domingo, 9 de agosto de 2020

Bença, Painho (crônica para o Dia dos Pais)


Ninguém nasce no sertão à toa. Não é lição, nem frase de efeito. É constatação. Hoje, quando revisito a casa onde nasci, na Ponta da Serra, no semiárido baiano, onde caatinga e cerrado se abraçam, sou invadido por uma sensação estranha de vazio e de plenitude. A casa amarela, construída por meu bisavô, major Ramiro José de Farias, na década de 1920, é a única ainda de pé no que antes fora um casario. Um belo casario. Meu pai, Valdi, vendeu a propriedade em 1986, quando nos mudamos para Serra do Ramalho, muitas léguas além, nas barranceiras do rio São Francisco. Ficaram para trás, além da casinha de adobe, a igreja, também erguida por meu bisavô, e o umbuzeiro do quintal, que foi meu gabinete de leitura quando, enfim, comecei a decifrar, muito por conta própria, mas, principalmente, pelas leituras dos cordéis, o mundo da escrita. Ficou para trás a casa de meus avós paternos, Luzia e Joaquim, ela minha grande professora, contadora de histórias extraordinárias, Sherazade das noites sem fim do sertão de minha infância. Hoje, entre os escombros da casa, pastam as reses do atual proprietário.

E por que a sensação de vazio e de plenitude da qual falei há pouco? Talvez pela impossibilidade de recompor, mesmo na memória, tantas sensações, cheiros, sabores, vozes, cantos, choros, rezas, risos, vida jorrando de lábios e olhos. Ofício de Nossa Senhora da Conceição, padroeira da comunidade, rezado nas sentinelas e no dia da Santa, 8 de dezembro. A voz de Tio Dão, João Farias, se sobressaindo às demais, nas rezas ao pé do cruzeiro. Os ramos de Tio Maçu espantando a doença, o mau olhado, afugentando a peste. Madrinha Nenzinha, na moldura da janela de sua casinhola, à espera de alguém que lhe pedisse rapadura. Cachorro latindo, adivinhando assombração. Mas a lembrança que vincou mais forte é, sem dúvida, a de meu pai retornando todo o sábado, da feira de Bom Jesus da Lapa, aonde ia vender tijolos (doces feitos em tachos) e requeijão. A cada retorno ele trazia, sem falta, dois folhetos de cordel, que eram lidos no dia seguinte, com a presença de toda a família. A sua coleção, herdada de minha avó, já passava de uma centena. Os novos “moradores” disputavam com os mais velhos a minha predileção.

Não era incomum, ainda, ele cantar para eu dormir. Cantiga de adormecer menino pode ser assustadora, engraçada ou melancólica. Minha mãe, Maria, repetia, sempre, “o sapo cururu/ na beira do rio,/ quando o sapo canta/ é porque tem frio”. E ele respondia com um acalanto triste e bonito ao mesmo tempo. Aprendera-o com sua mãe. Falava de um passarinho que, por perder o amor, sucumbe à tristeza. A quadrinha final, com melodia dolente, era esta:

Passarinho, se eu pudesse
não te enterrava no chão:
mandava abrir sua cova
dentro do meu coração.

Hoje, quando retorno à Bahia, ainda peço para os meus pais fazerem uma roda de versos. E eles o fazem, abrindo as janelas das relembranças. O passado é um terço cujas contas são as memórias. De tempos idos. Sementes de primaveras que ainda florirão.

Marco Haurélio

Crônica publicada na revista Páginas Abertas, da Paulus Editora.