Proposta de capa para o folheto clássico A Chegada de Lampião no Inferno (Luzeiro), de Eugenio Colonnese. |
A escola de samba Imperatriz Leopoldinense foi, com justiça, campeã do último Carnaval carioca com enredo sobre Lampião e suas perambulanças pelo céu e pelo inferno, do carnavalesco Leandro Vieira. Há cerca de seis anos (2016), ao revisar o livro Breve História da Literatura de Cordel (Claridade) para uma nova edição, resolvi ampliar o capítulo "O menestrel e o bandoleiro", que abordava as trajetórias míticas do Cego Aderaldo e de Lampião, a partir de um insight: os folhetos de José Pacheco da Rocha (1890-1934), narrando a jornada post-mortem do famoso cangaceiro, se encaixavam perfeitamente na tese de M. Bakhtin sobre o riso (e, claro, na noção de "realismo grotesco" esmiuçada por ele a partir da obra de Rabelais. Abaixo, o trecho do livro no qual abordo esta noção, evocando ainda o teatro popular de bonecos, possível inspiração de Pacheco, um homem do chão da feira, numa época em que as feiras nordestinas eram verdadeiros festivais de celebração da cultura espontânea:
28 de julho de 1938. Nesta data,
ocorreu a chacina de Angicos, em Sergipe, onde, sem nenhuma chance de defesa,
morreram Lampião, sua companheira Maria Bonita e mais nove cangaceiros. Virgolino
Ferreira da Silva, o temível Lampião, é de longe o personagem mais biografado
no Cordel. Nenhuma outra personalidade histórica chama mais a atenção dos vates
populares.
O mais famoso folheto sobre o Rei do Cangaço, A chegada de Lampião no Inferno, de José Pacheco, já ultrapassou em muito a marca de um milhão de exemplares vendidos. Nele, a notícia trazida pela alma penada de um cangaceiro, de nome Pilão Deitado, dá conta da confusão dos diabos (sem trocadilhos) provocada pelo Capitão recém-chegado às profundas. Composto em setilhas, desde o início este folheto exerce um fascínio irresistível no leitor, graças ao humor ao mesmo tempo ingênuo e malicioso:
Um cabra de Lampião,
Por nome Pilão-Deitado,
Que morreu numa trincheira
Um certo tempo passado,
Agora pelo sertão
Anda correndo visão,
Fazendo mal-assombrado.
E foi quem trouxe a notícia
Que viu Lampião chegar.
O Inferno, nesse dia,
Faltou pouco pra virar –
Incendiou-se o mercado,
Morreu tanto cão queimado,
Que faz pena até contar!
O cordel de José Pacheco dialoga,
do começo ao fim, com o teatro de mamulengos. Os nomes estrambóticos dos
demônios, o Inferno descrito como uma grande fazenda, o roteiro mínimo mas
recheado de situações engenhosas que lembram as gags dos filmes cômicos, além
da pancadaria “carnavalesca”, não deixam margem à dúvida. A ação constante, que
remete ao bailado dos bonecos, corrobora a nossa ideia. O Diabo é personagem marcante
do teatro de marionetes, assim como a Morte. Esta última não aparece
personificada, e nem precisa: Lampião baixa ao Inferno depois de morto.
A estrofe a seguir,
particularmente, parece confirmar a noção de “rebaixamento” proposta por
Mikhail Bakhtin no clássico estudo sobre o contexto de François Rabelais:
Lampião pôde apanhar
Uma caveira de boi,
Sacudiu na testa dum,
Ele só fez dizer: — Oi!
Ainda correu dez braças
E caiu enchendo as calças,
Mas eu não sei de que foi.
A própria descida do Rei do
Cangaço ao Inferno, por seu feitio de paródia, configura-se em rebaixamento.[1]
A cena escatológica imaginada por Pacheco é de total subversão. O Inferno,
local de acerto de contas, região de “choro e ranger de dentes”, se transforma em
cenário de uma comédia rasgada. Na obra-prima de Pacheco, a figura
cômico-heroica de Lampião, síntese das camadas menos favorecidas, invade o
Inferno – que, já foi dito, é representado como uma grande fazenda –, mas não
toma posse dele. Arrasa-o, vinga-se das afrontas e, em seguida, vai embora.
O teatro de mamulengos no
Nordeste recebia, não por acaso, em alguns lugares, o nome de presepe (corruptela
de presépio), em razão de sua representação nos arredores das igrejas; e,
também, em razão de mais um rebaixamento: um motivo religioso que se converte
em profano. Vem daí a palavra presepada, tão ao gosto das camadas – e dos
poetas – populares.[2]
Pacheco voltaria à carga em outra obra-prima, O grande debate de Lampião com São Pedro, em que funde folheto de utopia com história de presepadas, ao estilo de Lampião no Inferno. Depois de passar por regiões encantadas, o estro do poeta encontrará o cangaceiro em frente ao Paraíso, também apresentado como uma grande fazenda, já que possui uma quinta, cercas e, acredite!, um chiqueiro.
Chegou no céu Lampião,
A porta estava fechada.
Ele subiu a calçada,
Ali bateu com a mão,
Ninguém lhe deu atenção,
Ele tornou a bater.
Ouviu São Pedro dizer:
– Demore-se lá, quem é?
Estou tomando café,
Depois o vou receber.
São Pedro depois da janta
Gritou pra Santa Zulmira:
– Traz o cigarro caipira!
Acendeu no de São Panta.
Apertou o nó da manta,
Vestiu a casaca e veio,
Abriu a porta do meio,
Falando até agastado:
– Triste do homem empregado
Que só lhe chega aperreio!
Não é difícil descobrir que esse
São Pedro desleixado vem dos contos tradicionais, nos quais encarna muitos dos
defeitos e vícios humanos, em oposição a Jesus Cristo, seu companheiro de viagens.
Apesar de criar a expectativa de uma briga semelhante àquela travada no
Inferno, envolvendo outros santos convocados por São Pedro, o confronto é
evitado por intercessão de São Francisco. Afinal, mesmo um poeta irreverente e
genial como José Pacheco conhecia os limites da sátira.
[1] Rebaixamento,
para o russo Mikhail Bakhtin, é “o poderoso movimento para baixo, para as
profundezas da terra e do corpo humano (...)”. A partir do conceito de
carnavalização, isto é, da inversão da ordem estabelecida, quando o rei
torna-se um bufão e o bufão torna-se rei. Leia-se BAKHTIN, Mikhail. A
cultura popular na Idade média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais.
Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Annablume, Hucitec, 2002.
[2] 30
A informação é de Hermilo Borba Filho: “Na Bahia, dão nome de Presepe e
representam grotescamente as personagens mais salientes do Gênese”. Veja-se
“Mamulengo” in: Espetáculos populares do Nordeste. São Paulo: DESA,
1966.
Para adquirir o livro, clique na imagem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário