O retirante Belmiro (Chico Diaz). Foto: Caiuá Franco. |
Quem acompanha a novela das 9 da Globo, Velho Chico, sabe que, de vez em quando, surge em cena uma dupla de cantadores que, à maneira do coro grego, apresenta, em versos, acontecimentos cruciais da trama ou improvisa, de forma bem-humorada, sobre as rixas dos clãs rivais na fictícia Grotas do São Francisco: Sá Ribeiro e dos Anjos. Interpretada pelos cantores Xangai (Avelino) e Maciel Melo (Egídio), a dupla desfiou, ao longo de cem capítulos, sextilhas, setilhas, mourões de sete pés e mourões voltados, entre outras modalidades da poesia popular, abrangendo os mais variados temas: uma loa para Jacinto (personagem de Tarcísio Meira), que morre no primeiro capítulo da trama de Edmara Barbosa e Bruno Barbosa Luperi; um folheto narrando o encontro do Capitão Rosa (personagem de Rodrigo Lombardi) com Saruê (apelido depreciativo de Jacinto) no portão do Paraíso; um improviso jocoso acerca de um suposto “chifre” de que foi vítima Afrânio (Rodrigo Santoro); e, mais de uma vez, improvisos sobre a disputa entre o honesto vereador Bento (Irandhir Santos) e o corrupto prefeito Raimundo (vivido pelo grande cantador mineiro Saulo Laranjeira).
Como é sabido por muita gente, tendo sido divulgado em alguns espaços da rede, sou eu o autor destes poemas. Escrevi a maior parte por sugestão dos autores, e, em alguns casos, apresentei sugestões que foram acatadas. Conheci Edmara Barbosa no início de 2014, em Serra do Ramalho, Bahia, cidade banhada pelo Velho Chico, ocasião em que ela se encontrava na região coletando informações acerca das tradições e costumes da região para incorporar à sinopse que escrevera em parceria com o filho Bruno. Ela, assim que soube que eu era cordelista e pesquisador da cultura popular, quis conhecer o meu trabalho que, além de quase uma centena de cordéis, inclui livros com recolhas de contos e cantos populares, cobrindo uma vasta região da Bahia e, eventualmente, outros estados. Depois de um tempo, aprovada a sinopse, a seu convite, tornei-me consultor da história, já aprovada pela Globo, com supervisão de Benedito Ruy Barbosa e direção artística de Luís Fernando Carvalho, o mais autoral dos realizadores da TV brasileira.
A minha missão, além de escrever os cordéis, era apresentar hábitos, festas, costumes, lendas e crendices que margeiam o rio São Francisco. Numa viagem que fizemos, em maio do ano passado, da foz do rio, entre Sergipe e Alagoas, a Bom Jesus da Lapa, Bahia, assistimos, na Vila Boa Esperança, em Serra do Ramalho, a uma roda de São Gonçalo, realizada com a presença de arcos manuseados pelos pares, que foi reproduzida, com esmero, em dois momentos cruciais da história. Os autores ainda incorporaram à história o hábito de muitos idosos, ainda hoje, tecerem a própria mortalha, comprovando que a morte é aceita com naturalidade. O costume, estranho para quem não é do sertão, aparece ligado à figura emblemática da matriarca dos de Sá Ribeiro, Encarnação (a estupenda Selma Egrei), personagem que parece saída de um romance de Gabriel García Márquez, mas representa a arcaica aristocracia rural do Nordeste, que agoniza, se arrasta, mas ainda está viva.
Isso sem falar na presença mágica de Ceci (Luci Pereira), retrato fiel das benzedeiras, das cassandras sertanejas, com seus prognósticos e meizinhas, transitando, naturalmente, entre a realidade e o sonho. Nos mal-assombros do rio, em que pontifica o Negro d’Água, ou Compadre d’Água, duende benéfico ou maléfico, que só respeita a carranca na proa das embarcações e o tabaco deixado em troca de seu obséquio. E no Gaiola-Encantado, barco-fantasma que recolhe a alma dos mortos que habitam as margens do rio. Tudo isso emoldurado por uma trilha sonora que é uma síntese do sertão mítico e agônico, com nomes como Elomar, Geraldo Azevedo, Tom Zé e Maria Bethânia, além da revelação Paulo Araújo, compositor de Bom Jesus da Lapa, Bahia, barranqueiro até a medula. E pela trilha instrumental de Tim Rescala, que, por vezes, remete aos westerns de Sergio Leone, sem esquecer as matrizes populares da nossa música de que ele se abeberou.
Em síntese, Velho Chico já retratou, em sua história, cantos de lavadeira, benditos, acalantos, "incelenças", samba de roda, além do bom e velho forró pé de serra. Ouso dizer que, na história da TV brasileira, é a novela com maior presença de elementos de nossa cultura popular. E isso, definitivamente, não é pouco.
Em síntese, Velho Chico já retratou, em sua história, cantos de lavadeira, benditos, acalantos, "incelenças", samba de roda, além do bom e velho forró pé de serra. Ouso dizer que, na história da TV brasileira, é a novela com maior presença de elementos de nossa cultura popular. E isso, definitivamente, não é pouco.
Trechos de cordéis escritos para a novela
REPENTE EM MEMÓRIA DO CORONEL JACINTO
Vamos cantar em memória
O finado coronel.
Uns dizem que era bom,
Outros que era cruel,
Ninguém vive para sempre
Eis a verdade fiel.
Foi-se embora o coronel
Que dominava o sertão.
Vai comparecer diante
Da Virgem da Conceição,
Contrito, para pedir
De suas culpas perdão.
Hoje, grande multidão
Se aglomera no terreiro
Para beber o defunto
Jacinto de Sá Ribeiro,
Um nome imortalizado
No Nordeste brasileiro.
Foi um grande fazendeiro,
Saruê velho de guerra.
As terras do coronel
Vão do rio ao pé da serra,
Mas hoje ele vai morar
Nos sete palmos de terra.
REPENTE SOBRE POSSÍVEL CHIFRE NO CORONEL SARUÊ
Meu amigo Criatura,
Preste atenção, não se esqueça
O sintoma é muito simples
Basta que o dito apareça,
Pois chifre é bicho que nasce
E não escolhe a cabeça.
Tendo cabeleira espessa,
Seja pobre ou "coroné",
Chifre é bicho democrático:
Vai da nobreza à ralé,
Quem já foi está no lucro,
Azar mesmo é de quem é.
REPENTE EM HOMENAGEM A MIGUEL
Hoje aqui nesta fazenda
A festa é grande porque
Chegou das “Oropa” o neto
Do Coroné Saruê,
E de agora por diante
Vai ser grande o fuzuê.
O neto do Saruê
Chegou falando bonito,
É um moço muito fino,
Já deixou de ser cabrito,
Vai escrever sua história,
Tenho visto e tenho dito.
Vai deixar seu nome escrito
Para toda eternidade.
Nos termos do São Francisco
Será uma autoridade.
Por isso, dr. Miguel,
Bem-vindo à nossa cidade.
Miguel, eu digo a verdade,
Nunca passei por falsário.
Para mim o doutor é
Um moço extraordinário
Que veio para ensinar
O Padre Nosso ao vigário.
O ENCONTRO DE ROSA COM SARUÊ NO PORTÃO DO PARAÍSO
Essa história, meus leitores,
É de fundir o juízo,
Eu não queria contá-la,
Mas juro que foi preciso.
O encontro de Saruê
Com Rosa no Paraíso.
Quando deixou esta terra,
Saruê ficou perdido,
Vagou nas regiões ermas
Do espaço desconhecido,
Passou pelo Purgatório,
Onde não foi recebido.
Foi bater no Paraíso,
Mas a fila era horrorosa.
Lá todo mundo é igual,
Ninguém ganha só na prosa,
E depois de grande espera
Topou o capitão Rosa.
Assim que Rosa chegou,
Sem saber de seu destino,
Viu o coronel Jacinto,
Foi dizendo: “Ô assassino!
Será que nem no outro mundo,
Me livro desse cretino?”
Saruê, vendo o rival,
Disse: Aqui não tem valente!
Mesmo assim, é muito bom
Bater contigo de frente,
Perco a salvação, mas nunca
Deixo um assunto pendente!
Coronel e capitão
Perderam a compostura.
São Pedro partiu de lá,
Disse: “Aqui a casa é pura!
Nunca foi e nem será
Bar de Chico Criatura!”
Brigar na terra, vá lá!
Porque ninguém é perfeito,
Mas aqui na Casa Santa
Não é certo, nem direito.
Vai morar lá nos infernos
O que agir desse jeito!
Os dois, ouvindo São Pedro,
Pararam com a lambança.
São Miguel, logo em seguida,
Chegava com a balança
Pra ver quem seria honrado
Com a bem-aventurança.
Gostariam de saber
Quem se salvou? Eu não sei.
Do céu acabei expulso
E para Grotas voltei.
A verdade é que, por lá,
Só Jesus Cristo é o rei. Para assistir à belíssima cena em que este cordel é cantado, clique AQUI.
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