domingo, 9 de março de 2025

Pedro Malazarte na literatura de cordel


Presepadas de Pedro Malazarte, de Francisco Sales Arêda. 

Pedro Malazarte (variando em Malasartes, Malazartes, Malas-Artes), burlador impiedoso, sádico, amoral, mereceu, da escritora e folclorista Ruth Guimarães, um alentado estudo que, dada a natureza difusa do personagem, recebeu o título de Calidoscópio:

Esse pícaro tem procuração para fazer o que o desvalido não pode, não sabe ou tem medo de fazer, ou os três juntos: não pode, não sabe ou não tem a audácia necessária. A tácita aprovação é evidente. Simbolicamente ele goza da maior autoridade.

A citação mais antiga é a da cantiga 1.132, de fundo satírico, de autoria de Pedro Mendes da Fonseca, reunida no Cancioneiro da Vaticana: 

Chegou Paio de más artes

com seu cerame de Chartes;

e nom leeu el nas partes

que chegasse há um mês

e do lũes ao martes

foi comendador d'Ocrês.

O autor, provavelmente, valeu-se da imagem de Malasartes, associado ao Diabo, para ridicularizar Paio Peres Correia, nobre que ascendera a comendador sob o reinado de Afonso X de Castela. Importa, aqui, demarcar o atestado de nascimento do nosso anti-herói na literatura portuguesa, salientando que o fato de servir como modelo, ainda que negativo, demonstra sua popularidade entre nobres e plebeus, em Portugal e na Espanha, onde ele, rebatizado como Pedro de Urdemales (ou Urdemalas), frequentou as páginas clássicas de Cervantes e Lope de veja, entre outros.

O quengo de Pedro Malazarte no fazendeiro
de João Damasceno Nobre.

O poeta popular baiano João Damasceno Nobre (1910-?), no cordel O quengo de Pedro Malazarte no fazendeiro, explorou as características mais marcantes do famoso pícaro, tornado brasileiro pelos processos de convergência e assimilação. A primeira parte gira em torno de uma aposta feita entre Malazarte e um fazendeiro: este estabelece um contrato de trabalho no qual o empregado jamais deve perder a paciência sob o risco de ceder ao contratante uma correia de seu próprio couro:


Quando ele achava parceiro,

Fazia aposta até feia:

Apostava furar olho,

Cortar mão, surrar de peia;

Afinal deu pra apostar

Tirar nas costas correia.

Caso o patrão se zangue, o que jamais ocorrera, o empregado terá o prazer de o mutilar. Pedro se emprega para vingar o irmão, Antônio, que voltara para casa humilhado por haver perdido a aposta. Para derrotar o patrão, revela-se tão malvado quanto ele: espanca uma cachorra, obrigando-a a voltar para casa mais cedo, condição estabelecida para o retorno do trabalhador; elimina uma ave agourenta, figurada numa velha, que o acordava com seu canto; vende os bois do patrão a um açougueiro e enterra os rabos num charco, simulando um afogamento; troca os copos de bebida envenenada com a mulher o patrão, safando-se enquanto ela morre. Por fim, depois de armar a rede sobre um rio, finge dormir para que o patrão desfira um golpe de facão na corda; reaparece, no dia seguinte, guiando a tropa de burros com os beiços cortados, desenhando um sorriso. Justifica o “sorriso” dos animais narrando um sonho com o fazendeiro, que, ao cortar a corda da rede, fez com que toda a carga que conduzia (em couro curtido) caísse no rio, livrando-os do peso. Ao perder a paciência, e, consequentemente, a aposta, o amo permite que Pedro extraia uma correia de couro de suas costas, e, como ultraje final, ainda dá-se a conhecer:

 

Tirou-lhe duas correias

Dos pés até a cabeça;

Disse: Sou irmão de Antônio

Precisa que me conheça!

Respondeu-lhe o fazendeiro:

Quer é que desapareça!

 A segunda parte gira em torno de uma burla mais “inocente” em cima de outro fazendeiro, famoso pelos calotes e pela violência contra os empregados. Um dos peões injustiçados conta a sua história a Pedro, que resolve dar uma lição no “marreteiro”. Emprega-se e, por um ano, é bem tratado, conta piadas, alegrando todos, incluindo as duas filhas e as criadas do fazendeiro, que são ludibriadas por ele. Pressentindo o calote, em vez de pedir as contas, ele toma uma decisão:

Então comprou logo um pote,

Muito grande, a um certo oleiro,

E disse: Aqui é a chave

Pra tirar do fazendeiro

Uma boa importância

Do seu mofado dinheiro.

 

Levou o pote pra casa

E fez dele uma privada

Toda obra que fazia

Era ali depositada,

Até que ficou tão cheio

Que não cabia mais nada.

Amarra o pote cheio de excrementos no alto de uma jaqueira e mostra ao fazendeiro uma carta que supostamente recebera noticiando o fim próximo de sua mãe. Afirmando não saber ler, mostra a carta ao amo e, diante da desculpa do sujeito para não saldar a dívida, finge-se pouco preocupado. Conta-lhe que sonhara com um tesouro, depositado no alto da jaqueira por uma visão (alma penada), que só poderia ser resgatado sexta-feira. O fazendeiro constata que o tesouro estava, de fato, no local apontado e dá a Pedro, como compensação, cinquenta contos de réis. O malandro o instrui para forrar o chão com cobertas limpas, pois, se o ouro tocar o chão, “transforma todo em poeira” (Idem, p. 30). Acompanhado da família e de dois empregados, que deverão quebrar o pote com bastões, o fazendeiro aguarda, debaixo da árvore, pelo dinheiro da visão:

Os cabras bateram logo

Que chegou em posição;

E descambou lá de cima

Toda aquela arrumação;

O povo vomitou tanto

Que quase sai o pulmão.

O tema da “libra de carne”, que aparece na primeira parte, não era inédito na poesia popular, merecendo até um breve estudo de Luís da Câmara Cascudo, de 1939, com versos do paraense Tadeu de Serpa Martins; a demanda se dá entre Pedro (o sobrenome não aparece) e um turco usurário. O irmão do trapaceiro, João, perdera a aposta e retornara mutilado para casa. Sabendo que só poderia retornar do serviço na hora do almoço caso a cachorra também retornasse, Pedro a espanca com a enxada; destrói a plantação de canas a pretexto de capinar o mato; o mesmo ocorre com as bananeiras, quando o fazendeiro lhe pede que traga um carro de lenha “que não se encontre um nó”. A gota d’água se dá quando ele corta os beiços do gado do turco que, em desespero, tenta suborná-lo em troca do pagamento. Pedro recusa a oferta e esfola as costas do turco, retornando para casa com o sinistro troféu.

O turco, personagem vilanizado nos contos populares e na gesta carolíngia, confundido, às vezes com o ogro, raptor de donzelas, é mera convergência do gigante, o rival do herói ladino nos contos europeus. O tipo está de fato enquadrado entre os Contos do ogro (gigante) estúpido, ATU 1000 (Ganha quem não se zangar, na seção que abarca os Contratos de trabalho (1000-1029). O tema da aposta ou da dívida, paga com uma libra de carne ou uma tira de couro, teria vindo do Oriente, onde a anedota da Cádi de Emessa, na Síria, era muito popular; espalhou-se pela Europa em registros nas Gesta romanorum (século XIII), no Pecorone (1378), de Giovanni Fiorentino, entre outras obras, como o Palace of Pleasure (1566), de William Painter, possível inspiração do Mercador de Veneza de Shakespeare (1594), com eco duradouro e persistente. Câmara Cascudo, no ensaio “A libra de carne no ciclo de Pedro Malas-Artes”, publicado no livro Ensaios de etnografia brasileira, alude à anedota síria, na qual um judeu, ancestral do Shylock da peça shakespeariana, aparece como credor inflexível, estereótipo propagado na esteira do antissemitismo:

A menção mais antiga cita-se na sentença do Cádi de Emessa, na síria. Julgou uma sentença entre hebreu e muçulmano, obrigando-se o devedor a dar uma libra de carne viva, não satisfazendo o débito em prazo improrrogável. Revoltaram-se os espíritos pela dolorosa satisfação e as partes foram ao Cádi. Decidiu este que o judeu cortasse a carne devida no peso estipulado e exato, nem menos e nem mais, sob pena de confisco dos bens. O credor recuou e pagou a multa por haver atentado contra a existência de criatura devota ao Deus clemente e misericordioso.

Se a primeira parte traz um conto (ATU 1000) servindo de moldura a outros, a segunda é composta de um conto independente, razão pela qual incluímos este cordel entre os tipos miscelânicos. “O tesouro do espertalhão”, classificado por Isabel Cardigos e Paulo Correia (Car-Co) como tipo 1539*D, inspirou cordel clássico, As perguntas do rei e as respostas de Camões, de Severino Gonçalves de Oliveira, o Cirilo (?-1953). Camões convence o rei de que o jarro em que estercava guardava, na verdade, um grande tesouro. O efeito cômico, juntando a descrição do conteúdo da jarra à degradação do rei, é impactante:

O Rei saiu com Camões

Sem fazer cara de choro

E quando chegou no quarto

Que viu o grande tesouro

Disse camões eu preciso

Tomar um banho de ouro

 

Pegou a jarra e amarrou

Sob os caibros do telhado

Ficado debaixo dela

Bateu com um ferro pesado

Quando a jarra abriu-se em bandas

Foi merda pra todo lado.

Artimanhas de Pedro Malazarte(s) e o urubu adivinhão,
de Klévisson Viana. 

Há outros episódios burlescos aproveitados no cordel, como o conto do “Urubu adivinhão”, recriado Francisco Sales Arêda como Presepadas de Pedro Malazarte, lançado possivelmente na década de 1950, e por Klévisson Viana, Pedro Malazartes e o urubu adivinhão, lançado em 2002. Mostra um Pedro menos sádico e mais maroto, utilizando um urubu como ave adivinhona, com a qual chantageia uma mulher infiel, obrigando-a servir ao marido, e a ele, por tabela, os acepipes que esta reservara ao amante (algumas vezes, um padre). O embusteiro, que espionara a mulher e o amante antes da chegada do marido, fustigava a ave com o pé, garantindo que ele sabia onde estavam os quitutes:

É verdade, minha mulher,

O que o bicho está dizendo?

Que outras boas iguarias

Tu estás nos escondendo?

— Marido do coração,

Esse bicho é sabichão,

Pois de tudo está sabendo...

 

Vem, Maria, traz então

Todo o resto da comida!

Traga doces e quitutes

E o resto da bebida,

Que esse bicho é matreiro!

‘Tá nos tirando a terreiro

Ó ave feia, enxerida!

O final destoa em parte das versões tradicionais: temendo ser delatada pela ave, adquirida pelo marido por muito dinheiro, a mulher manda eliminar o amante. Francisco Sales Arêda segue, em sua versão, o modelo tradicional: depois de iludir o seu anfitrião quanto às qualidades de oráculo do urubu, Pedro o vende, aconselhando-o, para que não perca o dom, a não deixar que urinem em sua cabeça.

A história prossegue com o embusteiro chegando à corte e sendo intimado pelo rei a ensinar o seu burro a ler. Ele o faz, espalhando milho pelas páginas de um livro, no qual o burro, faminto, mergulha o focinho:

Com um mês depois, o burro

Estava tão acostumado

Que bastava ver o livro

Ficava todo animado

Focinhava todas páginas

Caçando o milho guardado.

O duelo prossegue com outra aposta na qual eles deverão furar uma baraúna usando apenas o dedo. Pedro veda um buraco com cera e o rei, tentando imitá-lo, desloca a junta da mão. A rainha, a pedido do marido, convida Pedro para um passeio na praia. O rei o empurra para o mar, mas Pedro se safa e, mais tarde, aproveitando-se do sono do oponente, dá-lhe o troco, tirando-o do seu caminho. Casa com a rainha.

A competição para saber quem fura uma árvore com o dedo (ATU 1085) integra a seção de Contos do ogro estúpido, sendo o registro mais antigo, em Portugal, o episódio recenseado por Adolfo Coelho, “O rapaz e o gigante”, nos Contos populares portugueses. O desfecho anômalo do cordel, reduzindo a burla do surrão a uma simples eliminação do inimigo sem o emprego do recurso Deus ex maquina, mostra-se anticlimático. 

O cavalo que defecava dinheiro, de Leandro Gomes de Barros.

Nas versões correntes, o rei (ou o fazendeiro) manda prender o trapaceiro num saco que deve ser atirado ao mar. É assim que Leandro Gomes de Barros conclui o clássico O cavalo que defecava dinheiro, no qual o vilão, um duque ganancioso, não compreende como seu compadre pobre enriquecera em tão pouco tempo. Este escapara do surrão, conduzido por dois capangas do duque, que se ausentam temporariamente, berrando que o prenderam para obrigá-lo a desposar uma moça milionária; chama a atenção de um boiadeiro, que descose o surrão e assume o seu lugar, sendo arremessado serra abaixo. Depois de três meses, o espertalhão reaparece e o duque pede para que ter o mesmo “tratamento”, pois também que ser recompensado:

O velho no mesmo dia

Mandou fazer um surrão.

Depressa meteu-se nele

Cego pela ambição

E disse: — Compadre, estou

À sua disposição.

[...]

Saíram com esse velho

Na carreira sem parar

Subiram de serra acima

Até o último lugar

Daí voaram o surrão

Deixaram o velho embolar...

 

O velho ia pensando

De encontrar muito dinheiro,

Porém sucedeu com ele

Do jeito do boiadeiro,

Que quando chegou embaixo

Não tinha um só osso inteiro.

Com esse motivo, o conto mais divulgado é “Nicolau Grande e Nicolau Pequeno”, de Hans Christian Andersen, que, mesmo provindo da tradição oral, recebe retoques que não o desfiguram nem o embotam em termos de vivacidade. Os epítetos remetem à condição social de ambos, apresentada no início: Nicolau Grande possui quatro cavalos e Nicolau Pequeno, apenas um.

Referência bibliográfica: HAURÉLIO, Marco. O fio e a meada : classificação tipológica e uma história cultural da literatura de cordel. Campinas: Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Instituto de Estudos da Linguagem, 2024. 

 



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