Ilustração de Luciano Tasso para a obra Meus romances de cordel. |
Protagonista do Auto da Compadecida, a imortal criação
de Ariano Suassuna, Chicó é bem mais que um mentiroso, um contador de lorotas, um hábil criador de patranhas. É um personagem arquetípico e, sem exagero, podemos
rastrear vestígios seus no guerreiro Ulisses, outro grande mentiroso, no
marinheiro Simbad, no Barão de Munchausen e em personagens da fábula e também
da vida cotidiana, que enfeitam a existência com uma realidade alternativa às
vezes engraçada, outras tantas encantada. O herói burlesco deriva do herói
mítico.
No cinema, o personagem foi
vivido pelos atores Antônio Fagundes, Dedé Santana e Selton Mello. Este último
dividiu a cena com Matheus Nachtergaele, que interpretou João Grilo, na mais
bem elaborada versão do clássico de Suassuna, dirigida por Guel Arraes em 2000.
Selton Melo: atuação impagável. |
Em 2005, levei o personagem ao cordel, no folheto Os apuros de Chicó e a astúcia de João Grilo. Em 2008, a obra, consideravelmente ampliada, rebatizada como Presepadas de Chicó e astúcias deJoão Grilo foi relançada pela editora Luzeiro. A grande novidade foi a ampliação da presença de Chicó, que conta uma mentira do tamanho do Padre-nosso, como a sabedoria popular classifica as grandes patranhas. No trecho abaixo reproduzido, costurei situações de contos catalogados em vários países, alinhavados de forma a parecer uma coisa só.
Chicó
contava vantagem,
Mas o
povo não ligava,
Toda
noite para ouvi-lo
A
multidão se ajuntava,
Porém
não tinha sequer
Um que nele
acreditava.
João
Grilo dizia sempre:
—
Chicó, tenha mais cuidado,
Pois a
sua língua grande
Pode
deixá-lo enrascado
Se um
dia se deparar
Com
algum cabra malvado.
Chicó
dizia: — Qual nada!
Nunca
me meto em engano:
Já
irriguei o deserto
Com as
águas do oceano,
Mandei
fazer uma ponte
Ligando
Marte a Urano!
Já
matei onça de tapa
E leão
com pontapés,
Já
tirei água de pedra,
Como um
dia fez Moisés,
Em casa
tenho uma árvore
Que
produz contos de réis!
João
Grilo disse: — Chicó,
Nem
mesmo lá em Pequim
Um pé-de-pau
dá dinheiro
Ou a
água do mar tem fim.
Chicó
respondeu: - Não sei;
Eu só
sei que foi assim...
Porém,
meu amigo João,
Agora
vou lhe contar
Uma
história verdadeira,
Dessas
de se admirar,
Que
mesmo o cabra incrédulo
É
forçado a acreditar:
No sertão
do Ceará
Vi três
matutos correndo
Atrás
de uma tartaruga –
Parece
que inda estou vendo –
Mas vou
descrever os três
Pra
você ficar sabendo.
Cada um
deles levava
Consigo
uma carrapeta.
Mas o
primeiro era mudo
O
segundo era perneta;
Já o
terceiro era cego,
O
quarto surdo e maneta.
E foi o
cego quem viu
A
tartaruga matreira.
O mudo
falou pra ele:
—
Acabou-se a brincadeira!
Depois
gritou o perneta,
Que se
danou na carreira.
Mas
quem pegou a bichinha
Foi o
sujeito cotó,
Vendeu-a
para um mendigo,
Ficou
mais rico que Jó.
É a
mais pura verdade,
Quem
lhe garante é Chicó.
Mas
isso, João, não é nada,
Já fiz
coisa mais incrível
Que, se
lhe contar, você
Pensará
ser impossível.
Pra
você pode até ser,
Mas não
pra alguém do meu nível.
Eu
tenho um grande criame
De
abelhas no meu quintal.
Tentei
contar as colmeias –
Confesso
que passei mal –
Pois
nem em quinhentos anos
Descobriria
o total.
Porém
contei as abelhas,
Que
passavam de um trilhão!
Vendo
que faltava uma,
Quase
perdi a razão
Mas
para minha alegria,
Vi o
seu rastro... no chão.
Entrei
mata adentro e vi
Minha
abelhinha caída,
Com
duas raposas velhas
Numa
batalha renhida.
Saquei
de grande peixeira,
Pra
defender minha vida.
Rumei a
peixeira nelas,
Que
saíram em disparada;
A
peixeira se perdeu
Dentro
da mata fechada.
Então,
matutei um jeito
De sair
desta embrulhada.
Logo
peguei o meu binga,
Fogo na
mata botei,
E desta
forma, as raposas
Pra bem
longe afugentei.
Quando
o fogo se apagou,
Minha
peixeira encontrei.
Porém
sobrou só o cabo,
O ferro
foi derretido.
Corri
até o ferreiro,
Contei
o acontecido:
E pedi
que refizesse
O
ferro, que foi perdido.
Mas ele
se confundiu
Por ter
cabeça de vento
E me
fez um anzol reto
Pra eu
pescar ao relento.
Joguei
o danado n’água,
Puxei e
veio... um jumento!
Veio
com bruaca e tudo,
Então
nele me montei.
Os
quartos da abelhinha
Fujona,
avante encontrei.
Quando
espremi, dez mil litros
De mel
bem puro tirei!
Porém
não tinha os barris.
E
estando no mato só,
Resolvi
armazenar
Todo o
mel no fiofó
Do meu
jeguinho, contudo,
Confesso:
fiquei com dó.
Passado
algum tempo houve
No
sertão grande secura;
Nas
costas do meu jumento
Cresceu
grande matadura,
De
tanto carregar peso
Em sua
jornada dura.
O
jumento carregava
Bastante
mercadoria
E, para
minha surpresa,
Presenciei,
certo dia,
Germinando
em suas costas
Feijão,
milho e melancia.
Então,
peguei o machado
E dei
um golpe no centro
Da
melancia, porém
O
machado caiu dentro.
Olhei o
buraco e disse:
— É
aqui mesmo que eu entro!
Lá
dentro da melancia
Avistei
em disparada
Um
vaqueiro procurando
A sua
enorme boiada.
Pedi
seu adjutório:
Ele me
deu uma escada.
Para
subir os degraus
Foi
terrível o escarcéu,
Pois
saí da melancia
E fui
bater lá no céu.
Lá
Maria Madalena
Me
ocultou em seu véu.
Acabei
voltando à Terra
Cavalgando
num corisco,
Que
caiu em Xique-xique,
Nas
bandas do São Francisco,
Mas
aprendi a lição –
Hoje
sou um cabra arisco.
Pedro Monteiro, caboclo arguto do Piauí, costurou também algumas situações inusitadas em seu folheto de estreia: Chicó, o menino das cem mentiras (Luzeiro). Na mesma linha, ainda encontramos, publicado pela editora Luzeiro, o candidato a clássico O contador de mentira, escrito pelo paulistano Hélio Cavenaghi (1924-1984).
Folheto da Luzeiro com capa de Arievaldo Viana.
O folheto Presepadas de Chicó... depois foi incluído na
antologia Meus romances de cordel, publicada pela Global Editora.
Performance de Marlene Borges no evento Bodega do Brasil.
5 comentários:
Orgulho de vc, meu amigo!!!
Um Belo Trabalho, Muito Bom!
Parabéns estou fazendo um trabalho de cordel e acho que vou mim sair bem tem como você mandar cordeis pequenos obgd...
Foi um ótimo parabéns
Já vi esse filme . muito linso
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