Novo grupo de estudos na Casa Tombada revisitará o universo simbólico dos contos de fadas.
1. Conto popular: conceituação,
classificação, percurso e permanência
Conto popular ou conto tradicional é
denominação genérica para o rol de histórias divulgadas oralmente, com grande
abrangência temática e motivos recorrentes que, combinados e recombinados, dão
origem a novas narrativas. A um só tempo universal e familiar, rico de símbolos
e significados, base de todas as literaturas de todos os países, manancial de
que se serviram autores de todas as épocas, o conto popular é, hoje, objeto de
estudo não apenas do folcloristas, inspirando, também, psicólogos, etnólogos,
linguistas e escritores, além de artistas plásticos e cineastas.
2.
Contos de fadas na Antiguidade
O conto de fadas é designação genérica e, por vezes, arbitrária, das
histórias maravilhosas em que predominam jornadas heroicas, intervenção de
ajudantes sobrenaturais e realização de tarefas a princípio tidas como
impossíveis. Embora a designação tenha sido cunhada pela Baronesa d’Aulnoy, na
França do século XVII, histórias com as características descritas acima
remontam à Antiguidade e podem ser vislumbradas no Egito, Mesopotâmia, Índia e
Grécia. Do Épico de Gilgamesh, que precede o Gênesis bíblico em dois
milênios, ao Asno de Ouro, encontramos muitos dos motivos fantásticos
que ainda vivem na memória coletiva.
3. Eros e Tânatos: De Píramo e Tisbe a
Tristão e Isolda
É preciso dar mais atenção às
histórias que não trazem o clássico “felizes para sempre”, clichê moderno que
parece relacionar-se com certo tipo de “conquista do paraíso” a partir da
ascensão social ou econômica. Essa ascensão balizada no poder temporal
substitui as antigas apoteoses e rebaixam ao nível profano as jornadas
iniciáticas. Histórias como a de Píramo e Tisbe, registrada por Ovídio, e
Tristão e Isolda, além do estranho, e maravilhoso, mito irlandês de Diarmuid e
Gráinne, servem a outra dinâmica na qual a tragédia, sempre causada por uma
interdição, é sinônimo do amor servido na mesma taça da morte (e,
paradoxalmente, da imortalidade).
4. Jornadas ao outro mundo e a Terra da
Felicidade
A descida ao Reino dos Mortos, tema
fulcral nas religiões de mistérios, une personagens distintos e distantes, como
Gilgamesh, Ulisses, Orfeu, Hércules, o deus criador xintoísta Izanágui, Jesus
Cristo e o poeta Dante Alighieri. O tema da Catábase, ou seja, da descida aos
infernos, encontrável também nos contos de fadas, está relacionado à busca da
restauração de certa ordem perdida pela violação de um tabu ou à realização de
uma tarefa impossível para o comum dos mortais. Já “A Ilha da Felicidade”, da
Baronesa d’Aulnoy, o primeiro conto rotulado como “de fadas”, remete às
jornadas ao outro mundo, arraigadas na psique coletiva, nas quais a busca por
imortalidade, ou felicidade, fracassam diante da negligência do herói.
5. Melusina ou o feminino incompreendido
Viva, por muitos séculos na tradição
oral francesa, a lenda da Melusina, a fada iniciadora da linhagem de Lusignan,
imortalizada em romance por Jean d’Arras, em 1392, liga-se a um esquema
universal cujas raízes remontam ao casamento sagrado (hierogamia), rompido pela
violação de um tabu. Da mitologia grega (Tétis) à Ioruba (Iemanjá), passando
pelo conto popular brasileiro da Mãe d’Água e pela lenda medieval portuguesa da
Dama Pé de Cabra, além do conto fantástico japonês da Yuki-Ona, a história traz
pontos de aproximação com a lenda “urbana” da mulher de branco ou a noiva do
cemitério.
6. Morgana, Guinevere e o rosto feminino
da Távola Redonda
Quando evocamos o vasto ciclo da Távola Redonda, com seus heróis lendários e lugares reais ou sonhados, quase ouvimos o tilintar das espadas, o ranger das armaduras e o trote dos cavalos. São imagens plasmadas em livros, canções e, mais recentemente, no cinema e nos quadrinhos. Mas, a despeito de haver se desenvolvido sob o influxo das sociedades de corte e sob a inspiração de símbolos cristãos substituindo os antigos modelos pagãos, as histórias da Távola Redonda preservam muito do substrato celta e dos mitos indo-europeus. A demonização de Morgana, avatar da deusa Morrigan, é, sem dúvida, o lado mais perverso desse processo no qual divindades antigas que desempenhavam funções vitais, abarcando todos os sentidos da existência, passam a simbolizar apenas o aspecto sombrio da vida e da natureza. Ao recuperarmos a sua dimensão divina, compreendemos melhor a nossa dimensão humana.
7. As velhas narradoras de Basile, as
fiandeiras de Cascudo e as moiras dos antigos: o fio do destino é o mesmo das
histórias
A caracterização grotesca das velhas
fiandeiras do conto popular homônimo por vezes se confunde com a caracterização
das doadoras mágicas, como as Greias do mito de Perseu, e as Moiras e Parcas da
mitologia grega e latina. As mesmas características são detectáveis nas dez
narradoras das cinco jornadas do Conto dos contos e nas auxiliares
mágicas do conto Pelle d’Anette, recolhido por Paul Sébillot na Alta Bretanha,
França. Ameaçadoras e benevolentes, doadora e punidoras, tais personagens se
fundem com a velha ogra dos contos infantis, nas palavras de Jack Zipes
“perigosa e benevolente, canibal e sábia conselheira”.
8. O conto de fadas na contemporaneidade
Mircea Eliade, em Imagens e
Símbolos, afirma que “o pensamento simbólico não é uma área exclusiva da
criança, do poeta ou do desequilibrado: ela é consubstancial ao ser humano;
precede a razão discursiva”. Isso talvez explique porque, a despeito do
aparente triunfo do Racionalismo e do Cientificismo no século XIX, os mitos não
tenham desaparecido; quando muito, eles se deslocaram dos reinos dos confins,
situados para além da terra percorrível, para o espaço ilimitado; do tempo
mensurável para outro, indefinido, tendo por cenário uma galáxia “muito, muito
distante”, como adverte o letreiro inicial de Star Wars (1977). O conto
de fadas não passa por uma reinvenção, simplesmente se atualiza, já que as suas
raízes mais profundas não se encontram em um lugar específico, mas no mais
profundo de nossa psique.
Referências
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