Por MARCO HAURELIO*
A polêmica desencadeada pela proibição, na Justiça, do
livro Roberto Carlos em Detalhes, de Paulo César Araújo, revelou
que sob os raios fúlgidos da pátria, a liberdade sorri para poucos. É a
ditadura econômica, de que fala Chico Buarque, para a cultura bem mais nociva
que a dos milicos. Por falar em ditadura e em Roberto Carlos, retornemos a
1965, mais precisamente a Osasco, grande São Paulo. Nesta cidade, antes de uma
apresentação no cinema Rex (do latim: rei), encontraremos Roberto saudoso de
uma namorada que, naquele momento, estava bem longe, nos States. O ruído
provocado pelo dial de uma estação de rádio manipulado por sua secretária, Edy
Silva, sugeriu uma melodia. E assim nasceu o refrão: “quero que você me aqueça
neste inverno e que tudo mais vá pro inferno”. Com a providencial ajuda de
Erasmo Carlos, a música estourou nos quatro cantos do país.
Vamos agora ao Nordeste brasileiro, a bordo de um velho
ônibus, saído de Maceió com destino a Aracaju, no qual viajava o poeta popular
Enéias Tavares dos Santos conduzindo uma mala repleta de folhetos de cordel e
bugigangas diversas. Ao lado do poeta um rádio repetia a imprecação em forma de
canção do então rei da juventude, nascida naquela noite fria em Osasco, de que
falamos há pouco. O poeta ficou atento apenas ao refrão. Quando saltou na
capital sergipana, estava pronto, faltando apenas passar para o papel, o
folheto A Carta do Satanás a Roberto Carlos. Na
fabulação de Enéias, cansado de ouvir o cantor mandar tudo para o inferno,
Satanás resolve escrever-lhe uma carta, tentando demovê-lo da ideia:
Inferno, corte das trevas,
Meu grande amigo Roberto,
Eu vi o seu novo disco
É muito bonito, é certo,
Mas cumprindo a sua ordem,
O mundo fica deserto.
E o soberano das trevas faz mais este apelo ao ídolo da jovem guarda:
Tem feito muito sucesso
Essa sua gravação
Mas eu já sofri até
Ataque do coração
Porque aqui no inferno
É de fazer compaixão.
Se para aqui vier tudo
Eu fico muito apertado
Pois o inferno já está
Por demais superlotado,
Você ganhando dinheiro
E eu ficando aqui lascado.
Importante é notar a ressignificação da música na interpretação do poeta
popular. O cordel fez tanto sucesso que possibilitou a Enéias “pôr em dia os
atrasados”, conforme depoimento ao poeta João Gomes de Sá. Negociado com a
Editora Prelúdio, hoje Luzeiro, este folheto é editado ininterruptamente há
mais de 40 anos. No seu rastro vieram a lume mais três títulos, todos de Manoel
D’Almeida Filho: A Resposta de Roberto Carlos a Satanás; A Chegada
de Roberto Carlos no Céu e Roberto Carlos no Inferno. Convém
notar que, no inferno, as diabas se comportam como as jovens admiradoras do
“rei” em sua corte terrestre:
As diabas moças gritavam
Como que ficaram loucas,
Todas pediam autógrafos,
De gritar ficaram roucas,
Porque não havia força
Que calasse aquelas bocas.
Mais conservador é Apolônio Alves dos Santos, autor do
folheto A Mulher que Rasgou o Travesseiro e Mordeu o Marido Sonhando
com Roberto Carlos. Outro grande poeta, Joaquim Batista de Sena,
lamenta as mudanças ocorridas na Igreja Católica, imputando-as a Roberto e seus
seguidores:
Vou chamar primeiramente
O grande rei do hippysmo
O senhor Roberto Carlos
Com todo seu cafonismo
Pois ele foi quem mudou
A lei do cristianismo.
A bibliografia sobre Roberto Carlos no Cordel é extensa e reflete a mentalidade
do autor, com enfoque ora conservador ora liberal, indo do satírico à estória
de exemplo. Manoel D’Almeida, por exemplo, era consultor da Editora Prelúdio,
que além da boa literatura de cordel, editava a Melodias, a revista
da mocidade, na qual Roberto era figurinha carimbada. Daí o tratamento
simpático dispensado ao cantor capixaba. Joaquim Batista de Sena, por outro
lado, refletia a mentalidade sertaneja, refratária a mudanças, especialmente as
ocorridas no seio da Igreja.
* Marco Haurélio é poeta popular, pesquisador e
assessor da editora NOVA ALEXANDRIA. Também já atuou como selecionador de
textos da Editora Luzeiro.
Nota: Este artigo, escrito em 2006 e publicado
na revista digital Music News, foi repercutido no blog Acorda Cordel, do
poeta Arievaldo Viana.