segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Minhas impressões sobre 'Cidade Invisível'

 

Cidade Invisível, série brasileira de suspense com pitadas de horror, dirigida por Carlos Saldanha, mal estreou na plataforma de streaming Netflix e tornou-se um sucesso de público em muitos países. Na linha dos velhos contos de detetive do sobrenatural, narra a história de um membro da polícia ambiental, Eric (vivido por Marco Pigossi), que, após um evento traumático em sua família, tenta desvendar um mistério envolvendo uma vila de pescadores que sofre o assédio de uma grande construtora, e se depara com personagens da mitologia brasílica.

A primeira referência que me veio à mente foi Arquivo X, e essa impressão foi reforçada pelo fato de Eric contar uma parceira, Carla (Áurea Maranhão), com a diferença de que, na produção brasileira, eles não formam um par romântico, e há uma desproporção em termos de presença em cena entre os dois. Uma cena em retrospectiva, aliás, dá a entender que Carla poderia ter uma participação mais efetiva na história.

Instado a opinar sobre, por conta de minhas pesquisas em torno das tradições populares, separei este fim de semana para assistir à série, o que ocorreu num contexto em que a produção passava por uma reavaliação por, supostamente, conforme se lê em matéria da revista Veja, ter esnobado os elementos indígenas, já que, segundo que, segundo Eduardo F. Filho, que assina a matéria, boa parte do folclore brasileiro se apoia em tradições ameríndias. Tenho evitado abordar a tradição oral brasileira a partir de uma visão antropológico-racial, abonada por Silvio Romero e Nina Rodrigues e abandonada desde o início do século XX, já que, como comprovou mestres dos estudos etnográficos no Brasil, como Edison Carneiro e Renato Almeida, questões ligadas às origens são menos importantes que as transformações pelas quais passam as manifestações tradicionais. O caudal que, por vezes, de forma redundante, chamamos de folclore, equilibra-se, paradoxalmente, entre a permanência e a dinâmica. Se é velho na memória do povo (Cascudo) e segue vivo na contemporaneidade merece ser estudado pela ciência da psicologia social.

Dito isso, minha impressão sobre a série foi a melhor possível. O que vi nela não foi um painel sobre o folclore brasileiro, mas uma trama em que as personagens servem à narrativa, reforçando o arco do protagonista, que, à maneira dos personagens dos filmes de Hitchcock (e as comparações acabam aqui) vê-se acossado de todos os lados até o limite do suportável. Isso vai levá-lo a defrontar não somente um inimigo real (os interesses especulativos da construtora individualizados na figura de seu presidente, dr. Afonso (Rubens Caribé), mas também as criaturas fantásticas do Brasil lendário, agora misturadas ao comum dos mortais, vivendo ou vegetando nas áreas degradadas do Rio de Janeiro.

E, neste ponto, abro um parêntese para externar minha impressão sobre as personagens a partir das liberdades naturais do roteiro.


Cuca, segundo descreve Luís da Câmara Cascudo, em Geografia dos mitos brasileiros, p. 200, “é um ente velho, muito feio, desgrenhado, que aparece durante a noite para levar consigo os meninos inquietos, insones ou faladores”. As canções de ninar, que poderiam ser chamadas sem erro de canções de assustar, tornaram-na conhecida de norte a sul, daí a expressão “a cuca vai pegar”, com sentido e contexto ampliados, ter-se tornado “o bicho vai pegar”. Mas, distante da velha feia e corcunda, imagem caricatural da Bruxa celebrizada por Goya, ou da cabeça flamejante das tradições ibéricas, ou, ainda, do dragão que desfila nas procissões religiosas, como espantalho das crianças e advertência para os adultos, Cuca é interpretada pela atriz Alessandra Negrini e nos faz lembrar a Lilith hebraica, e há uma razão para isso.

No imaginário brasileiro, a Bruxa pode se metamorfosear em borboleta e, dessa forma, visita as parturientes, o que ocasiona a morte de recém nascidos. Daí o costume de se conservar uma tesoura aberta sob o colchão, inibindo a inoportuna visita. Lilith, em sua encarnação de primeira mulher de Adão, jamais conseguiu ser mãe, sofrendo abortos espontâneos ou, conforme versões mais dark da lenda, gerando demônios. Recolhi uma lenda em brumado, Bahia, na qual a bruxa era uma mulher bela, a sétima filha, que visitava a cidade em forma de borboleta. Manuel Ambrósio, Brasil interior, p. 21, consigna a superstição:

“A muié que pare incarriado seis fia fema, condo é pra tê as sete, bota logo o nome de Adão, tudo trocado, senão a menina vem e logo sai bruxa. Assim que chega no sete ano vira aquela barbuletona, entra p’la fechadura da porta da muié parida e xupa o embigo das criança que morre c’o mal de sete dia, condo a parteira não é boa mestra e esquece de botá a tesoura aberta debaixo da cama da parida, onde a criança nasce”.


Tutu, o bicho papão que assombrou os sonhos de muitas crianças desde o período colonial, é importação africana, embora Alfredo do Vale Cabral enxergasse no nome origem indígena: tu-tu seria “bate-bate” e evocaria as palmadas das amas na bunda dos meninos manhosos. Pertence, na vigorosa de classificação de Câmara Cascudo, ao “ciclo da angústia infantil”, do qual fazem parte, entre outros, a já citada Cuca e a Cabra-Cabriola, esta última personagem de um conto baiano recolhido pelo mestre João da Silva Campos. Cascudo faz derivar tutu de quitutu, do idioma quimbundo, significando “papão”, “ogre”, sendo a palavra também sinônimo de “briguento” na língua original. Por convergência, será chamado, no Brasil, Tutu-zambé, Tutu-Marambá ou Marabá e, ainda, Tutu-Marambaia, depois confundido com o Caititu (porco-do-mato), no processo natural de hibridação. Vale Cabral, no século XIX, registrou:

“Tutu Marambaia,
Não venhas mais cá;
Que o pai do menino
Te manda calar.”

Na série, o Tutu é um leão de chácara ruivo, barbudo e com cara de poucos amigos, muito bem interpretado pelo ator Jimmy London, em caracterização que se distancia muito de sua origem bantu.


Outra personagem fundamental na série é o Curupira, o primeiro a dar as caras, “o deus que protege as florestas”, como escreveu Couto de Magalhães em 1876. Foi a primeira entidade a ser registrada em papel por um europeu, no caso, o Padre José de Anchieta, em 1560, que grafa Coropira, incluindo-o na classe dos “demônios” que “acometem aos índios muitas vezes no mato, dão-lhes açoites, machucam-n’os e matam-n’os”. Ainda segundo o padre cronista, a entidade era apaziguada com penas de aves, abanadores e flechas, a título oblatório. Em Cidade Invisível, onde vive um deus no exílio, Curupira é interpretado pelo ator baiano, de ascendência indígena Fábio Lago, nacionalmente conhecido por dar vida a Fabiano na novela global Caras & Bocas (2009).


Do Saci e da Mãe d’Água falo com especial apreço, haja vista que ambos frequentam as matas e as águas correntes de minha infância sertaneja. À diferença do Saci retratado na série, traquino e manhoso, registrei na Bahia, no livro Contos e lendas da Terra do Sol (Paulus, 2018, parceria com Wilson Marques), uma lenda em que o pequeno duende negro aparece como um papão que carrega,  em um redemoinho, os meninos travessos para a floresta na intenção de devorá-los. Na história que reproduzi, o Saci parece se apropriar dos atributos de um papão pouco conhecido, o Pilão, e isso se deve à punição do menino, que é levado sentado num pilão para a mata, escapando por pouco, ao agarrar-se aos galhos de uma árvore muito alta. O Saci da série (Wesley Guimarães) está mais próximo do registro de Monteiro Lobato, mas, numa cena em especial, um flashback que nos transporta ao tempo da escravidão, tentativa de explicar o porquê de ele ser perneta, há ecos da lenda gaúcha do Negrinho do Pastoreio. Vivendo na Lapa, bairro boêmio do Rio, usando uma prótese, a personagem fica perigosamente próxima do estereótipo do malandro carioca.


Na vasta pesquisa que fiz, especialmente no sertão baiano, jamais ouvi a palavra Iara figurando sereia na boca do povo. É sempre Mãe d’Água, popularíssima em toda a área povoada do rio São Francisco, entidade das águas capturada por um pescador, com quem se casa, à força, cumulando-o de bens e abandonando-o, muitos anos depois, por ter ele “arrenegado” do povo rio, o seu povo. Vale dizer que toda a riqueza, incluindo os filhos que o casal tivera, é tragada pelo rio, para onde a Mãe d’Água (à maneira da Melusina) retorna, reassumindo o seu trono submerso. Confunde-se com Yemanjá, filha de Olokum e deusa do mar, segundo Pierre Verger, e com a Calunga bantu, também senhora das águas, citada na cantiga entoada pela Mãe d’Água, já liberta de seu voto, no registro de João da Silva Campos. Na mitologia ioruba, Yemanjá abre caminho para o mar quebrando uma garrafa que se transforma em rio, escapando das garras de Okere, seu marido possessivo. Estudei o tema da noiva sobrenatural cujo matrimônio está vinculado a um voto violado pelo marido humano no livro Contos e Fábulas do Brasil. Conscientemente ou não, na série a Iara (designação que parece vir de uma confusão verbal com Jara, "senhor" em tupi) é vivida por uma atriz negra, Jessica Córes, cantora de profissão, que, assim como sua ancestral mítica, a sereia retratada por Homero, na Odisseia, atrai, com sua bela voz os homens para o fundo do mar.

Desenho de um lobisomem para a história "The Werewolf Howls".
Revista Weird Tales (Novembro, 1941).

O grande antagonista, ainda que não corporificado, é o Corpo-seco. Na série, essa aleivosia aparece amalgamada a uma personagem de uma lenda mineira, o Bicho da Carneira ou Bicho da Pedra Azul, também chamado Lanudo, que, em sua motivação básica, tem origem europeia: o ente maldito recusado pela terra, pelo céu e pelo inferno, como o Jack da Lanterna do folclore irlandês. A lenda, contada no norte de Minas, envolve uma personagem real, Joaquim Antunes de Oliveira, homem letrado e de origem judaica que, segundo relatos, por volta de 1890, teria invadido uma igreja, sendo, por esse ato de impiedade, excomungado pelos padres jesuítas. Vítima de um mal súbito, que o deixou paralisado, por volta de 1900, o episódio da excomunhão foi rememorado e a doença, encarada como castigo. Morto e sepultado, por ocasião de uma mudança do local do cemitério, ao ser exumado, o seu corpo não revelava marcas de corrupção. O túmulo para onde foi o corpo trasladado, certa ocasião, amanheceu aberto, e a descoberta de animais domésticos trucidados alimentaram a lenda do Bicho. Variante da mesma lenda alude ao fato de Antunes (nome do vilão que se tornará o Corpo-seco na série) ter selado e montado a própria mãe, sendo, por isso, amaldiçoado. Essa variante aproxima-o do Romãozinho e do Gritador, filhos amaldiçoados que viram bichos depois de mortos. Recolhi, em Igaporã, Bahia, uma história ainda inédita em livro com alguns pontos em comum: o amaldiçoado é um fazendeiro do sul da Bahia, de nome João, ruim até não poder mais, cuja sepultura é encontrada aberta depois de muitos estragos nas criações (animais domésticos criados para venda ou abate). A sepultura é cercada por uma jaula onde foi encontrado preso um lobisomem que conservava o mesmo rosto do falecido.

À diferença da série, não encontrei, nem nos livros e nem em minhas anotações, Corpo-seco com a função de espírito obsessor. Imagino que os roteiristas, trazendo à luz uma personagem tão problemática, buscavam uma entidade que pudesse sintetizar a ganância predatória, verdadeira maldição no país onde biomas como o cerrado e a Amazônia ardem em chamas.

Por fim, o Boto, entidade cujo deslocamento geográfico causou profunda estranheza, em que pese o seu nome na série, Manaus, indicar a sua procedência. Em sua função de sedutor, contraparte masculino da Mãe d’Água, o Boto como amante antropomorfo inexiste nos relatos dos cronistas coloniais e o primeiro registro se dá apenas em meados do século XIX, culminando no Uauaiará da hierarquia de deuses estabelecida por Couto de Magalhães, vista hoje com ressalvas. No verbete Boto, do Dicionário do Folclore Brasileiro (INL, 1962, págs. 131-34), Luís da Câmara Cascudo, amparado em ampla bibliografia, indica fontes clássicas, como Auro Gélio, apontando para a antiga tradição dos delfins “voluptuosos e enamorados” do Mediterrâneo. Na série, o Boto em sua forma humana é vivido pelo ator Victor Sparapane, e, apesar de ter uma participação relativamente pequena, conecta-se à trama principal (o mistério, do qual pouco falei, evitando spoilers) e a uma interessante trama paralela, por meio da personagem Fabiana (Tainá Medina), que espera um filho dele.

Fora do ciclo encantado, mas inteiramente ligado a ele, está Ciço, líder comunitário da Vila Toré, interpretado pelo ator paraibano José Dumont, talvez a presença mais marcante de toda a série, representante do pensamento mágico, sempre ameaçado num país que se recusa a olhar para as suas tradições na mesma medida que se recusa a preservar as suas florestas e os modos de vida tradicionais.

Fecho o parêntese e volto a falar da série.

Há algumas semanas tenho lido, nas redes sociais, comentários a respeito da série e postagens com links sobre as criaturas fantásticas, incluindo dicas de livros, como o já citado, e imprescindível, Geografia dos mitos brasileiros, além de obras sobre o tema da escritora Januária Cristina Alves, consultora da série, autora de livros sobre o folclore brasileiro, homenageada pelos roteiristas, que batizaram com o seu nome a avó do protagonista (Thaia Perez). Os debates em torno de questões identitárias também são muito bem-vindos, desde que pautados no respeito à liberdade que é o cerne da criação artística. E é em torno desses debates, afinal o mundo da arte é essencialmente dialético, que se alicerçam as histórias contadas, escritas ou filmadas, alimentadas pela imaginação poderosa de todos os povos desta terra.