"Leonor e Guilherme sobre o dorso do cavalo" de Johann David Schubert |
Ralada de ruins sonhos
Já desperta está Leonor,
E 'inda agora os
céus d'oriente
Da manhã tingiu o alvor.
«Guilherme, és morto?―ela exclama―
Ou traíste a pobre
amante?
Se vives, porque retardas
De te eu ver feliz instante?»
Nas tropas de
Frederico
Tempo havia que
partira
Para a batalha de
Praga,
E cartas dele quem vira?
Mas a
imperatriz e o rei
De guerras, enfim,
cansados,
Depondo os ânimos feros,
De paz faziam tratados.
Já aos seus
lares tornavam
Ambas as hostes
folgando.
Cingem frentes
ramos verdes;
Vem atabales rufando.
E por montes e por
vales
Velhos e moços
chegavam,
Dando brados de alegria,
A encontrar os
que voltavam.
―«Boa vinda! Adeus!―diziam
As filhas, noivas, e esposas.
E Leonor? Nenhum
dos vindos
Lhe faz carícias saudosas.
Por Guilherme ela
pergunta;
Por qual
estrada viria.
Vão trabalho; vãs perguntas:
Novas dele quem sabia?
Não o vê. Passaram
todos...
Em furioso devaneio,
Ei-la arranca as
negras tranças;
Fere cru o lindo
seio.
Sua mãe, correndo a
ela:
―«Valha-me
Deus!―lhe bradou.
― Minha filha, pois que é
isso?!»―
E entre os braços a apertou.
―«Minha mãe,
perdeu-se tudo!
O mundo, tudo perdi:
De nada Deus se condói...
Oh dor, oh pobre de mi!»―
―«Ai! Jesus venha à minha alma!
Filha, um
padre-nosso reza.
Deus é pai: sempre
nos ouve:
Nunca a humana dor despreza.»―
―«Minha mãe,
inútil crença!
Que bens me tem feito Deus?
Padre-nossos!.. padre-nossos!..
Que importam rezas aos céus?»―
―«Ai! Jesus venha á
minha alma!
Pois não é quem
reza ouvido?
Busca da
igreja o consolo
Verás teu pesar vencido.»―
―«Mãe, oh mãe, esta
amargura
Nenhum sacramento
adoça:
Não sei nenhum sacramento,
Que aos mortos dar vida possa.»―
―«Filha, quem sabe
se, ingrato,
Ele ás promessas
faltou;
E lá na remota
Hungria
Novo amor o
cativou?
Se, mudável, te
abandona,
Do crime o prêmio
terá:
Do último trance na angústia
O remorso o punirá.»―
―«Morreu-me, oh
mãe, a esperança.
Perdido... tudo é perdido!
Morrer, também, só
me resta.
Nunca eu houvera nascido!
Foge, oh sol resplandecente!
Manda a noite e os
seus terrores...
Deus, oh Deus, que
nunca escutas
O gemer de
humanas dores.»―
―«Meu Senhor! A desditosa
Não pensa o que a
língua exprime.
Não julgues a filha
tua:
Nem te lembres do seu crime.
Vãs paixões
esquece, oh filha:
Cogita no gozo eterno,
No sangue que te remiu,
E nos tormentos
do inferno.»―
–«O que é gozo
eterno, oh mãe,
E o inferno em que consiste?
Com Guilherme há gozo eterno,
Sem Guilherme o inferno existe.
Sem ele, que a
luz fugindo,
Se troque em
noturno horror;
Sem ele, no céu,
na terra
Só conheço acerba dor!»–
Assim no sangue e na mente
Fúria insana lhe fervia:
Cruel chamando ao Senhor,
Mil blasfêmias repetia.
Desde o sol brilhar
no oriente
Até que o céu se
estrelava,
As mãos, louca, retorcia,
O brando seio pisava.
Porém ouçamos!.. A
terra
Pisa um cavalo
lá fora!..
E pelos degraus da
escada
Tinem sons d'espada e espora...
Ouçamos! Batem na
argola
Pancadas que mal
feriram...
E através das
portas, claro,
Estas palavras se ouviram:
―«Oh lá, querida, abre a porta.
Dormes? Estás acordada?
Folgas em riso? Pranteias?
De mim és 'inda lembrada?»―
―«Guilherme, tu?!
Na alta noite?
Tenho velado e
gemido.
Quanto padeci!.. Mas, d'onde
Até 'qui tens tu corrido?!»―
―«Nós montamos à
meia-noite Só.
Vim tarde, mas
ligeiro,
Desde a Boêmia, e
comigo
Levar-te-ei, por derradeiro.»―
―«Oh meu querido
Guilherme,
Vem depressa: aqui
te abriga
Entre meus braços;
que o vento
Do bosque as crinas fustiga.»―
―«Rugir o deixa nos matos.
Sibila? Sibile embora!
Não paro... que o meu ginete
Escarva o chão... tine a espora...
Nosso leito nupcial
Dista cem milhas
d'aqui.
Sobraça as
roupas... vem... salta
No murzelo, atrás de mi.»―
«Além cem milhas,
me queres
Hoje ao tálamo
guiar?
Ouve... o relógio ainda soa:
Doze vezes fere o ar.»―
―«Olha em roda! A lua é clara:
Nós e os mortos bem corremos.
Aposto eu que n'um instante
Ao leito nupcial iremos?»―
―«Mas dize-me, onde é que habitas?
Como é o
leito do noivado?―
«Longe, quedo, fresco, breve:
De oito tábuas é formado.»―
―«Para dous?―«Para nós ambos.
Sobraça as roupas:
vem cá.
Os convidados esperam:
O quarto patente está.»―
Sobraçada a roupa, a bela
Para o ginete saltou,
E ao seu leal cavaleiro
Co' as alvas mãos se enlaçou.
Ei-los vão! Soa a corrida.
Ei-los vão, à fula-fula!
Ginete e
guerreiro arquejam:
A faísca, a pedra pula.
Ui, como, à
direita, à esquerda,
Ante seus olhos se
escoam
Prado e selva, e do galope
Sob a ponte os sons ecoam!
―«Tremes, cara? A
lua é pura.
Depressa o morto
andar usa.
Tens medo de
mortos?―«Não.
Mas deles
falar se escusa.»―
―«Que sons e cantos são estes?
O corvo ali remoinha!
Sons de sino? Hinos de morte?
É morto que se avizinha!»―
Era de feito um saimento,
Que andas e esquife levava:
Aos silvos de cobra em pego
Seu canto se assemelhava.
―«Um enterro à
meia-noite,
Com salmos e com
lamento,
E eu a minha
noiva levo
Ao sarau do casamento?
Vinde, sacristão e o
coro,
O epitalâmio entoai-nos;
Vinde, abade, e
antes que entremos
No leito, a bênção
lançai-nos.»―
Cala o som e o
canto: a tumba
Some-se: finda o
clamor
A seu mando; e o
tropel voa
Na pista do corredor.
Sempre mais alto a corrida
Soa. Vão á fula-fula.
Ginete e guerreiro
arquejam:
A faísca, a pedra pula.
Como à destra e esquerda fogem
Montes, bosques, matagais!
Como á destra e esquerda fogem
Cidades, vilas, casais!
―«Tremes, cara? A lua é pura.
Depressa o morto usa andar.
Temes os mortos, querida?»―
―«Ai, deixa-os lá repousar!»―
―«Olha! Ao redor de uma forca
Dançar em tropel não vês
Aéreos corpos, que alvejam
Da luz da lua através?
Oh lé, birbantes, aqui!
Birbantes,
acompanhai-me!
Vinde. A dança do
noivado
Junto do leito dançai-me.»―
E os vultos vêm
após logo,
Ruído imenso
fazendo,
Como o furacão nas
folhas
Secas do vergel rangendo.
E ressoando a corrida
Ei-los vão, á fula-fula.
Ginete e guerreiro
arquejam:
A faísca, a pedra pula.
Para trás fugir
parece
Quanto o luar
alumia;
Para trás suas
estrelas
Sumir o céu parecia.
―«Tremes, cara? A
lua é pura.
Depressa o morto
andar usa.
Temes os mortos, querida?―
―«Ai, deles falar se escusa!»―
―«Murzelo, o galo
ouvir creio!
Breve a areia há-de
correr...
Murzelo, avia-te, voa;
Que sinto o ar do amanhecer!
Nossa jornada está finda:
Ao leito nupcial chegamos:
Ligeiro os mortos caminham:
A meta final tocamos.»―
D'uma porta às grades férreas
À rédea solta chegaram,
E de frágil vara ao
toque
Ferrolho e chave saltaram.
Fugiram piando as aves:
A corrida, enfim,
parara
Sobre campas. Os moimentos
Alvejam; que a noite é clara.
Peça após peça, ao guerreiro
Cai a armadura lustrosa
Em negro pó impalpável,
Qual de isca fuliginosa.
Sua cabeça era um
crânio
Branco-pálido, escarnado:
Nas mãos tem foice e ampulheta,
Triste adorno de finado.
Alça-se e arqueja o
ginete:
Ígneas faíscas lançou,
E debaixo de seus pés
Abriu-se a terra, e o tragou.
Dos covais surgem
fantasmas:
Feio urrar os ares corta:
Bate incerto o coração
Da donzela semimorta.
Ao redor danças de
espectros
Em remoinho
passavam:
Canto de medonhas
vozes
Era o canto
que cantavam:
«Afliges-te? Oh,
tem paciência!
Não fosses com Deus
audaz.
Teu corpo pertence
á terra:
À tua alma o céu dê paz.»―
Gottfried August Bürger
Traduzido por Alexandre
Herculano
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