sábado, 13 de julho de 2019

Marina Colasanti e a história dos dois sonhadores



Era uma manhã de domingo, 23 de junho, último dia do Festival Literário de Araxá, o Fliaraxá, em sua edição de 2019. Leo Cunha, curador da programação infanto-juvenil, imaginou uma mesa comigo e Marina Colasanti, Conto e reconto: tradição e reinvenção. Leo, que mediou a conversa, foi certeiro na escolha do nome. Encontrou o ponto fulcral. E isso ficou demonstrado quando Marina, instada por Leo, abriu a mesa com uma revelação: está a pesquisar um conto popular, “Os homens que sonharam”, para um novo livro e já coligiu, para o projeto, mais de uma dezena de versões. Quando Leo me passou a palavra, contei (ou recontei) uma versão brasileira do mesmo conto, intitulada “O tesouro do matuto”, que me foi enviada pelo poeta cearense Arievaldo Viana e encontra-se publicada no livro Contos folclóricos brasileiros (Paulus, 2010).

"Um matuto do interior do Piauí plantou um roçado e não colheu nada por causa da seca. só lhe restou uma casa de taipa, onde havia um grande lajedo no quintal e um bode velho magro, fedorento e travesso, que passava o dia todinho pulando do chão para o lajedo e do lajedo para o chão...
Um dia, ele sonhou que numa cidadezinha distante havia um sapateiro velho, em cuja boca estaria a sua fortuna. ele sonhou tantas vezes e insistiu tanto nisso com a mulher que ela acabou dizendo:
– Vai, marido, vai logo atrás desse tesouro.
Ele saiu sem destino. Depois de muito andar, chegou a uma cidadezinha idêntica à do sonho. Indagou se por ali havia um sapateiro.
Ninguém sabia informar. Já quase desistindo, descobriu que havia, numa viela, um velho remendão que trabalhava muito mal. Chegando lá, identificou o velho e começou a jogar conversa fora...
Depois de passar duas horas alugando o ouvido do velho, este resolveu interrogá-lo.
– Afinal de contas, o que é mesmo que você quer comigo?
Ele contou o sonho. Disse que a sua fortuna estava na boca do velho. O sapateiro sorriu com prazer, e mostrou-lhe o último dente que lhe restava, ainda por cima cariado. Era a pobreza em pessoa. e depois de mangar do sonho do viajante, concluiu:
– Se eu fosse de lajedo e um bode velho fedorento que passa o dia pinoteando em cima. Debaixo da dita pedra tem um verdadeiro tesouro. Não está vendo que eu não acredito nisso?!
O homem, radiante de felicidade com a revelação, voltou para casa e encontrou seu tesouro justamente debaixo da dita pedra de que falara o sapateiro..

O conto em questão figura no livro das Mil e uma noites, "A história dos dois que sonharam", versão que foi reproduzida por Jorge Luís Borges em sua antologia Libro de sueños e serviu de arcabouço temático para Paulo Coelho na sua obra mais divulgada, O alquimista

Recriei esta versão em um cordel, do qual reproduzo as duas primeiras estrofes:

Peguei caneta e papel
E as Musas me visitaram.
Mesmo sem eu lhes pedir,
No meu ouvido sopraram
A maravilhosa História
Dos dois homens que sonharam.

Meu estro então viajou
Para as terras do Oriente,
Visitou duas nações
Seguidoras do Crescente,
E das Mil e uma noites
Eu narro um drama pungente.




O conto aparece classificado no Sistema Aarne-Thompson-Uther como MT 1645 (The Treasure at Home) e, no Catálogo dos Contos Tradicionais Portugueses, de Isabel Cardigos e Paulo Correia, é assim resumido:

“Um homem sonha que vai a uma cidade distante e encontra um tesouro debaixo de uma ponte. Indo lá e não encontrando tesouro nenhum, o homem conta o seu sonho a outro homem que por sua vez também lhe confessa ter sonhado com um tesouro em determinado lugar. Ao ouvir a descrição, o primeiro homem dá-se conta que se trata da sua casa. Quando regressa, encontra o tesouro.”.

Como intuiu Leo Cunha, eu e Marina estávamos unidos por aquele que talvez seja o mais fascinante dentre os temas literários, presente desde o Épico de Gilgamesh, no alvorecer da Civilização. O sonho, como parece sugerir Joseph Addison na interpretação de Borges, pode ser o mais antigo gênero literário, no qual "a alma, desligada do corpo, é a um só tempo o teatro, os atores e a plateia".  E sem os sonhos, dizem os junguianos, não haveriam os contos de fadas. Sonhemos, pois!

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