terça-feira, 11 de outubro de 2011

Zé do Caixão em quadrinhos

O pioneirismo da Prelúdio/Luzeiro

Cordel de Manoel D'Almeida Filho com arte de Nico Rosso

O meu amigo Wilson Marques, escritor e jornalista dos termos do Maranhão, fez-me uma pergunta a respeito da adaptação da literatura de cordel para a linguagem dos quadrinhos.

Citei o exemplo pioneiro da editora Prelúdio, atual Luzeiro, que, a partir do final da década de 1960, encomendou algumas adaptações de cordéis para HQs de alguns dos maiores mestres dos quadrinhos nacionais. Foram publicados nesse formato História do Valente João Acaba-Mundo e a Serpente Negra, de Minelvino Francisco Silva, Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho do Tucum, de Firmino Teixeira do Amaral, Lampião, o Rei do Cangaço, de Antônio Teodoro dos Santos, e Vitória de Floriano e a Negra Feiticeira, de Manoel D'Almeida Filho (com quadrinhos de Nico Rosso); A Chegada de Lampião no Inferno, de José Pacheco, e O Pavão Misterioso, de José Camelo, estes últimos com arte do grande Sérgio Lima.

Quando trabalhei na Luzeiro, entre 2005 e 2007, resgatei as pranchas originais, que estavam todas misturadas e encontrei outros títulos desenhados por estes mestres das HQs, que permanecem inéditos. Entre eles, Vida e Testamento de Cancão de Fogo, de Leandro Gomes de Barros, desenhado por Nico Rosso, História da Donzela Teodora, também de Leandro, Vicente, o Rei dos Ladrões e O Príncipe Enterrado Vivo, ambos de Manoel D'Almeida Filho, estes três igualmente quadrinizados por Sérgio Lima.

O mítico ator e cineasta José Mojica Marins, o Zé do Caixão, era figurinha carimbada na Editora Prelúdio. A revista O Estranho Mundo de Zé do Caixão, que conta com os traços geniais de Nico Rosso e Eugênio Collonese, é uma prova disto. Também em quadrinhos foi publicado o cordel Peleja de Zé Do Caixão com O Diabo, de Manoel d'Almeida Filho, com o traço de Nico Rosso.

Drummond, Bilac e Leandro



Bilac, Drummond e Leandro em montagem de Arievaldo Viana
Tem sido repetido ad nauseam um texto de Carlos Drummond de Andrade, no qual o poeta mineiro supostamente louva Leandro Gomes de Barros em prejuízo de seu contemporâneo Olavo Bilac. Por falta de uma leitura crítica, a dicotomia contida na crônica Leandro, o Poeta (sertão X cidade) tem recebido pouca ou nenhuma atenção. Daí o rótulo de poeta "sertanejo" colado na testa de Leandro e repetido em livros que enfocam a vida ou a obra do poeta. Sempre considerei o texto de Drummond maniqueísta e, por isso mesmo, tenho-me negado a me valer dele para exaltar as qualidades de Leandro, que falam por si mesmas. O desprezo com que é tratado o grande poeta Olavo Bilac, autor de algumas das mais belas páginas da literatura nacional, também me incomoda. 
O poema infantil Plutão, reproduzido abaixo, revelador de outra faceta de Bilac, a poesia infantil, da qual pioneiro, pode ser usado em um estudo comparativo com o romance O Cachorro dos Mortos, de Leandro Gomes de Barros. Em comum, a fidelidade canina, exaltada ainda na Balada do Desesperado, do francês Henri Murger, admiravelmente traduzida para o português por Castro Alves. Depois de tantos muros erguidos entre Leandro e Bilac, que, coincidentemente, nasceram e morreram no mesmo ano (1865-1918), é hora de aproximá-los, mostrando o que eles têm em comum, partindo do singelo poema de Bilac e do grande romance leandrino.

Plutão

Negro, com os olhos em brasa, 
Bom, fiel e brincalhão, 
Era a alegria da casa 
O corajoso Plutão. 

Fortíssimo, ágil no salto, 
Era o terror dos caminhos, 
E duas vezes mais alto 
Do que o seu dono Carlinhos. 

Jamais à casa chegara 
Nem a sombra de um ladrão; 
Pois fazia medo a cara 
Do destemido Plutão. 

Dormia durante o dia, 
Mas, quando a noite chegava, 
Junto à porta se estendia, 
Montando guarda ficava. 

Porém Carlinhos, rolando 
Com ele às tontas no chão, 
Nunca saía chorando 
Mordido pelo Plutão . . . 

Plutão velava-lhe o sono, 
Seguia-o quando acordado: 
O seu pequenino dono 
Era todo o seu cuidado. 

Um dia caíu doente 
Carlinhos . . . Junto ao colchão 
Vivia constantemente 
Triste e abatido, o Plutão. 

Vieram muitos doutores, 
Em vão. Toda a casa aflita, 
Era uma casa de dores, 
Era uma casa maldita. 

Morreu Carlinhos . . . A um canto, 
Gania e ladrava o cão; 
E tinha os olhos em pranto, 
Como um homem, o Plutão. 

Depois, seguiu o menino, 
Seguiu-o calado e sério; 
Quis ter o mesmo destino: 
Não saiu do cemitério. 

Foram um dia à procura 
Dele. E, esticado no chão, 
Junto de uma sepultura, 
Acharam morto o Plutão. 


Nota: Na crônica de Drummond, publicada no Jornal do Brasil, de 9 de setembro de 1976, do começo ao fim, a opção é pelo confronto. Vejamos um trecho: 

"Um é Poeta erudito, produto de cultura urbana e burguesia média; o outro, planta sertaneja vicejando a margem do cangaço, da seca e da pobreza. Aquele tinha livros admirados nas rodas sociais, e os salões o recebia com flores. Este espalhava seus versos em folhetos de Cordel, de papel ordinário, com xilogravuras toscas, vendidos nas feiras a um público de alpercatas ou de pés no chão..." 

Até onde sei, Leandro não utilizava xilogravuras toscas em seus folhetos, o que já evidencia um equívoco no argumento que se vale da comparação. Mas, vamos a outro trecho: 

"A poesia parnasiana de Bilac, bela e suntuosa, correspondia a uma zona limitada de bem estar social, bebia inspiração europeia e, mesmo quando se debruçava sobre temas brasileiros, só era captada pela elite que comandava o sistema de poder político, econômico e mundano. 

A de Leandro, pobre de ritmos, isenta de lavores musicais, sem apoio livresco, era a que tocava milhares de brasileiros humildes, ainda mais simples que o poeta, e necessitados de ver convertida e sublimada em canto a mesquinharia da vida."

A comparação agora se dá sob o prisma do estético. E, vale dizer, desta vez Leandro fica em desvantagem por conta de outro grave equívoco de Drummond. Sua poesia não era "pobre de ritmos, isenta de lavores musicais, sem apoio livresco". Uma das características da (boa) literatura de cordel é a riqueza rítmica, musical, e nesse contexto triunfam Leandro e vários outros autores. Afirmar que ele não tinha apoio livresco é cair no reducionismo dos que julgam o poeta "popular" alguém à margem da cultura oficial. Leandro, embora não tenha tido acesso a uma boa instrução formal, era um grande leitor. Em sua obra encontramos versões de contos das Mil e Uma Noites, de Livros do Povo (conforme definição de Teófilo Braga emulado por Câmara Cascudo) e, até mesmo, de um clássico do nosso romantismo. Refiro-me a Noite na Taverna, admiravelmente relido em Meia-noite no Cabaré

Enfim, o texto de Drummond, na tentativa de fazer justiça, carrega nos estereótipos, principalmente quando uma análise atenta comprova que ele sabia menos de Leandro e de sua obra do que se alardeia.