo para a moela

O toucinho escorregou,

Saindo pelo fiofó,

Tão depressa como entrou.

 

Veio logo outra marreca,

Olhando o toucinho, viu;

O bicho liso, molhado,

Rapidamente engoliu –

Em menos de dois segundos,

Do outro lado saiu. (Idem, 1978, p.9)

Ao todo, trinta e seis marrecas são “pescadas” e o caçador/pescador, içado por elas, passa a torcer o pescoço de cada uma até pisar o chão novamente. Classificado como ATU 1889 (Histórias de exageros), Münchhausen Tales em inglês, é o mais característico dos tipos miscelânicos entre as patranhas.

O poeta Doddó Félix, em Mentira só presta grande, reproduz o conto do menino que, substituindo o pai, precisa narrar ao rei, sob ameaça de morte, cem mentiras emparelhadas, e o faz com toda a mestria (ATU 1920C: Uma mentira maior que o padre-nosso). Começa narrando como o pai foi atrás de uma abelha e, encontrando-a presa numa folha, vai em busca de um machado. Danificando-o, vai em busca do ferreiro, que refunde o martelo transformando-o em anzol; pesca uma carga de rapadura, mas como boi que a transportava estava com a pata machucada, ensinam-lhe a pôr fava como curativo.

Então, na dúvida, aplicou

No bicho uma fava inteira

Pra seu espanto, nasceu

No animal uma faveira

Que botou fava adoidado

E ele foi vender na feira. (Félix, 2009, P. 5)

Segue para o pasto, puxando o boi por uma corda, montado a cavalo com chocalho de seda e badalo de lã. O rei, não se aguentando mais, declara-se satisfeito. Na fabulação de Pedro Monteiro, Chicó, o menino das cem mentiras, o rei é substituído por um coronel nordestino. Depois de Chicó contar mentiras encadeadas, cumprindo o acordado por seu pai, o sujeito, antes irascível, se enternece com a astúcia do menino:

O Coronel o fitou

Com os olhos marejando,

Vendo uma fotografia

Do que estava escutando.

Era o menino Chicó 

Sua lorota contando. (Monteiro, 2009, p. 13)

O Barão de Münchhausen teve em Alexandre, personagem criado por Graciliano Ramos, em 1938, um oponente à altura. Alexandre, “homem cheio de conversas, meio caçador e meio vaqueiro, alto, magro, já velho”, segundo o velho Graça, “tinha um olho torto e falava cuspindo a gente, espumando como um sapo-cururu...” (RAMOS, 1991, p. 9). Para ouvir suas lorotas, sempre reafirmadas como verdade pela esposa Cesária, acorriam à sua casa tipos como o embolador Libório, o negro cego Firmino e o curandeiro Gaudêncio, além da benzedeira Das Dores. O grupo forma um microcosmo dos tipos comuns nos sertões de antanho, sendo Firmino, o mais cético de todos, o contraponto racional aos delírios do anfitrião. No primeiro relato, Alexandre explica o porquê de o seu olho ser torto. Quando era jovem, saindo em demanda de uma égua pampa de propriedade do pai, se perdeu na escuridão da noite, em que só se avistava o carreiro de sant’Iago. Ao ouvir barulho de animal saciando a sede, e avistar dois vultos, do que deviam ser a água e uma cria, saltou sobre o seu lombo e pôs-lhe os arreios enquanto galopava. Caiu sobre um espinheiro, ficando com o rosto lanhado e a pele esfolada. Contudo, conseguiu, ainda, montar que supunha ser a égua. Chegou em casa dia claro, amarrou o animal no mourão para descobrir, depois, que, em vez de égua, montara uma onça-pintada.

Notando o estado de Xandu (seu apelido), um irmão trouxe-lhe um espelho. Só então ele se deu conta de que enxergava tudo pela metade. Havia perdido um olho e precisava reavê-lo. Encontrou-o “murcho, seco, espetado na ponta de um garrancho, todo coberto de moscas” (RAMOS, , p. 18). Pô-lo de volta e viu sua cabeça por dentro, miolos e até mesmo seus pensamentos. O olho fora posto pelo avesso. Segundo o faroleiro, “havia apenas uma parte das plantas, do céu, do coração, das tripas, das figuras que se mexiam dentro da minha cabeça.” (Idem, p. 23). Stélio Torquato Lima, vertendo o causo para o cordel, resumiu a passagem nesta setilha:

 

E depois, baixando a vista,

Eu vi o meu coração,

Minhas tripas, o meu bofe,

Fígado, cada pulmão...

Com o outro olho eu via

Metade do que havia

Ao redor. Que confusão! (Lima, 2024, p. 12)


Histórias de um mentiroso, cordel de Nezite Alencar.

Francisca Nezite Alencar, em Histórias de um mentiroso, narra as peripécias de Joaquim Trigueiro, vaqueiro que, em demanda de um boi fujão, repete a façanha de Alexandre. Depois de capturar o boi e levá-lo ao mourão, Joaquim percebe um líquido melado a escorrer-lhe no rosto. Volta na mesma batida (trilha) e reencontra o olho, espetado num espinho, branco de ovos de vareja. Mas deixemos que Nezite, ou melhor, Joaquim narre o desfecho:

Tomei um copo de vinho,

num instante me acalmei,

peguei o olho bichado,

com água quente escaldei,

coloquei-o no lugar,

mas tudo errado enxerguei.

 

Dentro de mim avistei

Tripa, bofe e coração,

Foi aí que percebi

Ter havido confusão,

Tirei o olho de novo

Pra fazer a correção.

 

Botei na palma da mão,

A posição ajeitei

E depois com muita calma

No lugar recoloquei

Melhor do que com o outro

Com este olho enxerguei. (2009, p. 8)

É de se presumir que esses faroleiros descendam de Ulisses, herói ambivalente por excelência, e de Simbad, o marinheiro das sete viagens, narradas espetacularmente por ele, no Livro das mil e uma noites. A maior parte das façanhas de Ulisses, incluindo a burla do gigante Polífemo, são contadas pelo próprio, na corte de Alcínoo, rei da Feácia, o que instiga Ítalo Calvino a fazer alguns questionamentos:

Se Ulisses é um simulador, todo o relato que ele faz ao rei dos feacos [Alcínoo] poderia ser mentiroso. De fato, suas aventuras marítimas, concentradas em quatro livros centrais da Odisseia, rápida sucessão de encontros com seres fantásticos, que surgem nas fábulas do folclore de todos os tempos e lugares: o ogro, Polifemo, os ventos encerrados no odre, os encantos de Circe, sereias e monstros marinhos), contrastam com o restante do poema, em que dominam os tons graves, a tensão psicológica, o crescendo dramático, gravitando sobre um objetivo: a reconquista do reino e da mulher cercados pelos prócios. (Calvino, 2007, p. 12)

Bettelheim, por seu turno, sugere que Simbad, o marujo, e Simbad, o carregador de água, para quem o primeiro narra fantásticas aventuras marítimas, são dois aspectos de uma mesma pessoa, representando, respectivamente, o princípio do prazer e o princípio da realidade: 

Quando a estória começa, Simbad, um simples carregador, está descansando em frente a uma linda casa. Meditando sobre sua situação, diz: "O dono deste lugar convive com todos os prazeres da vida e se delicia com perfumes agradáveis, comidas excêntricas e vinhos exóticos..., enquanto outros suportam o máximo de trabalho.... como eu". Ele assim justapõe uma existência baseada em satisfações agradáveis a uma baseada na necessidade. Para estarmos certos de que entendemos como estas observações pertencem a dois aspectos de uma só pessoa, Simbad diz sobre si mesmo e sobre o ainda desconhecido dono do palácio: "A origem dele é minha e minha proveniência é dele". (Bettelheim, 1980, p. 105-6)

Frame do filme O Auto da Compadecida, com o autor Selton Melo (Chicó)
Imagem: Reprodução/Globoplay. 

O episódio da ilha-baleia, imagem-símbolo do monstro bíblico Leviatã, aparece já na primeira viagem de Simbad e evoca os horrores de Cila e Caribde na Odisseia. Reaparecerá, em tom de galhofa, entre as histórias do Barão de Münchhausen, e de Pedro Conta-Mentira. Ambos são engolidos por um grande peixe, à maneira do profeta Jonas, e escapam, acendendo um cachimbo dentro do interior do animal. Similar à patranha contada por Chicó (o princípio do prazer) a João Grilo (o princípio da realidade no Auto da Compadecida), sobre o pirarucu que o pescou, depois de ele haver atirado o arpão, arrastando-o por três dias e três noites, pelo rio Amazonas. Ao ser indagado se passara fome, depois de tanto tempo sem comer, Chicó responde: 

Fome não, mas era uma vontade de fumar danada. E o engraçado foi que ele deixou para morrer bem na entrada de uma vila, de modo que eu pudesse escapar. (Suassuna, 2018, p. 55) 

Novamente, a referência ao profeta Jonas, comprovando a faceta paródica de todos os mentirosos contemporâneos, e ao rito do engolimento ritual, simbolizado pela libertação de Chicó, que estava amarrado junto ao peixe, cena certamente decalcada do desfecho de Moby-Dick. O riso emerge do fato de Chicó noticiar que acenara a uma lavadeira para, em seguida, o amigo, tal qual o cego Firmino, em Alexandre, questioná-lo sobre como fez aquilo, estando de braços amarrados.

Olhar para dentro de si (e rir de si mesmo)

A ausência de limites, sugerida pelo carnaval, é representada pelos personagens cômicos, em cujos rostos projetamos os nossos desejos reprimidos. Se a comédia se origina da tragédia, a reparação, no plano simbólico, é a constatação de que, quase sempre, fracassamos, em nossos pactos, ritos e tratados no mundo “real”. Nietzsche via no cômico “a descarga artística da náusea do absurdo”, o oposto do sublime, associado “à domesticação artística do horrível” (Nietzsche, 2007, p. 53) e, podemos acrescentar, do grotesco. O filósofo do martelo, ao considerar ilusório o saber artístico de seu tempo, sugere uma fusão com “o artista primordial do mundo”, simbolizado por Dionísio, para que vivamos

[...] naquele estado [que] assemelha-se, miraculosamente, à estranha imagem do conto de fadas, que é capaz de revirar os olhos e contemplar-se a si mesma; agora ele é ao mesmo tempo sujeito e objeto; ao mesmo tempo poeta, ator e espectador (Ibid., p. 45, grifo nosso).

Foi isso que fez Alexandre que, com seu olho torto, consertou o mundo (ao menos o seu mundo interior). É isso que fazem os poetas cômicos de todas as épocas, reinterpretando os ritos, subvertendo os costumes, por meio do riso, fertilizador da terra e renovador da vida. A própria literatura de cordel, se não encontrar seu equilíbrio entre o princípio da realidade e o princípio do prazer, perderá sua relevância. Recorramos a Vladimir Propp:

Se hoje nos encanta a presença de certos limites, outrora o que fascinava era a ausência de fronteiras, àquilo que habitualmente se considera ilícito e inadmissível e que costuma suscitar uma grande risada. Nas estéticas burguesas, esse gênero de riso é classificado entre os mais “baixos”. É o riso das praças, dos bufões, é o riso das festas e das diversões populares (Propp, 1992, p. 166).

É também o riso de Mateus e Bastião, do Arlequim e da Columbina, de Ariano Suassuna e de José Pacheco, de Arievaldo Viana e de Dalinha Catunda. O riso satírico, que promove o desmascaramento dos poderosos e a entronização dos “barões famintos” que ousam sobreviver às cinzas de quarta-feira.

 

Referências:

ALENCAR, Nezite. Histórias de um mentiroso. Crato, CE: Academia de Cordelistas do Crato, 2009.

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Tradução: Arlene Caetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. Tradução: Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

CAVENAGHI, Hélio. O contador de mentira. São Paulo: Luzeiro, 1978.

FÉLIX, Doddó. Mentira só presta grande. Bom Jardim, PE: Edição do Autor, 2009.

LIMA, Stélio Torquato. O olho torto de Alexandre. Fortaleza: Rouxinol do Rinaré Edições, 2024.

MONTEIRO, Pedro. Chicó, o menino das cem mentiras. São Paulo: Luzeiro, 2009.

NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. Tradução: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

PROPP, Vladimir. Comicidade e riso. Tradução: Aurora Fornoni Bernardini; Homero Freitas de Andrade. São Paulo: Ática, 1992.

RAMOS, Graciliano. Alexandre e outros heróis. Rio de Janeiro: Record, 1991.

SUASSUNA, Ariano. Auto da compadecida. 39. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.


Nota: Texto extraído de um intertítulo do capítulo 7 (Comicidade e riso na literatura de cordel) da nossa dissertação O fio e a meada : classificação tipológica e uma história cultural da literatura de cordel / Marcus Haurélio Fernandes Farias. – Campinas, SP : [s.n.], 2024.

Para acessar o texto na íntegra, clique A Q U I