terça-feira, 18 de agosto de 2020

FOLCLORE, A CIÊNCIA DA PSICOLOGIA COLETIVA

 

Luís da Câmara Cascudo, nosso mais importante folclorista
Luís da Câmara Cascudo











O que vem a ser mesmo o Folclore, esta “cultura do popular tornada normativa pela tradição”, segundo mestre Luís da Câmara Cascudo? Quem são os garimpeiros que foram a campo, coligiram, estudaram e, mais raramente, interpretaram, à luz de mais de uma doutrina, as sementes espargidas em muitos locais, desde o tempo em que se acreditava que a Terra tinha quatro cantos? Eles atendem por vários nomes e pertencem a uma Sociedade Internacional, sem sede definida e cujos estatutos, sempre renovados, atualizados, valem em qualquer tempo e lugar. Atendem pelos nomes de Jakob e Wilhelm Grimm, Aurélio M, Spinosa, Carmen Lyra, Teófilo Braga, Adolfo Coelho, Sílvio Romero, João Ribeiro, General Couto de Magalhães, Lindolfo Gomes, Consiglieri Pedroso, Leite de Vasconcelos, René Basset, Carolina Michaelis de Vasconcelos,  Paul Sebillot, Giuseppe Pitré, Ion Creanga, Aleksander Afanas’ev, Joseph Jakobs, João da Silva Campos, Leite de Vasconcelos, Stith Thompson, Luís da Câmara Cascudo, Raffaele Corso, Andrew lang, Aluísio de Almeida, Waldemar Iglésias Fernandez, Oswaldo Elias Xidieh, Altimar Pimentel, Carlos Rodrigues Brandão, Idália Farinho Custódio, Abdulaziz Al Mussalam, Maria Aliete Farinho Galhoz, Theo Brandão, Joaquim Ribeiro, Edil Costa, Daniel D’Andrea, Doralice Alcoforado, Oswaldo Meira Trigueiro, Paulo Correia, Francisco Assis de Souza Lima, Ruth Guimarães, José Joaquim Dias Marques, Bráulio do Nascimento, Isabel Cardigos etc. e tantos outros admiráveis guardiães do Jardim da Tradição!

William John Thoms, criador do termo "Folclore"
William John Thoms

O termo Folclore (de folk, povo, e lore, saber, conhecimento), que abrange, além do patrimônio oral, tradições diversas vinculadas a usos, crenças e costumes, definidoras dos laços identitários que justificam a existência de povos e nações, surgiu nas páginas da revista londrina The Atheneum, no dia 22 de agosto de 1848. Empregou-a, pela primeira vez, sob o pseudônimo Ambrose Merton, o arqueólogo William John Thoms, bibliotecário da Câmara dos Lordes e reconhecido antiquário. O neologismo foi adotado pelos povos latinos, substituindo a palavra demologia. Os primeiros folcloristas concentraram esforços em recolher antigas tradições, frente ao risco iminente de desaparecimento. Peter Burke, em Cultura popular na Idade Moderna, relata essa “corrida do ouro” que desconcertou os humildes moradores de regiões até então pouco lembradas pelas elites econômicas e do pensamento: “Foi no final do século XVIII e início do século XIX, quando a cultura popular tradicional estava justamente começando a desaparecer que o ‘povo’ (o folk) se converteu num tema de interesse para os intelectuais europeus. Os artesãos e camponeses decerto ficaram surpresos ao ver suas casas invadidas por homens com roupas e pronúncias de classe média, que insistiam para que cantassem canções tradicionais ou contassem velhas histórias (2010, P. 26)”.

Doralice Alcoforado, coletora de contos e romances.
Doralice Alcoforado

Houve, claro, nesses 182 anos que se seguiram à publicação do artigo de Thoms, muitas disputas em torno do objeto de estudo dessa ciência da psicologia coletiva, notáveis avanços, raros retrocessos, motivando polêmicas que extrapolaram a fileira daqueles que defendiam o Folclore como ciência autônoma mas não desirmanada de outras áreas do pensamento, notadamente a Etnografia, a Antropologia e a Sociologia, sem esquecer, obviamente, a História. Câmara Cascudo, citado no início desse texto, reconhece esse equilíbrio, entre a permanência e a mobilidade, com a prevalência, no campo das predileções coletivas, de manifestações que comportam certos rituais, quando afirma: “Nenhuma disciplina de investigação humana imobilizou-se nos limites impostos, quando de seu nascimento. Qualquer objeto que projete interesse humano, além de sua finalidade imediata, material e lógica, é folclórico”. (Dicionário do Folclore Brasileiro, p. 319). É de João Ribeiro, pioneiro nos estudos sistemáticos da matéria no Brasil, conquanto estivesse impregnado, para além da conta, das ideias da escola alemã de Folclore, talvez a melhor definição: “O Folclore é, pois, uma pesquisa da psicologia dos povos, das suas ideias e seus sentimentos comuns, do seu inconsciente feito e refeito secularmente e que constitui a fonte viva de onde saem os gênios e as individualidades de escol” (O Folclore, p. 29).

Ponta da Serra, Bahia.
Ponta da Serra (Bahia)

Nascido numa localidade rural do interior baiano, acostumado desde cedo ao canto alegre dos acalantos e à melodia triste das “incelenças”, aos aboios e aos adjuntos, jamais imaginei que as procissões, corridas de argolinha, cavalhadas e festas de reis, além das histórias populares, cantigas e romances, vasto cortejo de tradições que conheci vivas e amadas, eram objeto de estudo para folcloristas e etnógrafos. Aquilo tudo, para mim, resumia-se em uma palavra: vida. Vida em plenitude.