sábado, 29 de outubro de 2011

Saci, Halloween, Dia de Finados e outros assuntos


Capa do livro infantil A Lenda do Saci-Pererê em Cordel
31 de outubro foi escolhido para ser o dia do Saci em oposição ao Dia das Bruxas (Halloween), comemorado na mesma data. Como o Halloween não chegou até nós pelos meios tradicionais, argumenta-se que sua influência é perniciosa. Polêmicas à parte, acredito que a escolha do Saci para combater as bruxas do folclore celta, bem como a discussão conduzida nestes termos, resultam em um grande equívoco. O Halloween faz parte das festas solsticiais e está ligado ao culto aos mortos (antepassados). "Comemoramos", no dia 2 de novembro, o feriado de Finados, que deriva também desta crença. Neste dia, as almas dos afogados caminham sobre o  mar, açudes. Nas horas abertas, os mortos visitam os locais onde viveram ou onde seus corpos foram assassinados (Câmara Cascudo, verb. Finados, Dicionário do  Folclore Brasileiro, p. 315).

O Samh’in (também se grafa Samhain), ou “fogo da paz” era um dos maiores festivais dos druidas, realizado no início de novembro. Ainda hoje persiste, na Escócia, com o nome de Hallow-eve. A informação é de Thomas Bulfinch, em seu The age of fable. O fogo aceso tinha por finalidade restaurar o vigor do sol que, no hemisfério Norte, parece agonizante (Jeffrey Burton Hussell). Os cristãos, com o fito de combater a superstição, inventaram, no dia 1º de novembro, o Dia de Todos os Santos, o  All Saint’ Day. O “fogo  sagrado” continua sendo aceso nas sepulturas onde descansam os corpos de nossos entes queridos. 
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A escritora e estudiosa dos contos tradicionais, Ana Lúcia Merege, em seu blog A Estante Mágica de Ana, abordou, de forma brilhante, o tema no artigo As origens do  Halloween. Nele, Ana cita um emblemático personagem do folclore irlandês, Jack O’ Lantern, que alguns estudiosos, como Gustavo Barroso, dizem ter origens nos fogos-fátuos, assim como o nosso Boitatá:

O Halloween tem origem na Irlanda celta, onde, por volta do século V antes de Cristo, o Verão terminava oficialmente a 31 de Outubro. O feriado era chamado sow-em, ou Samhain, e correspondia ao Ano Novo dos Celtas. Nesse dia, acreditava-se que os espíritos dos mortos voltavam em busca de corpos que pudessem ocupar durante o ano seguinte. Não querendo (compreensivelmente) abrir mão dos seus, os aldeões apagavam o fogo em suas casas – a fim de torná-las frias e pouco acolhedoras – e se vestiam, eles mesmos, como seres maléficos, que faziam ruídos terríveis, na tentativa de desencorajar o ataque dos fantasmas. 

Os romanos que ocuparam o território celta adotaram as práticas, mas, no primeiro século de nossa era, o Samhain foi integrado às celebrações em honra de Pomona, a deusa latina dos pomares e colheitas. Mais tarde, quando o mundo romano se tornou cristão, os festejos se incorporaram aos ritos populares ligados ao Dia de Todos os Santos, em Inglês All Hollows Day, cuja véspera – All Hollows Eve, de onde vem o termo Halloween – era tradicionalmente o dia em que os mortos e as bruxas ficavam à solta. 

A prática do “trick or treat” que vemos (já bastante edulcorada) nos filmes americanos vem de uma tradição que remonta ao século IX, chamada souling nas Ilhas Britânicas. De acordo com essa tradição, na noite de Halloween os jovens percorriam as casas de sua cidade ou aldeia pedindo contribuições – dinheiro, mas principalmente tortas e bolos – em troca das quais rezariam em intenção das almas dos mortos. O costume de se vingar dos que se negassem a contribuir deve ter surgido quase simultaneamente – e, conhecendo a cultura medieval, pode-se imaginar a que tipo de “travessura” estavam sujeitos os incautos que ousassem desafiar os jovens bruxos e duendes!) 
Nabo esculpido, representando Jack O’Lantern para os festejos do  
Halloween irlandês do início do século XX (Museu da Vida Rural 
na Irlanda)Nos Estados Unidos, o nabo foi substituído 
pela abóbora, nativa das Américas.

Já o Jack O´Lantern – ou Jack da Lanterna – pertence originalmente ao folclore irlandês. Trata-se de um espertalhão que, tendo conseguido enganar o Diabo, não foi por este admitido no Inferno quando morreu, mas que também não tinha merecimento suficiente para entrar no Paraíso. Assim, ele é obrigado a vagar entre os dois mundos, iluminando seu caminho com uma brasa. Para que ela não se apague, Jack a carrega dentro de um nabo. Sim, isso mesmo: um nabo, não uma abóbora. A abóbora foi uma adaptação feita por aqueles irlandeses que, durante a Fome da Batata (por volta de 1840), migraram para a América do Norte, ali introduzindo o Halloween... que ganhou contornos locais, entre os quais a substituição do nabo pela abóbora nativa. 

Pois agora, muitos anos depois, o Halloween começou a ganhar força aqui no Brasil, embora (que eu saiba) as crianças ainda não estejam pedindo doces de porta em porta. A festa é denunciada pelos defensores mais radicais da cultura nacional como mais um produto do colonialismo norte-americano, mas alguns grupos preferiram dar um "jeitinho brasileiro" e organizam o “raluim caipira”, com abóbora e carne-seca no cardápio e tendo como símbolo o Saci-Pererê. Pessoalmente, não vejo problema algum em adotarmos o Halloween, pois ele não é uma "tradição americana”: tem suas raízes na mesma cultura mista, pagã e cristã, que celebra juntos o nascimento de Jesus e o Solstício de Inverno. É verdade que o Natal já era comemorado pelos portugueses quando vieram para o Brasil, mas outros símbolos natalinos, bem posteriores, foram adotados aqui, tais como a árvore de Natal, que veio com os colonos alemães no século XIX (quem lembra das críticas feitas pelo povo de Santa Fé em “Um Certo Capitão Rodrigo”, que preferia o presépio por ser “mais nosso e mais bonito”?) e a figura de São Nicolau, depois transformado em Papai Noel e popularizado através dos slogans de uma conhecida marca de refrigerante. 

Pois a substituição do Jack Lanterna pelo Saci Pererê me parece tão forçada quanto a idéia de Monteiro Lobato de colocar, no lugar do Papai Noel, um Vovô Índio. Isso aconteceu na década de 30 e tinha o mesmo pretexto de valorizar a cultura nacional. No entanto, o Halloween começou a ser comemorado aqui exatamente como, há menos de dois séculos, passou-se a comemorar um Natal com características da Europa do Norte: nos lugares onde se tinha mais contato com a cultura estrangeira. Naquele caso, eram as colônias, neste foram as escolas americanas e os cursos de Inglês. E, é claro... hoje, os meios de propagação são muito mais rápidos. 

Que a data tenha se espalhado por outras escolas, outros jovens, outras famílias e grupos sociais não é de se estranhar. Todo mundo gosta de uma festa a fantasia. Além disso, as bruxas de chapéu pontudo, os vampiros, os monstros do Halloween americano podem ter chegado aqui no século XX, mas não chegaram com a globalização. Todos temos referências deles através do cinema e da Literatura, e, em nosso imaginário, já começaram a se confundir com as bruxas e duendes do nosso próprio folclore. Porque eles existem, ah...! Isso é que existem...

Assim, querer “erradicar” o Halloween do Brasil ou pretender que se pode festejá-lo deixando de lado qualquer influência estrangeira é querer deter um processo de assimilação que, bom ou mau, a essa altura me parece irreversível. Bem melhor, a meu ver, será abrir o círculo, contribuindo para a criação de uma nova festa, na qual estaremos integrados e não aculturados. 

Um Halloween urbano e caboclo, com tudo que temos direito. 

Uma festa de pagãos e cristãos, com vampiro, lobisomem e saci-pererê.

Nota do Cordel Atemporal: na tradição oral luso-brasileira, Jack O’ Lantern aproxima-se muito de João Soldado, personagem que figura em folhetos de cordel, como o célebre João Soldado, o valente praça que meteu o diabo no saco, de Antônio Teodoro dos Santos.