Era
uma manhã de domingo, 23 de junho, último dia do Festival Literário de Araxá, o Fliaraxá, em
sua edição de 2019. Leo Cunha, curador da programação infanto-juvenil, imaginou
uma mesa comigo e Marina Colasanti, Conto
e reconto: tradição e reinvenção. Leo, que mediou a conversa, foi certeiro
na escolha do nome. Encontrou o ponto fulcral. E isso ficou demonstrado quando
Marina, instada por Leo, abriu a mesa com uma revelação: está a
pesquisar um conto popular, “Os homens que sonharam”, para um novo livro e já coligiu, para o projeto, mais de uma dezena de versões. Quando Leo me passou a palavra, contei (ou recontei) uma versão
brasileira do mesmo conto, intitulada “O tesouro do matuto”, que me foi enviada
pelo poeta cearense Arievaldo Viana e encontra-se publicada no livro Contos folclóricos brasileiros (Paulus,
2010).
"Um
matuto do interior do Piauí plantou um roçado e não colheu nada por causa da
seca. só lhe restou uma casa de taipa, onde havia um grande lajedo no quintal e
um bode velho magro, fedorento e travesso, que passava o dia todinho pulando do
chão para o lajedo e do lajedo para o chão...
Um
dia, ele sonhou que numa cidadezinha distante havia um sapateiro velho, em cuja
boca estaria a sua fortuna. ele sonhou tantas vezes e insistiu tanto nisso com
a mulher que ela acabou dizendo:
–
Vai, marido, vai logo atrás desse tesouro.
Ele
saiu sem destino. Depois de muito andar, chegou a uma cidadezinha idêntica à do
sonho. Indagou se por ali havia um sapateiro.
Ninguém
sabia informar. Já quase desistindo, descobriu que havia, numa viela, um velho
remendão que trabalhava muito mal. Chegando lá, identificou o velho e começou a
jogar conversa fora...
Depois
de passar duas horas alugando o ouvido do velho, este resolveu interrogá-lo.
–
Afinal de contas, o que é mesmo que você quer comigo?
Ele
contou o sonho. Disse que a sua fortuna estava na boca do velho. O sapateiro sorriu
com prazer, e mostrou-lhe o último dente que lhe restava, ainda por cima
cariado. Era a pobreza em pessoa. e depois de mangar do sonho do viajante, concluiu:
–
Se eu fosse de lajedo e um bode velho fedorento que passa o dia pinoteando em
cima. Debaixo da dita pedra tem um verdadeiro tesouro. Não está vendo que eu
não acredito nisso?!
O
homem, radiante de felicidade com a revelação, voltou para casa e encontrou seu
tesouro justamente debaixo da dita pedra de que falara o sapateiro.”.
O
conto em questão figura no livro das Mil
e uma noites, "A história dos dois que sonharam", versão que foi reproduzida
por Jorge Luís Borges em sua antologia Libro
de sueños e serviu de arcabouço temático para Paulo Coelho na sua obra mais
divulgada, O alquimista.
Recriei
esta versão em um cordel, do qual reproduzo as duas primeiras estrofes:
“Peguei caneta e papel
E as Musas me visitaram.
Mesmo sem eu lhes pedir,
No meu ouvido sopraram
A maravilhosa História
Dos dois homens que sonharam.
Meu estro então viajou
Para as terras do Oriente,
Visitou duas nações
Seguidoras do Crescente,
E das Mil e uma noites
Eu narro um drama pungente”.
O conto aparece classificado no Sistema Aarne-Thompson-Uther como MT
1645 (The Treasure at Home) e, no Catálogo dos Contos Tradicionais
Portugueses, de Isabel Cardigos e Paulo Correia, é assim resumido:
“Um homem sonha que vai a uma cidade distante e encontra um tesouro
debaixo de uma ponte. Indo lá e não encontrando tesouro nenhum, o homem conta o
seu sonho a outro homem que por sua vez também lhe confessa ter sonhado com um
tesouro em determinado lugar. Ao ouvir a descrição, o primeiro homem dá-se
conta que se trata da sua casa. Quando regressa, encontra o tesouro.”.
Como intuiu Leo Cunha, eu e Marina estávamos unidos por
aquele que talvez seja o mais fascinante dentre os temas literários, presente
desde o Épico de Gilgamesh, no alvorecer
da Civilização. O sonho, como parece sugerir Joseph Addison na interpretação de Borges, pode ser o mais antigo gênero literário, no qual "a alma, desligada do corpo, é a um só tempo o teatro, os atores e a plateia". E sem os sonhos, dizem os junguianos, não haveriam os contos de fadas. Sonhemos, pois!
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