quarta-feira, 12 de março de 2025

O Judeu Errante na Literatura de Cordel e no Imaginário Nordestino

A história do Judeu Errante, recenseada por Henrique Perez Escrich no monumental romance O Mártir do Gólgota, aborda as aventuras e desventuras de Samuel Belibeth, condenado a vagar até a consumação dos tempos, por haver blasfemado de Jesus e o esbofeteado, quando este se dirigia ao local de seu suplício. A tradição conduz ao ano de 1259, quando um monge beneditino, Mathieu Paris, na obra Chronica Majora, atribui a um bispo armênio, que visitara seu convento, a história sobre um judeu de nome Cartáfilo, contemporâneo de Cristo, que teria gritado “Vá! Vá!”, e, por isso, foi condenado a vagar por toda a eternidade. O professor Maurice Van Woensel, estudando o mito do Judeu Errante no Nordeste, menciona outra fonte do mesmo período, Flores historiarum (c. 1267), de autoria de outro monge beneditino, Roger de Wendoven, em que o personagem também se chama Cartáfilo.

Marie-France Rouart, ao seguir as pegadas do eterno viajante, aquele que acompanhará a humanidade, enquanto ela existir, sintetiza assim sua figura trágica:

“Esse contraste entre duas situações [nas representações do Judeu Errante no século XVII, variando do viajante incansável ao ancião venerando cercado de curiosos] revela, já no plano icônico, a dialética profunda da lenda do Judeu Errante; com efeito, é entre essas duas imagens extremas de repouso e de movimento que se inscreve a trama de uma narrativa a que cada época acrescentou episódios, a ponto de transformar profundamente o caráter devocional que tinha a lenda em suas origens” (Rouart, 1998, p. 665).


Na Alemanha, em 1522, o personagem recebe outro nome, Ahasverus, e outro ofício, sapateiro, e é mencionado numa carta anônima, cujo autor afirma tê-lo avistado numa igreja em Hamburgo, “condenado a andar até o final dos tempos para ‘servir de testemunha viva contra os judeus e os incrédulos’” (Ibid., p. 666). O antissemitismo, que já aparece na base da lenda, recrudesce em tempos de feroz disputa entre os adeptos tanto da Reforma quanto da Contrarreforma. Em 1774, reaparece, numa Balada brabantina, rebatizado como Isaque Laquedem. Sua ambiguidade, uma figura teológica que vive um drama essencialmente humano, será mais bem explorada no romantismo, ao nível mesmo da alegoria: Ahasverus, encarnando os dilemas de um mundo em profunda transformação, sai também transformado, e, por vezes, como herói, mas um herói prometeico.

Quando Perez Escrich reencena o drama da Paixão, há um retorno à base do mito; o Judeu Errante ganha uma biografia anterior ao encontro com Jesus, ressaltando a sua face mais hedionda: fora sapateiro, como reza a tradição, mas também servira às legiões romanas. Quando Jesus vai depor diante de Pilatos, é Samuel Belibeth que o escolta e o espanca. Moldado ao gosto maniqueísta da literatura piedosa, o Judeu Errante chegou ao cordel pelas mãos de quatro poetas: Manoel Pereira Sobrinho, Manoel Apolinário Pereira (?-1955), Francisco Sales Arêda e Severino Borges Silva, este último alcançando maior repercussão:

Leitor amigo eu te peço
atenção por um instante
para que tu possas ler
um romance interessante
de Samuel Belibé,
chamado “o Judeu Errante”.

É o quadro mais tocante
que minha pena escreveu
pois apresenta Jesus
com o sofrimento seu
e como ele encontrou-se
com Samuel, o Judeu (Silva, 1975, p. 1).

O poeta ressalta um trecho meramente informativo do romance de Escrich, no qual este menciona três outros personagens identificados ao Judeu Errante:

Foram três judeus errantes
e Samer foi o primeiro
o segundo foi Catáflio (sic)
e Samuel o terceiro
passou a Judeu Errante
na lida de sapateiro (Ibid., 1975, p. 1).

Mestre Severino afirma Samuel entrara para o exército durante o reinado de Vespasiano, o que é incorreto, haja vista o tempo retratado abranger os reinados de Otaviano e Tibério. Manoel Pereira não incorre nesse deslize. Por outro lado, em sua versão, os pais de Samuel, chamam-se Roques Militão e Edite de Assunção, o que soa mais estranho que o anacronismo do colega:

De volta a casa dos pais
Com seu instinto tirano;
Nos dezessete janeiros
Ele concebeu um plano
De ir voluntariamente
Para o Exército Romano.

E na Águia Triunfante
Do Tibre ele se alistou
Por soldado mercenário
Muita terra viajou;
Quando Otaviano Augusto
Nos últimos anos reinou (Pereira Sobrinho, 1958, p. 5).

Sales Arêda, por seu turno, resume a história em um folheto de oito páginas, O Judeu Errante e os horrores do pecado, antecipando o encontro fatal com Jesus já na segunda estrofe:

Vou contar aos bons leitores
Quem é o Judeu Errante
Ou Samuel Belibete
O maldito viajante
Que caminha sem direito
De parar um só instante.

É aquele que Jesus
Na casa dele passou
Levando a pesada cruz
Já cansado suplicou
Que lhe desse um copo d’água
E o infame negou (Arêda, [195-?], p. 1).

Tal encontro ocorre na parte final dos outros cordéis. Na versão de Severino Borges, à página 31, de um total de 40:

Jesus olhou para ele
e disse dessa maneira:
tenho sede, dai-me água
pra ver se subo a ladeira
e deixe que eu descanse
na sombra desta parreira.

— Anda feiticeiro imundo
Samuel lhe disse assim
se descansares aqui
a parreira terá fim
e se eu te der desta água
há de faltar para mim (Silva, op. cit., p. 31).

A sentença proferida por Jesus, em Pereira Sobrinho, acrescenta outros agravantes à maldição

— Samuel, te digo agora
Nunca mais te salvarás
Teu caminho é de espinhos
E tu nunca o vencerás
Descanso na tua vida
Te digo que não terás (Pereira Sobrinho, op. cit., p. 16).

A cena que se segue, após a crucificação de Cristo, mostrando Samuel impelido a caminhar enquanto os mortos saíam de suas tumbas, dá ares sobrenaturais à narrativa:

Samuel nesse momento
ouviu rugidos cruéis
de relâmpago e trovões
que um parecia dez
e a terra estremecia
por debaixo de seus pés.

Com o claro dos relâmpagos
ele viu com atenção
os olhos dos esqueletos
jorrando sangue no chão
ele aí ajoelhou-se
e disse: Perdão! Perdão! (Silva, op. cit., p. 36).

À diferença dos outros autores, porém, Severino recupera a função semântica do mito: as andanças de Samuel cessarão com o Juízo Final:

Por todo nosso planeta
ele terá que andar
para cumprir-se a palavra
de nosso mestre exemplar
até o dia que ele
volte para nos julgar (Ibid., p. 40).

Jerusa Pires Ferreira, analisando o assunto do Judeu Errante na Literatura, enfatiza sua presença no cordel, sem deixar de mencionar a forma preconceituosa com que tal figura, real ou simbólica, é retratada. Resultante de séculos de perseguição e de uma recorrente propaganda degradante que nutriu “o discurso persuasivo da Igreja rumo à conversão [dos judeus], ao longo dos séculos, no viés da punição” (Ferreira, 2000, p. 6), o Judeu Errante encarna, ainda, o medo da morte, já que sua imortalidade contrasta com a nossa finitude.


Além das versões citadas, há outra, de autoria do paraibano Medeiros Braga, recentemente falecido, recuperando o nome Ahasverus, por influência de Castro Alves, que compôs um poema, “Ahasverus e o gênio”. O cordel de Braga, composto em setilhas, especula sobre o fim da sina do viajante, visto sob um viés positivo:

Este era o melhor sonho
Que pudera Ahasverus ter,
Não estar jamais andando
Pelo mundo sem viver,
Chegar àquilo que apraz:
Descansar na tumba em paz,
Sentir na morte o prazer.

Porém, na realidade
Nada disso aconteceu,
O fim dos tempos ainda
Não deu mostras que cedeu.
Jesus não voltou, supunha,
E o povo é testemunha
Que Ahasverus não morreu.

Ele está em alguma parte
Vagando pela campina,
Contemplando suas flores
Na verdejante bonina!...
Quem sabe, próximo da gente,
Esperando impaciente
O cumprimento da sina (Braga, 2020, p. 8).

No sistema ATU, a história é classificada sob o número 777 (O Judeu Errante). O Catálogo dos contos tradicionais portugueses (Cardigos; Correia, 2015, p. 398) menciona apenas uma versão na área lusófona, “A lenda do Judeu Errante”, recolhida por Casimiro Oliveira (1998) em Mogadouro. Nos Motif-Index de Thompson (1955-58), o motivo Q502.1 refere-se às andanças do Judeu Errante, “vagando incessantemente, incapaz de morrer como punição por blasfêmia.”

Na tradição oral do Nordeste, Samuel Belibé sobrevive como mensageiro da morte, figura a ser evitada. O poeta cordelista potiguar Isaías Eduardo Santa Rosa, autor de uma versão rimada do mito de Teseu e do Minotauro, enviou-me, via WhatsApp, a seguinte indagação:

“No interior, onde minha mãe reside, Riachuelo (RN), ainda é muito comum o uso da expressão ‘Caminha, Samuel, caminha!’ A expressão é usada quando alguém escuta palmas ou chamado na porta de alguma residência. Gostaria de saber a procedência” (Santa Rosa, 2021).

Mais recentemente, o lendário cordelista e repentista Bule-Bule (Antônio Ribeiro da Conceição), rememorando sua infância, em Antônio Cardoso, Bahia, contou, em depoimento, que sua mãe sempre advertia aos filhos para nunca abrirem a porta caso escutassem apenas uma batida:

“Eu me arrepio todo só de lembrar. Quando alguém batia à nossa porta, minha mãe alertava: “Se baterem somente uma vez, pergunte quem é e não abra de jeito nenhum, pois pode ser Samuel Belibé que está batendo. Como ele não pode parar muito tempo, pois uma voz manda ele continuar caminhando, bate uma única vez e começa a andar novamente. Quem abrir a porta, morre” (Conceição, 2024).

Na informação de Santa Rosa, a frase que rememora a sentença de Cristo aparece como fórmula apotropaica. Já o depoimento de Bule-Bule aponta outra direção: há uma superstição corrente segundo a qual se alguém ouvir baterem à porta uma única vez, não se deve abrir, sob o risco de se deparar com a Morte. Deve-se ainda indagar quem é e só abrir após a terceira batida. Samuel, assim, torna-se avatar do Anjo da Morte, Samael, que, a depender da tradição (judaica ou cristã), pode ser retratado também como um demônio. E a semelhança dos nomes não é por acaso. Samuel Belibeth (o sem casa), tendo o dom de não morrer, confunde-se, assim, no imaginário popular, com a própria Morte, em sua jornada sem fim.

NOTA: Excerto de minha dissertação de mestrado "O fio e a meada : classificação tipológica e uma história cultural da literatura de cordel – Campinas, SP, 2024.

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