sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Contos de Fadas Raízes Históricas, universo simbólico, reminiscências míticas e atualizações

Novo grupo de estudos na Casa Tombada revisitará o universo simbólico dos contos de fadas.

 

1.      Conto popular: conceituação, classificação, percurso e permanência

Conto popular ou conto tradicional é denominação genérica para o rol de histórias divulgadas oralmente, com grande abrangência temática e motivos recorrentes que, combinados e recombinados, dão origem a novas narrativas. A um só tempo universal e familiar, rico de símbolos e significados, base de todas as literaturas de todos os países, manancial de que se serviram autores de todas as épocas, o conto popular é, hoje, objeto de estudo não apenas do folcloristas, inspirando, também, psicólogos, etnólogos, linguistas e escritores, além de artistas plásticos e cineastas.

2.      Contos de fadas na Antiguidade

O conto de fadas é designação genérica e, por vezes, arbitrária, das histórias maravilhosas em que predominam jornadas heroicas, intervenção de ajudantes sobrenaturais e realização de tarefas a princípio tidas como impossíveis. Embora a designação tenha sido cunhada pela Baronesa d’Aulnoy, na França do século XVII, histórias com as características descritas acima remontam à Antiguidade e podem ser vislumbradas no Egito, Mesopotâmia, Índia e Grécia. Do Épico de Gilgamesh, que precede o Gênesis bíblico em dois milênios, ao Asno de Ouro, encontramos muitos dos motivos fantásticos que ainda vivem na memória coletiva.

3.      Eros e Tânatos: De Píramo e Tisbe a Tristão e Isolda

É preciso dar mais atenção às histórias que não trazem o clássico “felizes para sempre”, clichê moderno que parece relacionar-se com certo tipo de “conquista do paraíso” a partir da ascensão social ou econômica. Essa ascensão balizada no poder temporal substitui as antigas apoteoses e rebaixam ao nível profano as jornadas iniciáticas. Histórias como a de Píramo e Tisbe, registrada por Ovídio, e Tristão e Isolda, além do estranho, e maravilhoso, mito irlandês de Diarmuid e Gráinne, servem a outra dinâmica na qual a tragédia, sempre causada por uma interdição, é sinônimo do amor servido na mesma taça da morte (e, paradoxalmente, da imortalidade).

4.      Jornadas ao outro mundo e a Terra da Felicidade

A descida ao Reino dos Mortos, tema fulcral nas religiões de mistérios, une personagens distintos e distantes, como Gilgamesh, Ulisses, Orfeu, Hércules, o deus criador xintoísta Izanágui, Jesus Cristo e o poeta Dante Alighieri. O tema da Catábase, ou seja, da descida aos infernos, encontrável também nos contos de fadas, está relacionado à busca da restauração de certa ordem perdida pela violação de um tabu ou à realização de uma tarefa impossível para o comum dos mortais. Já “A Ilha da Felicidade”, da Baronesa d’Aulnoy, o primeiro conto rotulado como “de fadas”, remete às jornadas ao outro mundo, arraigadas na psique coletiva, nas quais a busca por imortalidade, ou felicidade, fracassam diante da negligência do herói.

5.      Melusina ou o feminino incompreendido

Viva, por muitos séculos na tradição oral francesa, a lenda da Melusina, a fada iniciadora da linhagem de Lusignan, imortalizada em romance por Jean d’Arras, em 1392, liga-se a um esquema universal cujas raízes remontam ao casamento sagrado (hierogamia), rompido pela violação de um tabu. Da mitologia grega (Tétis) à Ioruba (Iemanjá), passando pelo conto popular brasileiro da Mãe d’Água e pela lenda medieval portuguesa da Dama Pé de Cabra, além do conto fantástico japonês da Yuki-Ona, a história traz pontos de aproximação com a lenda “urbana” da mulher de branco ou a noiva do cemitério.


6.      Morgana, Guinevere e o rosto feminino da Távola Redonda

Quando evocamos o vasto ciclo da Távola Redonda, com seus heróis lendários e lugares reais ou sonhados, quase ouvimos o tilintar das espadas, o ranger das armaduras e o trote dos cavalos. São imagens plasmadas em livros, canções e, mais recentemente, no cinema e nos quadrinhos. Mas, a despeito de haver se desenvolvido sob o influxo das sociedades de corte e sob a inspiração de símbolos cristãos substituindo os antigos modelos pagãos, as histórias da Távola Redonda preservam muito do substrato celta e dos mitos indo-europeus. A demonização de Morgana, avatar da deusa Morrigan, é, sem dúvida, o lado mais perverso desse processo no qual divindades antigas que desempenhavam funções vitais, abarcando todos os sentidos da existência, passam a simbolizar apenas o aspecto sombrio da vida e da natureza. Ao recuperarmos a sua dimensão divina, compreendemos melhor a nossa dimensão humana.


7.      As velhas narradoras de Basile, as fiandeiras de Cascudo e as moiras dos antigos: o fio do destino é o mesmo das histórias

A caracterização grotesca das velhas fiandeiras do conto popular homônimo por vezes se confunde com a caracterização das doadoras mágicas, como as Greias do mito de Perseu, e as Moiras e Parcas da mitologia grega e latina. As mesmas características são detectáveis nas dez narradoras das cinco jornadas do Conto dos contos e nas auxiliares mágicas do conto Pelle d’Anette, recolhido por Paul Sébillot na Alta Bretanha, França. Ameaçadoras e benevolentes, doadora e punidoras, tais personagens se fundem com a velha ogra dos contos infantis, nas palavras de Jack Zipes “perigosa e benevolente, canibal e sábia conselheira”.

8.      O conto de fadas na contemporaneidade 

Mircea Eliade, em Imagens e Símbolos, afirma que “o pensamento simbólico não é uma área exclusiva da criança, do poeta ou do desequilibrado: ela é consubstancial ao ser humano; precede a razão discursiva”. Isso talvez explique porque, a despeito do aparente triunfo do Racionalismo e do Cientificismo no século XIX, os mitos não tenham desaparecido; quando muito, eles se deslocaram dos reinos dos confins, situados para além da terra percorrível, para o espaço ilimitado; do tempo mensurável para outro, indefinido, tendo por cenário uma galáxia “muito, muito distante”, como adverte o letreiro inicial de Star Wars (1977). O conto de fadas não passa por uma reinvenção, simplesmente se atualiza, já que as suas raízes mais profundas não se encontram em um lugar específico, mas no mais profundo de nossa psique.  


Referências

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Quando

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