quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Cordel atemporal entrevista: Arievaldo Viana

Arievaldo caricaturado por Jô Oliveira

Nascido em Quixeramobim, sertão mítico do Ceará, terra de Antônio Conselheiro, Arievaldo Viana é uma das grandes expressões da literatura de cordel brasileira. Sua produção, já bem vasta, abrange romances de encantamento, sátiras, histórias de humor e vários livros infantojuvenis. Enveredando pelo campo da pesquisa, escreveu, entre outros, O baú da gaiatice, A mala da cobra e uma biografia (inédita!) de Leandro Gomes de Barros. Ainda achou tempo para criar o projeto Acorda Cordel na Sala de Aula, que propõe um novo olhar sobre o cordel. 


Com vocês, Arievaldo Viana...

Poeta, saudações! Eu o conheci naquele Congresso Internacional de Literatura de Cordel, que ocorreu em João Pessoa, em 2005. Mas já havia entrado em contato com sua obra desde 1999, por meio dos folhetos da Tupynanquim. Por que Arievaldo Viana escolheu o cordel?

 R – Eu acho que o cordel me escolheu. Desde que me entendo por gente tenho contato com essa literatura e ela tem exercido um fascínio cada vez maior, a cada ano que passa. Na infância eu tive o prazer de testemunhar a presença dos folheteiros itinerantes, viajando pelas feiras e fazendas do sertão, levando malas atulhadas de folhetos, perfumes, bijuterias, e outras miudezas. A presença de um deles no sertão era uma grande novidade, promovia logo um ajuntamento em redor.
Na festa de São Francisco, padroeiro do santuário de Canindé-CE, eles também estavam presentes com material bem diversificado... Sempre estendidos sobre lonas e surrões, nunca pendurados em barbantes (cordéis). Raramente se via algum deles usar um tripé, com uma mala de folhetos em cima e um pequeno serviço de alto-falante. Além das tipografias de Juazeiro do Norte (São Francisco/Lira Nordestina e Casa dos Horóscopos) havia também material de Manoel Camilo dos Santos, Lucas Evangelista, João José da Silva, da Editora Luzeiro e de outros poetas menos conhecidos que editavam apenas as suas próprias obras, como é o caso do Francisco Peres, o Chico dos Romances, que vinha de Sete Cidades, no Piauí.

O seu pai, Evaldo Lima, pelo que você diz, tem talento para a poesia, mas não fez disso profissão. Sua avó, D. Alzira, era leitora contumaz dos grandes clássicos do cordel. Mas, afinal, quando e onde a poesia entrou em sua vida?
Leonardo Mota e os cantadores Jacó Passarinho e Cego Aderaldo

 R – Está no meu DNA, com certeza. O velho “Fitico”, meu bisavô, fazia seus versinhos e era parente do cantador Jacó Passarinho (que figura no livro de estreia de Leonardo Mota). Atribuem ao Fitico (Francisco de Assis e Sousa) a autoria do Romance do Boi Vermelhinho. Meu avô paterno, Manoel Lima, tinha uns primos cordelistas que chegaram a sofrer grave repressão de um coronel dos sertões de Quixeramobim, que os fez engolir pedaços de um folheto à força e ainda os amarrou no mato para morrerem de sede e fome. Por um milagre esses rapazes escaparam da morte e parece que desistiram da profissão. Vovó (Alzira de Sousa Viana - Lima depois de casada, era filha do Fitico), além da literatura sacra, livros de história ou romances de autores considerados eruditos, dava larga preferência aos folhetos. Tinha uma mala com diversos clássicos. Quando me alfabetizei e comecei a ler realmente, esse material já estava bastante dilapidado, alguns devido a empréstimos mal-sucedidos, outros por extravio. Minhas tias estavam deslumbradas pelos astros da Jovem Guarda e achavam cafona tudo que se relacionava com a cultura nordestina. Lembro delas copiando roupas a partir de revistas do rádio e da TV. Bonito mesmo era o Roberto Carlos, o Jerry Adriani, Márcio Greick, Ronnie Von e Wanderley Cardoso. Ninguém queria saber de Luiz Gonzaga nem de Cego Aderaldo...
Só os mais velhos, por isso eu sofria um certo preconceito na infância: “Esse menino parece um velho, é doido por romance e essas cantigas de Luiz Gonzaga!” – diziam. Mas, dizem, quem sai aos seus não degenera e eu, por linha direta, tinha o DNA do Fitico, da dona Alzira e do meu pai Evaldo Lima, que desde menino sonhava ser cantador de viola. Não seguiu profissão porque alguns membros da família o desestimularam. Isso não o impediu, contudo, de continuar comprando folhetos, frequentando cantorias e levando a gente para ver esses ajuntamentos culturais. Para você ter uma ideia, Marco, até no momento em que trabalhava na lavoura ou botava água no lombo de jumentos papai ficava cantando Batalha de Oliveiros com Ferrabrás, Príncipe do Barro Branco e Cancão de Fogo.

Eu também me acostumei desde cedo com a minha avó Luzia Josefina declamando, com aquela emoção que brota da alma, a História da Princesa Rosa, de Silvino Pirauá. Só fui conhecer o folheto alguns anos depois. Mas, voltemos à família Lima: seu irmão Klévisson Viana é, também, um poeta de renome nacional. No campo da poesia, o que vocês têm em comum e o que os diferencia?
Klévisson Viana

R – Como sou o filho mais velho e ele o caçula há uma diferença de idade entre nós de mais de cinco anos. Posso afirmar então que tanto na parte do desenho quanto na poesia houve influência minha sobre os primeiros passos que ele trilhou nessas áreas. Com relação ao cordel, o que mais nos diferencia é o tino comercial, que nele é bastante apurado e em mim deixa muito a desejar. Ele já entrou no mercado com visão editorial, procurando títulos que tivessem boa vendagem e escrevendo também com esse propósito. Eu, particularmente, fiz muitos folhetos de pouco apelo comercial, somente pelo prazer de poetar, sendo que muitos ainda permanecem inéditos ou saíram apenas em minguadas tiragens caseiras. Como eu, ele também é muito versátil na escolha dos temas e trabalha bem o gênero romance, que considero o estágio mais elevado do cordel. Tem também uma veia humorística apurada, pois é adepto da escola de Leandro e José Pacheco. Outra diferença é que gosto muito de trabalhos coletivos, parcerias e ele é mais individualista. No geral, o considero um bom poeta de cordel e um excelente ilustrador.

Você, já há algum tempo, anunciou a preparação de uma biografia do grande poeta Leandro Gomes de Barros. Ela está pronta, mas não publicada. O que ela traz de novidade em relação a outros textos sobre essa figura de proa da cultura nacional.
Folheto de Leandro Gomes de Barros com autoria atribuída
erroneamente a João Martins de Athayde

R – Eu costumo dizer que meus melhores trabalhos não têm despertado o interesse dos editores. Dois exemplos são os livros Mala da Cobra – Almanaque Moleque e Leandro Gomes de Barros – Vida & Obra. Essa biografia de Leandro tem o mérito de trazer à tona fatos da vida do grande poeta paraibano inteiramente desconhecidos até os dias de hoje, por exemplo: nome dos seus pais, nome dos filhos (que aparecem no livro Memórias de Lutas, de Ruth Brito Lemos Terra, mas grafados de maneira errada). No meu caso, contei com a valiosa ajuda de Cristina Nóbrega, sobrinha-bisneta de Leandro, que fez uma verdadeira peregrinação pelos cartórios de Vitória, Jaboatão e Recife, livros de batizados e casamentos e até os famosos microfilmes dos Mórmons que também foram utilizados por Laurentino Gomes na produção do clássico 1808. Também obtivemos imagens raras de alguns familiares do poeta, elucidamos a sua nebulosa relação com o Padre Vicente Xavier de Farias, seu tutor, e conseguimos alguns fragmentos de sua infância na Vila do Teixeira, no interior da Paraíba. É um trabalho de fôlego, com algumas luzes sobre personagens importantes do mundo do cordel, como João Martins de Athayde e Francisco das Chagas Batista, seus principais editores. A birra de Leandro com as sogras, sua implicância com os “Nova-Seitas”, sua sátira política e sua preferência pela aguardente ‘imacullada’ também não passaram despercebidos. Para completar o quadro, obtivemos cópias de alguns poemas raríssimos que só foram publicados no jornal O Rebate, de Juazeiro do Norte e dos quais não há cópias nem na Casa de Rui Barbosa. O editor que apostar nesse projeto não irá se arrepender, tenho plena certeza disso.

O que é o projeto Acorda Cordel na Sala de Aula?

R - O projeto Acorda Cordel, antes de qualquer coisa, é um tributo que eu presto a esse gênero literário que teve um papel tão importante na minha alfabetização e na minha formação cultural. Cada vez que realizo uma palestra, um recital ou oficina numa escola, procuro, antes de qualquer coisa, dar um testemunho lúcido, verdadeiro e apaixonado sobre o papel que o cordel exerceu na minha vida. E deixo claro que o objetivo do projeto não é “formar” cordelistas, porque poesia é um dom. Fico muito feliz quando uma criança ou mesmo um adulto se descobre poeta numa de minhas oficinas e isso sempre ocorre, em quase todas que realizo. O verdadeiro objetivo do projeto Acorda Cordel é consolidar esse gênero com uma boa opção de leitura, com uma ferramenta auxiliar na educação e sobretudo capaz de formar novos leitores, com visão crítica e respeito à chamada cultura popular.

Há, segundo alguns estudiosos, escassez de romancistas entre os atuais criadores do cordel. Isso procede?

R – Os estudiosos que pensam dessa maneira certamente pararam no tempo e se ocupam em pesquisar apenas os autores do passado. Desconhecem ou simplesmente não se interessam pelo que se produz atualmente. Na fase áurea do cordel, mesmo no auge de João Martins de Athayde, eram poucos os poetas que se destacavam na área do romance... José Camelo, Delarme Monteiro Silva, Severino Milanês, Joaquim Batista de Sena e o próprio Athayde eram os melhores. Hoje, da mesma forma existem centenas de cordelistas em atividade, mas seguindo a trilha do romance com prumo e qualidade a gente conta nos dedos. É um gênero difícil que exige criatividade, cadência narrativa e uma boa dosagem de mistério, ação, amor, aventura e suspense. Fazer um romance com roteiro inteiramente inédito, sem basear-se numa obra em prosa, não é para qualquer um. Geraldo Amâncio (um dos maiores repentistas em atividade e excelente autor de cordel) reconhece a sua dificuldade em produzir um romance com roteiro original. Alguns cantadores ainda discriminam o poeta de bancada afirmando que fazem versos de improviso enquanto o cordelista gasta tempo e papel para escrever. Para estes, a minha resposta está na ponta da língua: - Quantos “Pavões Misteriosos” você já escreveu? Pergunto logo se ele seria capaz de fazer um romance do quilate de um O sino da Torre Negra ou Entre o amor e a espada. Versejar é fácil, para quem tem domínio da técnica. Fazer poesia é um dom. São duas coisas distintas.

Que obra de Arievaldo Viana mais chama a atenção de... Arievaldo Viana?

R – É difícil avaliar. Cada folheto que nasce tem um lugar especial no coração do autor. Os de gracejo são os de que mais gosto de reler depois de impressos. Às vezes me pego rindo das velhas tiradas que escrevi há dez, doze anos. Tem obra que já nasce redondinha, sem precisar de retoques... dentre essas eu destaco O batizado do gato, O rico ganancioso e o pobre abestalhado, A caveira do ET encontrada em Quixadá, Descaminhos das Índias e O homem que casou com uma serpente. São folhetos que nasceram em estado de graça, os dois primeiros fiz sozinho, em menos de uma hora cada um e três seguintes em parceria com Pedro Paulo Paulino e Klévisson Viana. No caso dos folhetos feitos em dupla, a parceria estava muito afinada, tirando faíscas do juízo, a ponto de um pensar uma coisa e outro escrever sem pronunciar uma palavra sequer. Quando isso acontece a gente cai na risada, com a feliz coincidência que acaba de ocorrer. É sintonia de pensamento, com certeza. Já os romances levam mais tempo, mesmo os de 16 páginas precisam ser lidos, relidos e corrigidos antes de serem impressos. Tem um que é muito interessante. Na década de 1970, o poeta Gonzaga Vieira escreveu num caderno as primeiras páginas de A lida de Conrado ou a honradez sertaneja e nunca chegou a concluir. Fez em torno de 70 estrofes, o que daria um folheto de 16 páginas. Ele entregou-me esse caderno em 2002, pedindo-me para revisar e concluir o trabalho... Acabou virando um excelente romance de 32 páginas, com roteiro bem-elaborado e cheio de lances dignos de um Valente Zé Garcia. Já com relação aos “cordelivros”, titulo que o poeta Crispiniano Neto encontrou para os livros ilustrados de cordel, gosto muito de A raposa e o cancão, o primeiro que publiquei nesse formato, que tem me trazido muitas alegrias... foi o primeiro a ser indicado para o PNBE, participou de um projeto chamado “Baião das Letras”, virou peça de teatro em várias escolas e sempre desperta um interesse muito grande nas crianças, quando trabalhado nas escolas. Agora, em termos de produção gráfica, os que mais me encantaram até hoje foram os livros da Editora Globo (Chapeuzinho Vermelho e O coelho e o jabuti), primeiros de uma série que estamos desenvolvendo para aquela editora. Foram trabalhos que contaram com uma ilustração primorosa do Jô Oliveira e um projeto gráfico fantástico, desenvolvido pela designer Adriana Bertolla.

Na bucha: citando Alceu Valença, quem, da nova geração de autores, não perde o prumo nem desafina?
Mestre Azulão Arievaldo e Bule-Bule

R – É difícil dar nome aos bois sem melindrar alguns e sem esquecer algum nome importante... Mas, sem puxamento de saco, Marco Haurélio figura nessa lista que poderia ser acrescentada com a presença de Evaristo Geraldo, Rouxinol do Rinaré, Klévisson, Janduhy Dantas, Antônio Francisco e outros nomes que têm se projetado de uns quinze anos para cá. Da geração anterior a nossa, ainda em atividade, destaco Mestre Azulão, Lucas Evangelista, Manoel Monteiro, Geraldo Amancio, Bule-Bule, João Firmino Cabral, Gonçalo Ferreira e Luiz Antônio que apesar da obra diminuta, fez um verdadeiro clássico para aquela coleção 12 contos de Cascudo em Cordel. Se Luiz Antonio, que foi um bom cantador, tivesse se dedicado ao gênero romance teria sido um fenômeno. Na área do gracejo gosto muito das produções de J. Batista e Pedro Paulo Paulino.

Que conselhos você daria aos que estão no início da caminhada, sejam autores, sejam, leitores do nosso antigo folheto de feira?

Jullie Ane Oliveira
R – Dentre os novos valores que estão surgindo, aposto muito no trabalho de Paiva Neves, Varneci, Julie Anne, Josué Lima, Antonio Barreto, Moreira de Acopiara, Stélio Torquato e outros que acompanho com interesse. O segredo é diversificar os temas, ler bastante os clássicos do gênero, absorver o que há de melhor em cada um e criar um estilo próprio, depois de beber esse coquetel de influências. Existem pessoas que militam nessa área há décadas e até hoje não conseguiram produzir um único folheto que possa ser considerado uma obra-prima. São esforçados, conhecem a história do cordel, leem os clássicos, interagem com os leitores, mas não conseguem transpor esse conhecimento para a própria obra. Não quero citar nomes, mas o bom leitor de cordel sabe exatamente do que estou falando. O falecido Ribamar Lopes, leitor experiente e grande estudioso da Literatura de Cordel, dizia que um bom autor a gente avalia logo nas duas primeiras páginas. Se tivesse um verso travoso, uma rima mal-ajambrada, uma métrica aleijada ou uma oração pobre e sem nexo, ele jogava para o lado e abandonava de vez. Como dizia o poeta Cícero Vieira: “Quem lê um folheto desses / Ou queima, ou rasga ou encosta!”

Há pouco tempo foi ao ar, pela Rede Globo, a novela Cordel Encantado, que de cordel só tinha o nome. Agora, o cordel vira tema da escola de samba carioca Acadêmicos do Salgueiro. O samba-enredo escolhido, em minha opinião, é uma verdadeira tragédia. Mas há quem, movido por interesses ou, mais raramente, por boa fé, ache tudo muito lindo. O que tem a dizer, com a autoridade do poeta consagrado, Arievaldo Viana?

R – O folhetim global usou e abusou da licença poética, mas de cordel mesmo só tinha o nome e as xilogravuras compostas para a abertura. Faltou uma consultoria às autoras da trama, uma trilha sonora mais calcada no cordel e até mesmo atores do porte de um Jackson Antunes, José Dumont ou de um Arnaud Rodrigues (infelizmente já falecido), que conhecia bem a linguagem do cordel. Mas, no frigir dos ovos, a novela acabou trazendo algo positivo para o nosso gênero literário, que foi a difusão da palavra CORDEL em todos os recantos do Brasil. Isso aguçou a curiosidade de muita gente, que está interessada em conhecer o verdadeiro cordel. O mesmo ocorre com a Escola de Samba... Muita pompa e pouco conteúdo. Alguns poetas da ABLC, que têm acesso à diretoria da Acadêmicos do Salgueiro, chegaram a acompanhar esse processo. Mas, no final das contas, ou não souberam orientar os autores do samba-enredo ou simplesmente não foram levados em consideração. Esse oba-oba em torno do cordel pode acabar provocando um processo de descaracterização parecido com o que ocorreu com o forró. Ainda bem que pessoas lúcidas e verdadeiramente comprometidas com a nossa arte não fazem concessões e continuam trabalhando em prol do verdadeiro cordel.

Arievaldo Viana ao lado do ilustrador e parceiro
Jô Oliveira na Bienal do Rio 2011

Quais os maiores equívocos difundidos no meio acadêmico – e também no popular – sobre a literatura de cordel?

R – O pior de todos é achar que CORDEL é uma subliteratura, produzida por analfabetos ou semianalfabetos e que só é autêntico ser for impresso em prelos rudimentares, com capa em xilogravura. Infelizmente muita gente ainda pensa assim, inclusive pessoas que se dizem “pesquisadores” de cordel. É a mesma coisa de querer a permanência do disco de cera, da lamparina e da máquina de escrever. Eu costumo dizer que o cordel é acima de tudo um gênero literário e que a questão do suporte é secundária. Cultura que não se renova vira peça de museu.
De certo modo, Patativa do Assaré contribuiu muito para construção dessa imagem, apesar de ser um homem esclarecido, leitor de Camões, Castro Alves e Gonçalves Dias... mas que teimava em escrever na chamada “linguagem matuta”. Para começo de conversa, Patativa nem gostava de ser chamado de “cordelista”. Quem conhece a história da Literatura de Cordel no Brasil sabe perfeitamente que Leandro Gomes de Barros, poeta que é considerado o pioneiro do gênero, não era um analfabeto e sim um homem letrado, que viveu numa das maiores capitais do Nordeste, tendo contato diário com livros, jornais e revistas. Outros mestres que o sucederam, como Athayde, José Camelo e Delarme Monteiro também não eram “matutos” nem analfabetos. Um cara que faz uma versão de Romeu e Julieta, de El Cid ou de Iracema com a qualidade com que esses poetas fizeram não se enquadra nem de longe nesse perfil estereotipado que teimam em fazer do cordelista.Outro equívoco imperdoável, e aí já nem é mais equívoco, é má fé mesmo, é o fato de alguns artistas se apropriarem do cordel como se fosse coisa de “domínio público”. Isso acontece com muita frequência na música, no teatro, no cinema e na TV.

O Professor Luyten, se não me engano, cunhou em O que é Literatura Popular? (Brasiliense) a expressão “Novo Cordel”, para enquadrar a obra de autores que, influenciados pela vida na metrópole, produziam um cordel diferenciado. Se voltarmos um pouco no tempo, veremos que isso nunca foi novidade e que o próprio Leandro Gomes de Barros já trabalhava com a dicotomia sertão-cidade e interpretava os fatos de sua época, como a passagem do cometa Halley (1910) de uma forma bem peculiar. Afinal, existe mesmo um “novo cordel” ou é, simplesmente, mais uma nomenclatura modernosa para um fenômeno já antigo?

R – Não existe “novo cordel”. Todas as tentativas nesse sentido se mostraram inócuas e equivocadas porque o primeiro pecado cometido pelos que se propõem a fazer o tal do “novo cordel” é abolir a métrica, afrouxar a rima e bambolear na oração, regras indispensáveis para o verdadeiro cordel. A Literatura de Cordel, como o soneto, tem regras fixas, que não podem ser ignoradas. Querem fazer com o cordel o que a Semana de Arte Moderna, de 1922, fez com a arte brasileira, em especial com a literatura. Figuras expressivas como Coelho Neto e o próprio Monteiro Lobato foram discriminados em nome dessa suposta “modernidade”. Não tenho nada contra quem escreve ou gosta da chamada poesia moderna, com versos livres, sem métrica e sem rima. Mas eu, particularmente, prefiro Castro Alves, Gregório de Matos, Augusto dos Anjos e Olavo Bilac. Dos autores contemporâneos, admiro muito a facilidade do poeta Glauco Mattoso em produzir sonetos obedecendo fielmente às técnicas já consagradas, embora seja ousado na escolha dos temas. E, no campo do cordel, tenho observado que todas as tentativas de se distanciar de Leandro, José Pacheco e José Camelo de Melo resultam num verdadeiro desastre. Há também aqueles que fazem poemas curtos, mais apropriados para declamação, que alegam produzir um “novo cordel”. Em geral, produzem versos bons, rimados e metrificados, mas quando tentam fazer um romance, uma obra narrativa mais elaborada, acabam cometendo pecados primários. Por isso concordo plenamente com a sua afirmativa quando diz que o cordel é atemporal.

O que de positivo a geração de Arievaldo Viana deixará para os pósteros (gostou?)?
Com o veterano poeta Lucas Evangelista e Rouxinol do Rinaré

R – De Leandro Gomes de Barros para cá já tivemos pelo menos umas cinco gerações de poetas. Primeiro foi a de Leandro, Athayde, João Melchíades e Chagas Batista. Depois vieram José Pacheco, Milanês, José Camelo e Manoel Camilo dos Santos. Manoel Pereira Sobrinho, Antonio Teodoro e Expedito Sebastião eram da terceira. Essa geração de Azulão, Lucas Evangelista e Costa Leite é a quarta e muitos remanescentes ainda estão vivos e produzindo. A nossa geração, que eu considero a quinta, tem um grande diferencial. Bebemos na fonte da tradição mas tivemos a ousadia de procurar entender todos os processos relacionados com o cordel, inclusive a pesquisa e a crítica literária. Tivemos a coragem de buscar novos formatos, sem perder a essência, sem descaracterizar as regras básicas do cordel. Tivemos peito para confrontar opiniões e até mesmo fazer revisões no estudo acadêmico do cordel. Aquela imagem do poeta de cordel com uma cabaça nas costas e uma chinela “currulepe” nos pés está desaparecendo. Cordeiro Brabo que o diga... Sou um cidadão nascido e criado no sertão, vi televisão pela primeira vez aos 12 anos de idade, cresci comendo feijão de corda e buchada de carneiro, li folhetos à luz de lamparina, mas tive a curiosidade de conhecer outras coisas, absorver outras culturas e isso só fez aumentar o orgulho de ser nordestino. Só contribuiu para aumentar o respeito e a admiração que tenho pela arte e pelos artistas de minha região.
Contribuir para evolução da literatura de cordel sem descaracterizá-la é, seguramente, o maior legado que a nossa geração está deixando para a posteridade.

Poeta, obrigado pelas respostas, sempre incisivas, e parabéns por trilhar a senda da poesia. Peço apenas que se despeça, em versos, dos raros leitores deste blog.

No sopro do Aracati
Vento terral do Nordeste
Que varre praia e agreste
No cheiro do abacaxi
No canto do bem-te-vi
Na copa do coqueiral
No espaço sideral
E no perfume das flores
Me despeço dos leitores
Do CORDEL ATEMPORAL.

Mais sobre o autor no blog Acorda Cordel.