sexta-feira, 13 de junho de 2008

Literatura de Cordel: tradição e contemporaneidade


Por: Marco Haurélio[1]

A literatura de cordel que imperou no Nordeste, em fins do século XIX até o terceiro quartel do século XX, é, em linhas gerais, a poesia popular impressa e herdeira do romanceiro tradicional, da literatura oral (em especial dos contos populares, com predominância dos contos de encantamento). O cordel é um dos galhos da árvore da poesia popular, como o repente também o é. Mas cordel e repente não são a mesma coisa, pois, à medida que a árvore cresce, os galhos vão se distanciando, embora estejam unidos pela origem comum. Grandes repentistas se aventuram pelas sendas do cordelismo, a começar por Silvino Pirauá de Lima (1848-1913), um dos pioneiros da literatura popular, autor dos clássicos O Capitão do Navio e Zezinho e Mariquinha.

Outros poetas que transitaram por ambas as sendas foram José Galdino da Silva Duda, José Vila Nova (pai do famoso Ivanildo), Natanael de Lima, Severino Borges Silva, entre outros grandes nomes já falecidos. Entre os vivos, vale citar José João dos Santos, o Mestre Azulão – paraibano radicado no Rio de Janeiro, um dos fundadores da feira de São Cristóvão - e Antônio Américo de Medeiros, potiguar estabelecido em Patos, Paraíba. Repentistas que se aventuram com sucesso pela literatura de cordel, apesar de raros nos dias atuais, existem. E gente do primeiro time: Geraldo Amâncio Pereira, apresentador do programa televisivo Ao Som da Viola, pela tv Diário; Sebastião Marinho, presidente da União dos Cordelistas, Repentistas e Apologistas do Nordeste – UCRAN, sediada em São Paulo; e Zé Maria de Fortaleza, para ficar em alguns poucos mas significativos nomes.Então, tiremos de uma vez por todas a dúvida: repentista não é cordelista, e cordelista não é repentista. Repentista pode ser cordelista, e vice-versa. Mas não é regra.

Quando a literatura de cordel, ou de folhetos, estava engatinhando e tomando forma, no tempo do poeta maior Leandro Gomes de Barros (1865-1918), viviam, na região do Teixeira, Paraíba, afamados cantadores, como Inácio da Catingueira, Romano da Mãe d’Água e o próprio Pirauá. Havia uma presença mais marcante da oralidade, pois, nesse tempo, eram poucos os alfabetizados. Mas, nas raras horas de ócio, as pessoas se reuniam em torno de alguém que soubesse ler, e se deleitavam com os romances fenomenais do Mestre Leandro: O Cachorro dos Mortos, Os Sofrimentos de Alzira, A Força do Amor, O Boi Misterioso. Outros poetas surgiram, alguns geniais. A edição e comercialização da literatura de cordel atingiram um alto grau de profissionalismo com João Martins de Athayde, poeta paraibano estabelecido no Recife, e com Francisco Lopes, pernambucano levado pela onda migratória a Belém do Pará, onde dirigiu a lendária Guajarina. Outros editores que aperfeiçoaram o comércio do cordel foram José Bernardo da Silva, sucessor de Athayde, em Juazeiro do Norte, João José da Silva, com a Luzeiro do Norte em Recife e Manoel Camilo dos Santos, que pontificou entre Guarabira e Campina Grande.

Outros nomes dignos de nota são José Alves Pontes (Guarabira), Joaquim Batista de Senna, paraibano que fez história no Ceará, e Manoel Caboclo, estabelecido com sua folhetaria Casa dos Horóscopos em Juazeiro. Em São Paulo desde os anos de 1910 existia a Tipografia Souza, fundada pelo imigrante português José Pinto de Souza. Em 1950, desta tipografia surgiu a Editora Prelúdio, já dirigida pelos irmãos (adotivos) Arlindo Pinto de Souza, filho de José, e Armando Lopes. Dois anos depois, a editora publicaria seu primeiro cordel no formato que a consagrou, com capa em policromia e tamanho maior que o nordestino (13,5X18). Era um romance chamado O Amor que Venceu, de Antônio Soares de Maria. Um dramalhão muito ruim, diga-se. No mesmo período, o ex-garimpeiro e poeta popular Antônio Teodoro apresenta alguns originais à editora. Teodoro escrevia sobre tudo, para todos. Seu cordel Vida e Tragédia do Presidente Getúlio Vargas, de 1954, escrito após o suicídio de Getúlio vendeu, na primeira edição, impressionantes 260 mil exemplares. Começa o período áureo da literatura de cordel fora do Nordeste.

Entretanto o tempo, os problemas econômicos, o êxodo rural e a escassez de bons poetas, após a geração que vai até a década de 1940 (Enéias Tavares dos Santos, João Firmino Cabral, Manoel Monteiro, João Lucas Evangelista, Mestre Azulão, Cícero Viera, entre outros) fizeram com que as trombetas fúnebres, na década de 1980, decretassem a morte do cordel. A Editora Luzeiro, sucessora da Prelúdio, foi a única a sobreviver às crises e seguiu imprimindo os clássicos do gênero sob a orientação abalizada de Manoel D’Almeida Filho. Em 1990, Arlindo Pinto vende a editora à firma dos Irmãos Nicoló, e a Luzeiro passa por um período de dificuldades, no mesmo período em que morre Manoel D’Almeida Filho, amargurado ante o futuro incerto da editora e da própria literatura de cordel. Hoje, Gregório Nicoló é o único proprietário, e a Luzeiro, superando os problemas, renova as suas publicações, mantendo os títulos tradicionais, ainda com boa aceitação popular.

Nos anos 1990, surge no Ceará uma nova geração de talentosos poetas populares, capitaneada por Klévisson Viana, que fundaria a Editora Tupynanquim, em Fortaleza. Klévisson, juntamente com seu irmão Arievaldo Viana, Rouxinol do Rinaré (nome de guerra de Antônio Carlos da Silva), Evaristo Geraldo, José Mapurunga e outros valores daquele estado restituíram à Fortaleza a tradição que teve nos poetas editores Moisés Matias de Moura, Luís da Costa Pinheiro e Joaquim Batista de Sena, firmes baluartes tempos atrás. No Rio de Janeiro, Gonçalo Ferreira da Silva, cearense de Ipu, poeta com raízes eruditas e populares, concebeu e deu vida à Academia Brasileira de Literatura de Cordel, a ABLC, em 1988. Na ata de fundação, nomes históricos da literatura de cordel emprestam seu prestígio à entidade. A Academia acabou se fundindo com a Casa de Cultura São Saruê, criada pelo General Umberto Peregrino, e incorporou ao seu acervo preciosidades hoje à disposição de estudiosos e entusiastas do cordel. Outras entidades espalhadas pelo Brasil continuam a luta encampada por Rodolfo Coelho Cavalcante (1918-1986), maior liderança da história do cordel, responsável pelo Primeiro Congresso de Trovadores e Repentistas, de 1955.

Os maiores sucessos são os eternos clássicos O Pavão Misterioso (José Camelo de Melo Resende), A Chegada de Lampião no Inferno (José Pacheco), As Proezas de João Grilo (João Ferreira de Lima) e A Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho do Tucum (Firmino Teixeira do Amaral). Lampião é a personagem histórica de maior projeção, e sua popularidade resiste à era digital. O maior romance ainda é O Direito de Nascer, de Manoel D’Almeida Filho, com 719 sextilhas. No formato livro, ressalve-se. É nesse formato que o cordel está chegando a um outro público, além do tradicional. Em São Paulo, neste 2008, a editora Nova Alexandria lançou, sob minha coordenação, a Coleção Clássicos em Cordel, com releituras de obras clássicas por cordelistas respaldados. Já foram impressos O Corcunda de Notre-Dame, de João Gomes de Sá, e Os Miseráveis, de Klévisson Viana. Ambas adaptações de obras famosas do escritor francês Victor Hugo. Outros títulos estão a caminho.

João Acaba-Mundo e a Serpente Negra, de Minelvino Francisco Silva,
cordel clássico com capa em policromia, assinada por Mateus (19
59).
Ilustrações A ilustração não nasceu com o cordel. Antes eram usadas as chamadas “capas cegas”, sem qualquer ilustração. A xilogravura é um fenômeno relativamente recente, apesar de ter sido usada em 1907, na ilustração de uma capa de um folheto de Francisco das Chagas Batista enfocando Antônio Silvino. Fato isolado. Os desenhos e os clichês de cartões postais e com fotos de artistas de Hollywood eram os preferidos dos editores, a começar pelo lendário Athayde. A xilogravura nunca teve ampla aceitação no meio popular, mas a Academia a adotou como a ilustração por excelência dos folhetos de cordel. A bem da verdade, diga-se: a xilogravura é a ilustração mais característica, mas não a única. A essência de um bom cordel está no texto e não na capa, no vestuário. O cordel (texto e ilustração) evoluiu, e nenhum poeta ou editor antenado abre mão da tecnologia para oferecer ao público edições bem cuidadas. Sem esquecer a tradição, sem desprezar a modernidade. O cordel, por conta disso, chega vivo e com fôlego ao século XXI.
O Padre Jogador, editado por Leandro Gomes de Barros.
[1] Poeta popular, folclorista, autor de vários folhetos de cordel, com destaque para Presepadas de Chicó e Astúcias de João Grilo. É coordenador da Coleção Clássicos em Cordel da editora Nova Alexandria, e autor de Contos folclóricos brasileiros (Paulus).

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