domingo, 1 de setembro de 2019

Um cordel para Jerusa

JERUSA PIRES FERREIRA
NO PASSO DAS ÁGUAS MORTAS



A vida é um grande texto
Que se escreve e se reescreve.
Por vezes, é bem pesada,
Outras tantas, muito leve,
Mas ante o tempo e a memória,
Termina sendo tão breve.

Jerusa Pires Ferreira,
Mestra de grande cultura,
Viveu buscando refúgio
Na rica literatura
Dos contos tradicionais,
Do chamado da aventura.

Foi em Feira de Santana,
A Princesa do Sertão,
Que Jerusa veio ao mundo
Em tempos que longe vão,
E desde cedo encantou-se
Com a nossa tradição.

Apesar de ser herdeira
De aristocratas baianos,
Cultivou desde menina
Grandes valores humanos
E viajou pelas linhas
Dos segredos e arcanos.

Nos livros que leu na Infância,
Visitou longínquas terras,
Contava histórias incríveis
De amor, de paz e de guerras,
E sua mente voava
Por vales, rios e serras.

A cada passo que deu,
Fez da escola seu escudo,
Do vasto chão da cultura
Conhecia quase tudo:
Foi a vida em plenitude
Seu objeto de estudo.

Do sertão, que foi seu berço,
Alçou voo, foi além
Conheceu muitos países,
Viu muitos povos também,
Notou as encruzilhadas
Que cada cultura tem.

Viajou por toda a Europa,
Pelas estepes sem fim
Aos campos verdes da Itália
E, “nel mezzo del camin”,
Encontrou na velha Espanha
Os ecos do muezzin.

Canções tradicionais
Que na infância conheceu,
Nas viagens que encetou,
Muitas delas reviveu:
O passado não passou,
Pois a vida não morreu.

Descobriu-se e descobriu
Um mundo dentro do mundo,
Um pensamento que vaga
Como errante vagabundo,
Soprando no ouvido d’alma
Um canto de amor profundo.

Ou mesmo um canto guerreiro,
Mas que ainda é de amor
À terra, ao povo, à poesia,
À Luta contra o opressor,
O canto da gesta santa
Do Cid Campeador.

Cruzou os mesmos caminhos
Que Carlos Magno cruzou
Pisou a terra onde um dia
Grande luta se travou
E o sangue de muitos bravos
A mesma terra lavou.

Seguiu as sendas guerreiras
Do cavaleiro Roldão,
Os passos de Santiago
Nesta terra e na amplidão,
Contemplou o sol nascente
E o chamou de “meu irmão”.

Viu florestas onde outrora
Várias lendas floresceram,
Inda escutou os murmúrios
De ventos que apareceram
Soprando muitas histórias
Das ninfas que não morreram.

Depois, voltou e encontrou-se,
Nas suas muitas memórias,
E nas memórias dos povos
Alegres e merencórias,
Forjadas por fios mágicos
No tecido das histórias.

Viu as bordas da cultura,
Mas nunca escolheu um lado:
Preferiu transitar livre
Entre presente e passado
E essa insubmissão
É o seu maior legado.

Ao Reino do Vai-Não-Torna,
Há um tempo viajou.
Com o seu querido Boris
Certamente se encontrou;
Por linhas certas e tortas
No Passo das Água Mortas
Seu nome em pedra gravou.

Nota: cordel escrito em homenagem à professora, ensaísta e tradutora baiana Jerusa Pires Ferreira (1938-2019), autora de livros essenciais  como Cavalaria em cordel, Fausto no horizonte e Matrizes impressas do oral. O poema foi lido pela professora Micheliny Verunschk no encontro Jerusa em presença, organizado pelo professor Amálio Pinheiro, no Tucarena, dia 13 de agosto, ocasião em que artistas, alunos e professores homenagearam a grande mestra dos estudos sobre a oralidade no Brasil. 

2 comentários:

J. J. disse...

Lindíssimo poema e merecidíssima homenagem!

Unknown disse...

Maravilhoso!obrigada pela homenagem à nossa querida mentora!