Capa do livro infantil A Lenda do Saci-Pererê em Cordel |
31 de outubro foi escolhido para ser o dia do Saci em
oposição ao Dia das Bruxas (Halloween),
comemorado na mesma data. Como o Halloween
não chegou até nós pelos meios tradicionais, argumenta-se que sua influência é
perniciosa. Polêmicas à parte, acredito que a escolha do Saci para combater as
bruxas do folclore celta, bem como a discussão conduzida nestes termos, resultam em um
grande equívoco. O Halloween faz
parte das festas solsticiais e está ligado ao culto aos mortos (antepassados).
"Comemoramos", no dia 2 de novembro, o feriado de Finados, que deriva
também desta crença. Neste dia, as almas dos afogados caminham sobre o mar, açudes. Nas horas abertas, os mortos
visitam os locais onde viveram ou onde seus corpos foram assassinados (Câmara
Cascudo, verb. Finados, Dicionário do Folclore Brasileiro, p. 315).
O Samh’in (também
se grafa Samhain), ou “fogo da paz”
era um dos maiores festivais dos druidas, realizado no início de novembro.
Ainda hoje persiste, na Escócia, com o nome de Hallow-eve. A informação é de Thomas Bulfinch, em seu The age of fable. O fogo aceso tinha por
finalidade restaurar o vigor do sol que, no hemisfério Norte, parece agonizante
(Jeffrey Burton Hussell). Os cristãos, com o fito de combater a superstição,
inventaram, no dia 1º de novembro, o Dia de Todos os Santos, o All
Saint’ Day. O “fogo sagrado”
continua sendo aceso nas sepulturas onde descansam os corpos de nossos entes
queridos.
***
A escritora e estudiosa dos contos tradicionais, Ana Lúcia
Merege, em seu blog A Estante Mágica de
Ana, abordou, de forma brilhante, o tema no artigo As origens do Halloween.
Nele, Ana cita um emblemático personagem do folclore irlandês, Jack O’ Lantern,
que alguns estudiosos, como Gustavo Barroso, dizem ter origens nos fogos-fátuos,
assim como o nosso Boitatá:
O Halloween tem origem na Irlanda celta, onde, por volta do
século V antes de Cristo, o Verão terminava oficialmente a 31 de Outubro. O
feriado era chamado sow-em, ou
Samhain, e correspondia ao Ano Novo dos Celtas. Nesse dia, acreditava-se que os
espíritos dos mortos voltavam em busca de corpos que pudessem ocupar durante o
ano seguinte. Não querendo (compreensivelmente) abrir mão dos seus, os aldeões
apagavam o fogo em suas casas – a fim de torná-las frias e pouco acolhedoras –
e se vestiam, eles mesmos, como seres maléficos, que faziam ruídos terríveis,
na tentativa de desencorajar o ataque dos fantasmas.
Os romanos que ocuparam o território celta adotaram as
práticas, mas, no primeiro século de nossa era, o Samhain foi integrado às
celebrações em honra de Pomona, a deusa latina dos pomares e colheitas. Mais
tarde, quando o mundo romano se tornou cristão, os festejos se incorporaram aos
ritos populares ligados ao Dia de Todos os Santos, em Inglês All Hollows Day, cuja véspera – All Hollows Eve, de onde vem o
termo Halloween – era tradicionalmente o dia em que os mortos e as
bruxas ficavam à solta.
A prática do “trick or treat” que vemos (já bastante
edulcorada) nos filmes americanos vem de uma tradição que remonta ao século IX,
chamada souling nas Ilhas Britânicas.
De acordo com essa tradição, na noite de Halloween os jovens percorriam as
casas de sua cidade ou aldeia pedindo contribuições – dinheiro, mas
principalmente tortas e bolos – em troca das quais rezariam em intenção das
almas dos mortos. O costume de se vingar dos que se negassem a contribuir deve
ter surgido quase simultaneamente – e, conhecendo a cultura medieval, pode-se
imaginar a que tipo de “travessura” estavam sujeitos os incautos que ousassem
desafiar os jovens bruxos e duendes!)
Já o Jack O´Lantern – ou Jack da Lanterna – pertence
originalmente ao folclore irlandês. Trata-se de um espertalhão que, tendo
conseguido enganar o Diabo, não foi por este admitido no Inferno quando morreu,
mas que também não tinha merecimento suficiente para entrar no Paraíso. Assim,
ele é obrigado a vagar entre os dois mundos, iluminando seu caminho com uma
brasa. Para que ela não se apague, Jack a carrega dentro de um nabo. Sim, isso
mesmo: um nabo, não uma abóbora. A abóbora foi uma adaptação feita por aqueles
irlandeses que, durante a Fome da Batata (por volta de 1840), migraram para a
América do Norte, ali introduzindo o Halloween... que ganhou contornos locais,
entre os quais a substituição do nabo pela abóbora nativa.
Pois agora, muitos anos depois, o Halloween começou a ganhar
força aqui no Brasil, embora (que eu saiba) as crianças ainda não estejam
pedindo doces de porta em porta. A festa é denunciada pelos defensores mais
radicais da cultura nacional como mais um produto do colonialismo
norte-americano, mas alguns grupos preferiram dar um "jeitinho
brasileiro" e organizam o “raluim caipira”, com abóbora e carne-seca no
cardápio e tendo como símbolo o Saci-Pererê. Pessoalmente, não vejo problema
algum em adotarmos o Halloween, pois ele não é uma "tradição americana”:
tem suas raízes na mesma cultura mista, pagã e cristã, que celebra juntos o
nascimento de Jesus e o Solstício de Inverno. É verdade que o Natal já era
comemorado pelos portugueses quando vieram para o Brasil, mas outros símbolos
natalinos, bem posteriores, foram adotados aqui, tais como a árvore de Natal,
que veio com os colonos alemães no século XIX (quem lembra das críticas feitas
pelo povo de Santa Fé em “Um Certo Capitão Rodrigo”, que preferia o presépio
por ser “mais nosso e mais bonito”?) e a figura de São Nicolau, depois
transformado em Papai Noel e popularizado através dos slogans de uma conhecida
marca de refrigerante.
Pois a substituição do Jack Lanterna pelo Saci Pererê me
parece tão forçada quanto a idéia de Monteiro Lobato de colocar, no lugar do
Papai Noel, um Vovô Índio. Isso aconteceu na década de 30 e tinha o mesmo
pretexto de valorizar a cultura nacional. No entanto, o Halloween começou a ser
comemorado aqui exatamente como, há menos de dois séculos, passou-se a
comemorar um Natal com características da Europa do Norte: nos lugares onde se
tinha mais contato com a cultura estrangeira. Naquele caso, eram as colônias,
neste foram as escolas americanas e os cursos de Inglês. E, é claro... hoje, os
meios de propagação são muito mais rápidos.
Que a data tenha se espalhado por outras escolas, outros
jovens, outras famílias e grupos sociais não é de se estranhar. Todo mundo
gosta de uma festa a fantasia. Além disso, as bruxas de chapéu pontudo, os
vampiros, os monstros do Halloween americano podem ter chegado aqui no século
XX, mas não chegaram com a globalização. Todos temos referências deles através
do cinema e da Literatura, e, em nosso imaginário, já começaram a se confundir
com as bruxas e duendes do nosso próprio folclore. Porque eles existem, ah...!
Isso é que existem...
Assim, querer “erradicar” o Halloween do Brasil ou pretender
que se pode festejá-lo deixando de lado qualquer influência estrangeira é
querer deter um processo de assimilação que, bom ou mau, a essa altura me
parece irreversível. Bem melhor, a meu ver, será abrir o círculo, contribuindo
para a criação de uma nova festa, na qual estaremos integrados e não
aculturados.
Um Halloween urbano e caboclo, com tudo que temos
direito.
Uma festa de pagãos e cristãos, com vampiro, lobisomem e
saci-pererê.
Nota do Cordel
Atemporal: na tradição
oral luso-brasileira, Jack O’ Lantern aproxima-se muito de João Soldado, personagem
que figura em folhetos de cordel, como o célebre João Soldado, o valente praça que meteu o diabo no saco, de Antônio
Teodoro dos Santos.