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Presepadas de Pedro Malazarte, de Francisco Sales Arêda. |
Esse pícaro tem procuração para fazer o que o desvalido não pode, não sabe ou tem medo de fazer, ou os três juntos: não pode, não sabe ou não tem a audácia necessária. A tácita aprovação é evidente. Simbolicamente ele goza da maior autoridade.
A citação mais antiga é a da cantiga 1.132, de fundo satírico, de autoria de Pedro Mendes da Fonseca, reunida no Cancioneiro da Vaticana:
Chegou Paio
de más artes
com seu
cerame de Chartes;
e nom leeu
el nas partes
que
chegasse há um mês
e do lũes
ao martes
foi comendador d'Ocrês.
O autor, provavelmente, valeu-se da imagem de Malasartes, associado ao Diabo, para ridicularizar Paio Peres Correia, nobre que ascendera a comendador sob o reinado de Afonso X de Castela. Importa, aqui, demarcar o atestado de nascimento do nosso anti-herói na literatura portuguesa, salientando que o fato de servir como modelo, ainda que negativo, demonstra sua popularidade entre nobres e plebeus, em Portugal e na Espanha, onde ele, rebatizado como Pedro de Urdemales (ou Urdemalas), frequentou as páginas clássicas de Cervantes e Lope de veja, entre outros.
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O quengo de Pedro Malazarte no fazendeiro, de João Damasceno Nobre. |
Quando ele
achava parceiro,
Fazia
aposta até feia:
Apostava
furar olho,
Cortar mão,
surrar de peia;
Afinal deu
pra apostar
Tirar nas costas correia.
Caso o patrão se zangue, o que jamais ocorrera, o empregado terá o prazer de o mutilar. Pedro se emprega para vingar o irmão, Antônio, que voltara para casa humilhado por haver perdido a aposta. Para derrotar o patrão, revela-se tão malvado quanto ele: espanca uma cachorra, obrigando-a a voltar para casa mais cedo, condição estabelecida para o retorno do trabalhador; elimina uma ave agourenta, figurada numa velha, que o acordava com seu canto; vende os bois do patrão a um açougueiro e enterra os rabos num charco, simulando um afogamento; troca os copos de bebida envenenada com a mulher o patrão, safando-se enquanto ela morre. Por fim, depois de armar a rede sobre um rio, finge dormir para que o patrão desfira um golpe de facão na corda; reaparece, no dia seguinte, guiando a tropa de burros com os beiços cortados, desenhando um sorriso. Justifica o “sorriso” dos animais narrando um sonho com o fazendeiro, que, ao cortar a corda da rede, fez com que toda a carga que conduzia (em couro curtido) caísse no rio, livrando-os do peso. Ao perder a paciência, e, consequentemente, a aposta, o amo permite que Pedro extraia uma correia de couro de suas costas, e, como ultraje final, ainda dá-se a conhecer:
Tirou-lhe
duas correias
Dos pés até
a cabeça;
Disse: Sou
irmão de Antônio
Precisa que
me conheça!
Respondeu-lhe
o fazendeiro:
Quer é que
desapareça!
Então
comprou logo um pote,
Muito
grande, a um certo oleiro,
E disse:
Aqui é a chave
Pra tirar
do fazendeiro
Uma boa
importância
Do seu
mofado dinheiro.
Levou o
pote pra casa
E fez dele
uma privada
Toda obra
que fazia
Era ali
depositada,
Até que
ficou tão cheio
Que não cabia mais nada.
Amarra o pote cheio de excrementos no alto de uma jaqueira e mostra ao fazendeiro uma carta que supostamente recebera noticiando o fim próximo de sua mãe. Afirmando não saber ler, mostra a carta ao amo e, diante da desculpa do sujeito para não saldar a dívida, finge-se pouco preocupado. Conta-lhe que sonhara com um tesouro, depositado no alto da jaqueira por uma visão (alma penada), que só poderia ser resgatado sexta-feira. O fazendeiro constata que o tesouro estava, de fato, no local apontado e dá a Pedro, como compensação, cinquenta contos de réis. O malandro o instrui para forrar o chão com cobertas limpas, pois, se o ouro tocar o chão, “transforma todo em poeira” (Idem, p. 30). Acompanhado da família e de dois empregados, que deverão quebrar o pote com bastões, o fazendeiro aguarda, debaixo da árvore, pelo dinheiro da visão:
Os cabras
bateram logo
Que chegou
em posição;
E descambou
lá de cima
Toda aquela
arrumação;
O povo
vomitou tanto
Que quase sai o pulmão.
O tema da “libra de carne”, que aparece na primeira parte, não era inédito na poesia popular, merecendo até um breve estudo de Luís da Câmara Cascudo, de 1939, com versos do paraense Tadeu de Serpa Martins; a demanda se dá entre Pedro (o sobrenome não aparece) e um turco usurário. O irmão do trapaceiro, João, perdera a aposta e retornara mutilado para casa. Sabendo que só poderia retornar do serviço na hora do almoço caso a cachorra também retornasse, Pedro a espanca com a enxada; destrói a plantação de canas a pretexto de capinar o mato; o mesmo ocorre com as bananeiras, quando o fazendeiro lhe pede que traga um carro de lenha “que não se encontre um nó”. A gota d’água se dá quando ele corta os beiços do gado do turco que, em desespero, tenta suborná-lo em troca do pagamento. Pedro recusa a oferta e esfola as costas do turco, retornando para casa com o sinistro troféu.
O turco, personagem vilanizado nos contos populares e na gesta carolíngia, confundido, às vezes com o ogro, raptor de donzelas, é mera convergência do gigante, o rival do herói ladino nos contos europeus. O tipo está de fato enquadrado entre os Contos do ogro (gigante) estúpido, ATU 1000 (Ganha quem não se zangar, na seção que abarca os Contratos de trabalho (1000-1029). O tema da aposta ou da dívida, paga com uma libra de carne ou uma tira de couro, teria vindo do Oriente, onde a anedota da Cádi de Emessa, na Síria, era muito popular; espalhou-se pela Europa em registros nas Gesta romanorum (século XIII), no Pecorone (1378), de Giovanni Fiorentino, entre outras obras, como o Palace of Pleasure (1566), de William Painter, possível inspiração do Mercador de Veneza de Shakespeare (1594), com eco duradouro e persistente. Câmara Cascudo, no ensaio “A libra de carne no ciclo de Pedro Malas-Artes”, publicado no livro Ensaios de etnografia brasileira, alude à anedota síria, na qual um judeu, ancestral do Shylock da peça shakespeariana, aparece como credor inflexível, estereótipo propagado na esteira do antissemitismo:
A menção mais antiga cita-se na sentença do Cádi de Emessa, na síria. Julgou uma sentença entre hebreu e muçulmano, obrigando-se o devedor a dar uma libra de carne viva, não satisfazendo o débito em prazo improrrogável. Revoltaram-se os espíritos pela dolorosa satisfação e as partes foram ao Cádi. Decidiu este que o judeu cortasse a carne devida no peso estipulado e exato, nem menos e nem mais, sob pena de confisco dos bens. O credor recuou e pagou a multa por haver atentado contra a existência de criatura devota ao Deus clemente e misericordioso.
Se a primeira parte traz um conto (ATU 1000) servindo de moldura a outros, a segunda é composta de um conto independente, razão pela qual incluímos este cordel entre os tipos miscelânicos. “O tesouro do espertalhão”, classificado por Isabel Cardigos e Paulo Correia (Car-Co) como tipo 1539*D, inspirou cordel clássico, As perguntas do rei e as respostas de Camões, de Severino Gonçalves de Oliveira, o Cirilo (?-1953). Camões convence o rei de que o jarro em que estercava guardava, na verdade, um grande tesouro. O efeito cômico, juntando a descrição do conteúdo da jarra à degradação do rei, é impactante:
O Rei saiu
com Camões
Sem fazer
cara de choro
E quando
chegou no quarto
Que viu o
grande tesouro
Disse
camões eu preciso
Tomar um
banho de ouro
Pegou a
jarra e amarrou
Sob os
caibros do telhado
Ficado
debaixo dela
Bateu com
um ferro pesado
Quando a
jarra abriu-se em bandas
Foi merda
pra todo lado.
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Artimanhas de Pedro Malazarte(s) e o urubu adivinhão, de Klévisson Viana. |
Há outros episódios burlescos aproveitados no cordel, como o conto do “Urubu adivinhão”, recriado Francisco Sales Arêda como Presepadas de Pedro Malazarte, lançado possivelmente na década de 1950, e por Klévisson Viana, Pedro Malazartes e o urubu adivinhão, lançado em 2002. Mostra um Pedro menos sádico e mais maroto, utilizando um urubu como ave adivinhona, com a qual chantageia uma mulher infiel, obrigando-a servir ao marido, e a ele, por tabela, os acepipes que esta reservara ao amante (algumas vezes, um padre). O embusteiro, que espionara a mulher e o amante antes da chegada do marido, fustigava a ave com o pé, garantindo que ele sabia onde estavam os quitutes:
— É verdade,
minha mulher,
O que o
bicho está dizendo?
Que outras
boas iguarias
Tu estás
nos escondendo?
— Marido do
coração,
Esse bicho
é sabichão,
Pois de
tudo está sabendo...
Todo o resto da comida!
Traga doces e quitutes
E o resto da bebida,
Que esse bicho é matreiro!
‘Tá nos tirando a terreiro
Ó ave feia, enxerida!
O final destoa em parte das versões tradicionais: temendo ser delatada pela ave, adquirida pelo marido por muito dinheiro, a mulher manda eliminar o amante. Francisco Sales Arêda segue, em sua versão, o modelo tradicional: depois de iludir o seu anfitrião quanto às qualidades de oráculo do urubu, Pedro o vende, aconselhando-o, para que não perca o dom, a não deixar que urinem em sua cabeça.
A história prossegue com o embusteiro chegando à corte e sendo intimado pelo rei a ensinar o seu burro a ler. Ele o faz, espalhando milho pelas páginas de um livro, no qual o burro, faminto, mergulha o focinho:
Com um mês
depois, o burro
Estava tão
acostumado
Que bastava
ver o livro
Ficava todo
animado
Focinhava
todas páginas
Caçando o milho guardado.
O duelo prossegue com outra aposta na qual eles deverão furar uma baraúna usando apenas o dedo. Pedro veda um buraco com cera e o rei, tentando imitá-lo, desloca a junta da mão. A rainha, a pedido do marido, convida Pedro para um passeio na praia. O rei o empurra para o mar, mas Pedro se safa e, mais tarde, aproveitando-se do sono do oponente, dá-lhe o troco, tirando-o do seu caminho. Casa com a rainha.
A competição para saber quem fura uma árvore com o dedo (ATU 1085) integra a seção de Contos do ogro estúpido, sendo o registro mais antigo, em Portugal, o episódio recenseado por Adolfo Coelho, “O rapaz e o gigante”, nos Contos populares portugueses. O desfecho anômalo do cordel, reduzindo a burla do surrão a uma simples eliminação do inimigo sem o emprego do recurso Deus ex maquina, mostra-se anticlimático.
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O cavalo que defecava dinheiro, de Leandro Gomes de Barros. |
O velho no
mesmo dia
Mandou
fazer um surrão.
Depressa
meteu-se nele
Cego pela
ambição
E disse: —
Compadre, estou
À sua
disposição.
[...]
Saíram com
esse velho
Na carreira
sem parar
Subiram de
serra acima
Até o
último lugar
Daí voaram
o surrão
Deixaram o
velho embolar...
O velho ia
pensando
De encontrar
muito dinheiro,
Porém
sucedeu com ele
Do jeito do
boiadeiro,
Que quando
chegou embaixo
Não tinha um só osso inteiro.
Com esse motivo, o conto mais divulgado é “Nicolau Grande e Nicolau Pequeno”, de Hans Christian Andersen, que, mesmo provindo da tradição oral, recebe retoques que não o desfiguram nem o embotam em termos de vivacidade. Os epítetos remetem à condição social de ambos, apresentada no início: Nicolau Grande possui quatro cavalos e Nicolau Pequeno, apenas um.
Referência bibliográfica: HAURÉLIO, Marco. O fio e a meada : classificação tipológica e uma história cultural da literatura de cordel. Campinas: Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Instituto de Estudos da Linguagem, 2024.
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