quarta-feira, 21 de julho de 2021

ANA E OS LOBOS



Ana Lúcia Merege é uma mulher que corre com os lobos. Por sua prosa ecoam narrativas fantásticas da Antiguidade e do Medievo relidas, refundidas, renascendo, jovens e vigorosas como se saltassem do caldeirão fervilhante de Medeia. Ana passeia por vários mundos e épocas, temperando sua fantasia sofisticada com pitadas de sword and sorcery, afinal, a literatura da Estante Mágica não aceita amarras nem compartimentos. O primeiro livro seu a que tive acesso era um ensaio sobre os contos de fadas, lançado de forma independente e com tiragem limitada, naquele momento, a uns poucos curiosos. Na época, eu coordenava uma coleção pela Editora Claridade, selo da Nova Alexandria, chamada Saber de Tudo. Não pensei duas vezes e entrei em contato com a Ana, convidando-a para fazer parte da coleção, que relançaria o seu livro, o que, efetivamente, aconteceu na primavera de 2010. Escolhi para figurar na capa uma pintura realista de Albert Anker que trazia Chapeuzinho Vermelho como uma menina de aldeia do século XIX. Fora-me sugerida a repisadíssima gravura de Gustave Doré, da versão de Charles Perrault, utilizada ad nauseam, mas não arredei pé de minha escolha, e, até hoje, é esta imagem que adorna a capa do livro que, a cada ano, vem sendo acarinhado por muitos leitores.

Qual não foi, portanto, minha surpresa ao me deparar com a sua novela fantástica O caçador, quase em seguida à edição de Os contos de fadas, e perceber tratar-se de um livro que em quase nada se filiava ao anterior, embora os vários personagens de um frequentassem as páginas do outro. Claro, são gêneros distintos, enfocando universos que se entrecruzam, mas, a ficção permite liberdades das quais os estudos sistemáticos têm de fugir como a Chapeuzinho do Lobo. A maior surpresa ficou por conta do improvável protagonista. Personagem periférico em Branca de Neve, quase um braço da rainha vilã, o Caçador aparece com mais destaquem Chapeuzinho Vermelho, cumprindo o papel de herói salvador. Sua rivalidade com o lobo, velha como a própria atividade de onde tira o sustento, é realçada na versão dos Irmãos Grimm, mais completa e interessante que a anterior, e certamente modificada, de Charles Perrault. O predador é chamado de “velho pagão”, o que não nos causa qualquer surpresa, dados os antecedentes míticos, especialmente entre os povos germânicos e escandinavos, nos quais o Lobo está diretamente associado às forças do Caos (encarnadas em Fenrir) e ao fim do ciclo dos deuses e heróis dos povos do setentrião. Lobo e Caçador são, portanto, na versão canônica mais celebrada do conto-tipo Chapeuzinho Vermelho, inimigos irreconciliáveis. Mas será que sempre foi assim? Afinal, os mais antigos mitos, como o Gilgamesh sumério, apontam para uma ligação anímica entre caçador e caça, no caso entre o herói e o leão por ele superado e a ele assimilado.

Variações do conto da menina do chapeuzinho vermelho

No índice ATU, que reúne boa parte dos contos recolhidos e divulgados em coletâneas pelo mundo, Chapeuzinho Vermelho (Capuchinho Vermelho em Portugal) é o tipo 333 [Little Red Riding Hood] e, segundo Paulo Correia e Isabel Cardigos, divide-se em três partes:

I. (a) Uma menina é mandada pela mãe levar um bolo, etc. à avó, que vive do outro lado da floresta. (b) A mãe avisa-a em relação aos lobos.

II. A menina encontra o lobo, (a) que dela aprende como entrar em casa da avó. (b) O lobo chega primeiro, (b1) come a avó, (b2 ) deita-se na cama dela e espera pela menina; (c) a menina julga que o lobo é a avó; (c1) diálogo formulístico entre o lobo e a menina, antes de (c2) o lobo a comer.

III. A menina (a) é salva (a1) juntamente com a avó, (b) por um caçador / (b2) lenhador; (c) enchem a barriga do lobo com pedras, o lobo tem sede cai no rio e afoga-se.

Sandra L. Beckett, no verbete Chapeuzinho Vermelho, escrito para a monumental Greenwood Encyclopedia of Folktales and Fairy Tales (págs. 583-588), cita o “Conte de la mere-grand (‘O conto da avó’), coletado em Nièvre por volta de 1885 e publicado pelo folclorista francês Paul Delarue em 1951”, em versão que, por seu conteúdo mais elaborado e livre de podas moralistas, certamente corria na tradição oral muito antes do registro de Perrault:  

Neste conto popular, uma menina camponesa é enviada para a avó com um pedaço de pão quente e uma garrafa de leite. Em uma bifurcação no caminho, ela conhece um bzou, ou lobisomem, que, depois de saber para onde está indo, pergunta se está seguindo o caminho das agulhas ou o caminho dos alfinetes. Nesta versão, a garota escolhe agulhas, mas em alguns contos ela prefere alfinetes. Enquanto alfinetes parecem ser um símbolo da maioridade, agulhas parecem significar a sexualidade de uma mulher mais velha. O lobisomem segue o outro caminho e chega primeiro à casa da avó, onde mata a velha e coloca um pouco de sua carne na despensa e um pouco de seu sangue em uma garrafa. Quando a garota chega, o lobisomem a convida a comer um pouco de carne e a beber vinho. Durante essa refeição canibal, a menina é avisada por um ou mais animais, nesta versão por um gato, de que está comendo a carne e bebendo o sangue de sua avó. A refeição ritual parece simbolizar uma incorporação física da velha senhora, que é substituída pela geração mais jovem. Quando o lobisomem convida a garotinha a se despir e a se juntar a ele na cama, segue-se uma longa “provocação”. Ao tirar as roupas, peça por peça, ela pergunta ao lobisomem o que fazer com seu avental, corpete, saia, anágua e meias. Ela é instruída a jogar cada item no fogo, pois não precisará mais dele. O diálogo dramático sobre as características físicas do lobisomem é mais longo e inclui seu corpo peludo.

Nesta versão, não há um salvador e a heroína escapa valendo-se de sua astúcia. A pretexto de aliviar-se, vai até o quintal com um fio de lã amarrado ao pé. Livra-se do fio, amarrando-o a uma ameixeira, e, quando o lobo descobre o logro, já era muito tarde.

Há variantes em que, em lugar do lobo, aparece uma ogra, que substitui a avó, devorada pouco antes da chegada da menina. Um clássico exemplo é A falsa avó, conto reelaborado por Italo Calvino, no qual a casa da avó fica do outro lado do rio Jordão e possui uma fechadura à guisa de boca, como a porta da isbá da Baba-Yaga eslava. A jovem consegue atravessar o rio atirando-lhe roscas e atravessa a porta gradeada, servindo-lhe pão com óleo, untando-lhe as dobradiças enferrujadas. A heroína, esfaimada, escapa por pouco de deglutir o que restara da pobre velha: os dentes e as orelhas, que a usurpadora assegurara serem feijões e fritadas. Depois do diálogo formulístico, e involuntariamente engraçado, girando em torno do excesso de pelos da “avó”, a menina descobre a verdade ao deparar-se com o rabo da ogra (e, aqui, não nos é difícil conjecturar que se trata de mais um disfarce do lobo). Pretextando, também, fazer as necessidades, a menina escapa, amarrando a corda que lhe prendia a cintura a uma cabra. Repetindo o motivo da fuga mágica, a porta gradeada facilita-lhe a passagem. Do mesmo jeito o rio Jordão, que acaba por afogar a velha, conforme o motivo D672: fuga de obstáculo (o rio separa o fugitivo de seu perseguidor) do conto egípcio dos Dois Irmãos, inspiração também para o episódio narrado em Êxodo 14:21-23 (a passagem do Mar Vermelho). Esta velha ogra se assemelha muito à Baba-Yaga em seu aspecto maléfico, incluindo a casa-monstro, que vem a ser justamente o oposto do que se nos apresenta à primeira vista. É, na verdade, a casa da iniciação, espaço delimitador de dois mundos (o dos vivos e o dos mortos) onde se dá a morte e o renascimento da heroína. É o oposto da vila onde a menina reside, em cujos arredores, acreditamos, cultiva-se o pão e a uva para o fabrico do pão (ou bolo) e do vinho, que a menina trará para a “avó”, ou seja, sua ancestral mítica, que mora na floresta. A localização da menina e da velha apontam para dois estágios sociais distintos, um ligado às práticas e aos ritos agropastoris (resumidos na oferenda do pão e do vinho eucarísticos, presentes nos mistérios de Elêusis), e outro muito mais antigo, relacionado à velha deusa da Morte, senhora da floresta, “o reino dos mortos”, para os quais a heroína, se quiser renascer, terá de fazer determinados sacrifícios: untar a fechadura ou as dobradiças com óleo é uma forma de libação, uma garantia de que a heroína retornará ao mundo dos vivos. Este é o contexto histórico e ritualístico do conto da menina do Chapeuzinho Vermelho.

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Notas: 1. Trecho do prefácio do livro O caçador, escrito por mim a pedido da autora.
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