Publicado pela Amarylis, selo infantojuvenil da editora Manole, Rei Lear em cordel traz ilustrações de Jô Oliveira. A obra faz parte das comemorações dos 450 anos de nascimento de William Shakespeare. Já foi publicada pela mesma editora Sonhos de uma noite de verão, de Arievaldo Viana, e, em breve, sairá Muito barulho por nada, de José Santos.
Abaixo, a apresentação, que tem a minha assinatura:
Entre
a história e a lenda
O
drama do rei que, já na idade madura, sofre as consequências trágicas de uma
ação imprudente, rendeu uma das mais celebradas peças de William Skakespeare, Rei Lear. Antes de figurar no bloco de tragédias do
dramaturgo inglês, o tema já havia sido aproveitado em outras obras, a exemplo
da Historia regum britaniae (História
dos reis da Bretanha), do galês Godofredo de Monmouth, datada de 1147, e da Gesta romanorum, coletânea de contos e
anedotas do século XIII. Nesta última, o imperador romano Teodósio é personagem
de uma trama semelhante à concebida por Shakespeare. Na tradição oral
brasileira, inclusive, há contos do “ciclo do Rei Lear”, a exemplo de O rei Andrada, publicado em 1885 nos Contos populares do Brasil, de Sílvio
Romero.
Na
obra de Shakespeare, o velho tema folclórico recebe um tratamento grandioso.
Lear, o octogenário rei da Bretanha, resolve testar as três filhas, Goneril,
Regane e Cordélia, com o fito de descobrir qual delas o ama mais. Às lisonjas
das duas irmãs Cordélia responde que o ama do tanto que uma filha deve amar a seu
pai. Nem mais nem menos. É deserdada pelo velho monarca, sendo depois desposada
pelo rei da França, que se encontrava na corte bretã por ocasião do fatídico
episódio. Paralelamente, a peça trata do drama do velho conde de Gloster, que,
depois de banir seu filho Edgar, vítima de uma falsa acusação, sucumbe à
ambição de outro filho, Edmundo, personagem malévolo, cujo destino está
entrelaçado ao das filhas ingratas de Lear.
Da peça para o cordel
Autor
acostumado a trabalhar com temas oriundos da cultura popular, é possível que
Shakespeare não estranhasse a recriação de sua memorável peça em cordel A
adaptação preserva os pontos essenciais do texto original, aqui retrabalhado em
sextilhas (estrofes de seis versos), que dão conta dos personagens mais
importantes, sem abrir mão do ritmo característico da poesia popular:
Na terra onde o
bem floresce
Logo a maldade
se assanha,
Como na presente
história
Em que a lisonja
e a manha
Causaram a
derrocada
De um grande rei
da Bretanha.
Para
dar voz ao bobo, personagem que funciona na trama como uma espécie de
consciência do rei destronado, e que procura atenuar-lhe o desespero com
improvisos e brincadeiras, foi usada, de forma inusitada, outra modalidade da
poesia popular, o martelo agalopado.[1]
O recurso aproxima o bobo — que, diga-se de passagem, era uma espécie de
menestrel, com sua filosofia de vida simples, mas de sabedoria profunda — do repentista
nordestino, herdeiro dos trovadores e cantores populares da Idade Média:
Sei que um carro
não pode ir adiante
Dos cavalos,
pois não é natural.
Por lisonjas,
cedeste para o mal,
E quem amas
agora está distante.
Se vivias num
trono de brilhante,
Hoje até as
migalhas são negadas,
Elogios tornados
caçoadas
São o prêmio da
tua insensatez,
Tua luz
converteu-se em palidez,
Tuas glórias te
foram confiscadas.
Com
nova roupagem, descobrimos que as lições da história que vamos ler, mesmo com a
grande distância no tempo e no espaço, são válidas para os dias de hoje, em que
não desapareceram a ingratidão e a ganância. A leitura do cordel também é um
convite a conhecer — ou revisitar, para os que já leram — a tragédia de
Shakespeare, adaptada algumas vezes para o cinema, a exemplo da produção
japonesa Ran, filmada em 1985 por
Akira Kurosawa. Ambientado no Japão medieval e protagonizado por um senhor
feudal que divide o seu trono entre os três filhos (de acordo com a tradição
patriarcal do país), excluindo depois o caçula, por sua sinceridade, o filme
comprova a universalidade do tema, já antigo em 1605, data de sua provável
redação por William Shakespeare.
Marco Haurélio e William Shakespeare Ilustração de Jô Oliveira |
[1] Composto de dez
versos, com a sílaba tônica caindo sempre na terceira, sexta e décima sílabas,
o martelo é um dos gêneros mais cantados pelos repentistas nordestinos.
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