O momento em que seu Tião recebeu o livro Vozes da Tradição. |
Em 2015, desembarquei em Araxá para participar do Festival Literário da cidade pela primeira vez. O convite de José Santos, então curador da programação infanto-juvenil, generosamente endossado por Afonso Borges, me proporcionou momentos para não deslembrar, encontros com muitos autores e autoras, estabelecimento de amizades sólidas, mas um momento, em especial, sempre faço questão de ressaltar. Durante os cinco dias do evento, com estrutura montada no centro de Araxá, quem mais me chamou a atenção foi um senhor negro, de cerca de 75 anos, que se locomovia com a ajuda de uma bengala. Arrastava um saco plástico enorme, no qual guardava as latinhas coletadas durante o Festival.
Seu Tião, Mirtes (filha), Kellen (neta) e Luísa (bisneta). |
No último dia, durante o Sarau de
encerramento, com o versátil grupo Fratello, escapuli por uns minutos, quando o
vi encostado a um dos palcos, e puxei uma conversa que quase deu em nada.
Depois de me apresentar, ele disse o seu nome, Sebastião José Pereira, e também
o apelido, Tião Carreiro, homônimo do grande violeiro e cantor sertanejo. Quando
perguntei se sabia contar histórias se esquivou, afirmando que a lida da roça,
que consumiu boa parte de seu tempo, não lhe permitia fazer mais nada. Sua
vida, até ali, tinha sido apenas para trabalhar. Aproveitei, então, para lhe
pedir licença e contar uma história, aprendida com minha avó, Luzia Josefina,
sobre Jesus e São Pedro. Ao terminar, ele emendou com uma versão ainda mais
elaborada do mesmo conto. E, depois, num só fôlego, contou mais três, todas
elas narrativas pias, ou seja, lendas do sagrado, impregnadas da religiosidade
popular. Eu não dispunha de um gravador naquele momento, mas registrei todos os
contos na memória e os transcrevi, tão logo desembarquei em São Paulo, onde
resido.
Depois da palestra, com a família Pereira e o escritor e editor português Joaquim Marreiros (esq.). |
Em 2016, de volta a Araxá, o
reencontrei e descobri que seu Tião era avô de uma moça que fizera a oficina de
cordel comigo no ano anterior, Kelen Pereira, e pai de uma professora que
conheci no evento, a Mirtes. Ambas haviam lido, emocionadas, uma postagem que
fiz no blogue Contos e Fábulas do Brasil.
Seu Tião, já totalmente desinibido, contou mais uma história, também do ciclo
de Jesus e São Pedro, e assistiu, com a neta, parte da palestra que proferi
abrangendo o cordel e a tradição oral. Reuni os quatro contos narrados por seu
Tião para um livro que seria lançado em fins de 2018, mas ao qual só tive
acesso em 2019, Vozes da Tradição, da
Editora IMEPH, de Fortaleza. A ideia era ir a Araxá, este ano, para entregar-lhe
o livro. O convite feito por Leo Cunha e Afonso Borges, para participar, mais
uma vez, do Fliaraxá, que, há três anos, acontece nas dependências do Grande Hotel Tauá, entre os dias 21 e 23 de junho, encurtou a distância
entre o desejo e sua realização. Mas seu Tião, que fora vítima de um mau
motorista em 2014 (daí a bengala), talvez não pudesse comparecer, já que não
consegue mais se locomover como antes. A participação da família Pereira talvez
não fosse possível, era o que eu pensava.
A atividade do dia 22, sobre cordel e imaginação, começou com a
presença de Kelen, grávida de cinco meses, sua filha Luísa, Mirtes e outros
membros da família. Logo depois, chegou, numa cadeira de rodas, seu Tião. Tão
logo chegou, fez questão de pegar o livro, folhear, e, a um pedido meu,
generosamente, contou uma das histórias, “Deus lhe pague!”, fazendo com que o
riso e os aplausos, generosos, brotassem da plateia. A história é esta:
Ao final, entreguei o seu exemplar e pude ver a felicidade em seus olhos. Nesse ponto, o riso já se confundia com o pranto.
São Pedro,
cansado de abrir a porta do céu e de ouvir tanta gente pedir chuva, achou que
chegara o tempo de descansar. Foi até Deus e pediu, com cuidado, que o
liberasse de suas funções. Garantiu, no entanto, que voltaria logo, e só por
isso foi liberado. Para matar a saudade, retornou à Terra. Peregrinou por
muitos lugares e ficou encabulado com a quantidade de homenagens a ele: Barbearia São Pedro; Farmácia São Pedro; Hospital São Pedro. Mas o melhor de todos, sem dúvida, era o Bar São Pedro. Lá se entreteve e passou
a maior parte do tempo, esticando em muito as suas férias.
O Bom Deus,
preocupado com a ausência de seu valoroso auxiliar, chamou-o de volta. E quando
ele chegou, não esqueceu de puxar-lhe as orelhas:
— Mas, Pedro,
cadê você, que disse que voltaria logo?
— Senhor, me
perdoe, mas descobri que sou muito benquisto na terra. Daí a razão da demora.
Agora, se fosse o Senhor, não pisaria lá de novo.
— E por que não?
— É que sua
dívida com o povo está lá, ou melhor, cá nas alturas. E só aumenta a cada dia.
Todo mundo, quando não tem dinheiro ou não quer pagar o que deve, sai-se com
essa: “Deus lhe pague!”.
Ao final, entreguei o seu exemplar e pude ver a felicidade em seus olhos. Nesse ponto, o riso já se confundia com o pranto.
Seu Tião, que está com 78 anos, vai
passar por uma cirurgia. Em sua perna, uma imensa placa de metal provoca muitas
dores. Acredita que, depois disso, poderá voltar a andar. E, se já não pode
mais caminhar por Araxá, como em outros tempos, jamais deixou de contar
histórias. Disse saber muitas outras e fará questão de enviá-las. Gostou de ser
citado num livro, um reconhecimento que, segundo ele, jamais imaginou que
teria. Disse-me que lhe dei um presente. Eu, claro, o corrigi. Quem me deu um
grande presente foi ele. Afinal, mestres como seu Tião, guardiães da fonte da
memória, são cada dia mais raros. Assim, fazendo jus à história que me narrou,
sou eu quem deve dizer: “Deus lhe pague!”.
Crédito das fotos: Lobo Junior.
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